Pós-Rio+20 – uma análise da economia verde e dos créditos ambientais
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- Amyra El Khalili
- 18/07/2017
Título original: Pós-Rio + 20 - Uma análise crítica da economia verde e da natureza jurídica dos créditos ambientais
"... uma coisa pode ser valor de uso, sem ser valor. É esse o caso, quando a sua utilidade para o homem não é mediada por trabalho. Assim, o ar, o solo virgem, os gramados naturais, as matas não cul-tivadas etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Quem com seu produto satisfaz sua própria necessidade cria valor de uso, mas não mercadoria. Para produzir mercadoria, ele não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de uso social“ (MARX. O capital, 1988. p. 49).
Desde que foi instituído o MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), pelo Protocolo de Kyoto (1997), estamos manifestando nossas preocupações com a maneira pela qual os negócios e os acordos vinham sendo conduzidos. O que temos observado é, infelizmente, que o mercado de carbono e seus derivados está repetindo os modelos centralizadores, arriscados, limitados e desgastados, sob os quais se estabeleceram os contratos nos grandes centros financeiros.
Analistas internacionais estimam um rombo de aproximadamente U$222 trilhões nos derivativos, o que equivale a três vezes o PIB mundial. A crise financeira internacional não acontece em outro planeta para que a euforia em relação aos créditos ambientais seja isenta de críticas e rechaços, como ocorreu durante a Rio+20 no evento paralelo Cúpula dos Povos.
É aqui mesmo, neste mercado global desregulamentado, que estão sendo negociados acordos entre governos e instituições financeiras com o aval de algumas ONGs ambientalistas, contrariando a lógica matemática mais racionalista e, tais créditos, sendo tratados como commodities, ou seja, mercadoria padronizada para compra e venda. A poluição é uma nova modalidade de mercadoria. Assim como ocorre com a máfia do lixo, dos aterros sanitários, do lixo tóxico e do lixo atômico, estão fazendo do que deveria ser eliminado um “ativo ambiental”.
Os argumentos que justificam o mercado de carbono são louváveis. O apelo para conter o aquecimento global é legítimo. As mudanças climáticas ocasionadas pela ação do ser humano estão mais que comprovadas cientificamente, ainda que alguns céticos se esforcem para derrubar teses e estudos consolidados. Porém, o modus operandi a que se pretende alcançar esses objetivos são questionáveis até para os mais monetaristas dos cientistas econômicos.
Os números apontados são discrepantes: estima-se que U$142 bilhões foram negociados nos derivativos de carbono, contra U$5 bilhões investidos diretamente em projetos de MDL. O que se verifica é que, de fato, há um mercado sem controle, formando uma bolha ambiental prestes a explodir, uma vez que o sistema financeiro mundial está totalmente entrelaçado por garantias que os bancos trocam entre os próprios bancos, as chamadas “trocas de chumbo”. Há um movimento internacional atento, monitorando e denunciando fraudes e corrupções nesses mecanismos conforme relatei no artigo “Economia Verde: o subprime ambiental”.
No sistema financeiro, não existe operação que não tenha garantia real. Não se pode formar um fundo climático sem que haja garantias de liquidez. Usarão todos os papéis que encontrarem pela frente para lastrear seus negócios de altíssimo risco no curtíssimo prazo.
É nesse contexto que está o cerne da polêmica em relação à “economia verde”. Resumindo, a crítica é procedente, pois se estrutura na crença de que o mercado financeiro é soberano e tem capacidade para regular e promover ajustes com as forças do livre mercado, precificando a natureza e, com isso, estabelecendo prazos contratuais, ao gosto do freguês, sem metas e sem regras, opondo-se, assim, à política “comando controle” dos Estados.
Não foi por acaso que o documento final da Rio+20 desconsiderou os princípios acordados na Rio-92: o princípio do poluidor-pagador, o princípio da precaução e o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas.
Dessa forma, promove-se a via mais rápida para a financeirização dos bens ambientais, como água, biodiversidade, minério e florestas (fauna, flora e patrimônio genético), com a conivência e aval dos governos, que transferem suas responsabilidades enquanto Estado para as corporações através do sistema financeiro nos modelos neoliberais mais agressivos dos últimos tempos. No entanto, para que isso aconteça, é necessário desmantelar leis ambientais, afrouxar a fiscalização, flexibilizar regras e engessar os movimentos sociais e ambientais.
Se um país não tem terra e água para plantar, compra (ou rouba) terras em outro continente. Esse movimento especulativo atrai todo tipo de negócios escusos. As terras mais cobiçadas são os territórios dos povos indígenas e das populações tradicionais. Os pequenos proprietários de terras, com mananciais, águas subterrâneas, represas e rios em suas propriedades, também são alvos dos especuladores, que prometem vantagens financeiras agindo com cartas de gaveta (side letters) de compra e venda de áreas vinculantes aos créditos de carbono e de compensações, usando, portanto, as áreas como garantias reais para negociar os tais títulos.
Esse movimento já ocorre na informalidade há 20 (vinte anos), à revelia dos órgãos normatizadores e fiscalizadores, colocando em risco a soberania nacional por conta de conflitos fundiários e confrontos rurais, entre outros fatores territoriais com a militarização.
O mais alarmante é a velha troca de votos por água. É delicada e preocupante a fragilidade das populações que não têm acesso à água, em quantidade e qualidade, e ao saneamento básico. Estas são reféns, há séculos, do voto de cabresto.
Agora, temos uma novidade eleitoral sofisticada: o voto de cabresto do REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação), e suas criativas variáveis, com a correria de diversos governadores e prefeitos assinando acordos com empresas estrangeiras. Resta saber quais são as bases jurídicas nas quais estão fundamentados todos esses acordos para que instituições financeiras internacionais administrem os bens ambientais desta nação. Outro caso interessante envolve ONGs, marqueteando como se fossem instituições financeiras autorizadas a “funcionar” pelo Banco Central do Brasil. As ONGs anunciam produtos, sistemas de comercialização, cadastramento de clientes e negócios sob a lei das OSCs e OSCIPs. Isso pode?
Será que o mercado dos ativos ambientais, cuja natureza jurídica é incerta e extremamente confusa — quando camaleonicamente os players os tratam como commodities trocando, ao sabor dos ventos, para valores mobiliários (valores ambientais) ou para ativos ambientais e sabe-se lá que nome darão aos mesmos bois —, está isento de regras, normas, não se submete ao Código de Defesa do Consumidor, não será processado por prática de propaganda enganosa, entre outras arbitrariedades, abusando da falta de conhecimento técnico da população desavisada?
São essas as perguntas que fizemos aos candidatos e aos seus partidos nas últimas eleições. Enquanto isso, quem viver o Pós-Rio+20 verá!
Nota:
De acordo com o “Projeto de Fortalecimento das Instituições e Infraestrutura do Mercado de Carbono no Brasil”, de autoria dos escritórios Leoni Siqueira Advogados e ASM Asset Management, como proposta para a “Regulamentação dos Ativos Ambientais no Brasil”, os créditos de carbono, ou RCE (Redução Certificada de Emissão), são um ativo financeiro com natureza jurídica de título mobiliário impróprio de legitimação.
Segundo o parecer jurídico e tributário publicado na Revista da Receita Federal – Estudos Tributários e Aduaneiros (2015), “A natureza jurídica e a incidência de tributos federais sobre os negócios jurídicos envolvendo as Reduções Certificadas de Emissão (RCE (Créditos de Carbono))”, do auditor-fiscal e julgador da Sétima Turma da Delegacia da Receita Federal de Julgamento de São Paulo, Mauro José Silva, concluiu ser adequado compreender as RCEs como bem incorpóreo, uma vez que a commodity pressupõe a existência material de um bem que se sujeitará à distribuição para consumo e, portanto, não admitindo as RCEs como commodities. E se não são commodities como gênero, não há espaço para que sejam admitidas na espécie das commodities ambientais, em sentido jurídico.
Referências:
EL KHALILI, Amyra. Palestra proferida na 22ª Bienal Internacional do Livro promovida pela Editora Fórum em 13 ago. 2012 e na 94ª reunião do Fórum Permanente de Direito do Ambiente da Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), Educação e Sustentabilidade após RIO+20, 03. ago. 2012.
EL KHALILI, Amyra. Pós-Rio+20 – Uma análise crítica da economia verde e da natureza jurídica dos créditos ambientais. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 11, n. 65, p. 9-10, set/out. 2012.
EL KHALILI, Amyra. As commodities ambientais e a métrica do carbono. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 16, n. 93, p.26-31, maio./jun. 2017.
Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.