O que aprender com o filme As Sufragistas?
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- Cassiano Terra Rodrigues
- 04/05/2016
“Procurar no cinema a ‘representação do passado’ é tarefa injustificada, porque ou tal representação é falsa ou totalmente maquiada (filmes comerciais) ou não pretende ser real (nos filmes de autor) mas, repito, simplesmente metafórica. Pois, sabe-se, o ‘sentimento da história’ é uma coisa muito poética e pode ser suscitado dentro de nós e comover-nos até as lágrimas por qualquer coisa, porque o que nos chama a voltar atrás é tão humano e necessário como o que nos impulsiona a andar adiante”.
Pier Paolo Pasolini. O sentimento da história. 1970*
O filme As sufragistas (Suffragette, dir. Sarah Gavron, Reino Unido, 2015) começa avisando que vai contar a história, e não apenas uma história. Nos letreiros iniciais, o espectador lê que a radicalização do movimento das sufragistas na Inglaterra do começo do século 20 levou à troca dos argumentos pelas ações. O expectador vai ver na tela a história de algumas das mulheres que lutaram e morreram em favor do direito feminino de votar. O filme de fato inspira-se na vida de mulheres reais, mesmo que faça uso do recurso de apresentar uma personagem fictícia para aproximar o espectador da história tida como real.
Os problemas do filme começam aí. Roger Erbert, o famoso crítico de cinema estadunidense, teria certa vez dito que o importante não é o que o filme mostra, mas como ele mostra. As Sufragistas é um exemplo perfeito disso. Tomando muito de sua força do fato de que a plateia dificilmente pode ser contra a luta das protagonistas, o roteiro mostra praticamente todos os homens como antagonistas das mulheres, se não como representantes do mal: o marido da personagem principal é um banana, um fraco que não consegue evitar reproduzir o machismo de seu meio, mesmo sem qualquer convicção firme de seus atos; o patrão, além de explorador, é um estuprador misógino, para dizer o mínimo; os políticos e policiais, no máximo uns hipócritas presunçosos; o marido bonzinho da outra personagem é apenas aquele que colabora, agindo no fim das contas autoritariamente, ainda que com boas intenções; e as mulheres que não são feministas, bem, quanto a elas a plateia fica se perguntando: “mas como podem?” E, se a personagem principal é o lado do bem, a identificação da plateia é imediata e dificilmente poderia ser diferente.
O chavão narrativo funciona e é bem trabalhado por uma diretora que maneja uma câmera muito segura, prefere planos fechados de modo a tornar a plateia íntima e, não menos importante, dirige atrizes excepcionais (especialmente Carey Mulligan, no papel principal de Maud, presenteia a plateia com uma interpretação estupenda). Tudo isso dá ao drama social um tom particular, como se ela dissesse: este problema também é teu, é a tua, a nossa vida. A dicotomia bem/mal tem ainda outra função de ser: ao mesmo tempo em que captura os sentimentos da plateia, o filme conecta de maneira sistêmica todos os conflitos femininos contra a opressão patriarcal – a opressão sexual está ligada à econômica, que está ligada ao moralismo da sociedade, que está ligado à maternidade, que está ligado à dependência econômica etc.
A certa altura, Maud pergunta ao marido: - “Se tivermos uma filha, que vida ela terá?” – “A mesma que você”, responde ele. Quer dizer, o marido reproduz o status quo social dentro de casa. Nisso, o filme não deixa dúvidas ao espectador: desde o início, o marido explora a mulher (toma conta de seu salário), a voz dele silencia a dela (interrompe-a mais de uma vez), reproduzindo os padrões sociais de dominação sem ter plena consciência do que faz. Mesmo assim, é difícil a ela romper, pois o afeto é forte entre eles. Não há dúvidas: é uma denúncia do machismo e ao mesmo tempo uma homenagem às mulheres, sua maneira de ver o mundo, sua... feminilidade? Esse é justamente o problema. Parafraseando o poeta, na força do filme está sua fraqueza.
Ao mostrar a luta das sufragistas, o filme na verdade apaga a história que quer contar, pois o que mostra condiz com a atual crítica feminista, e não com o que foi o movimento sufragista. O filme faz questão de mostrar que até mesmo mulheres que trabalhavam para o poder instituído condoem-se do drama das sufragistas, ignorando completamente as razões e motivações das que permaneceram indiferentes ou opositoras ao movimento sufragista, sequer criticando-as, se fosse o caso. Não que um filme – qualquer narrativa – precise ser fiel à história para ganhar legitimidade – a boa ficção independe dos fatos. Mas, no caso do filme, vale a pena problematizar a relação entre ficção e fatos históricos
Vamos partir da sequência já citada. Para entender o quão difícil é julgar o valor da ficção pelo da história (mesmo porque a fronteira entre as duas não é pacificamente definível), basta lembrar o ganho de independência e potencial revolucionário que os métodos anticoncepcionais proporcionaram às mulheres: a vida dos filhos não está destinada a ser a cópia fiel da dos pais, ao contrário do que o marido de Maud diz. Um pequeno diálogo bem filmado evidencia o que levou séculos para amadurecer na consciência das pessoas. O controle da natalidade possibilitou às mulheres, principalmente às operárias, ter novos valores, experimentar novos arranjos familiares e alimentar outras expectativas. Isso é tão mais importante se lembrarmos que durante muito tempo no século 20, e mesmo até hoje, grande parte da população feminina mundial ainda é obrigada a casar como uma forma de garantir ascensão ou mesmo segurança social.
Vale lembrar também o quanto a industrialização afetou a vida feminina. Nas sociedades agrárias, não só o lugar de trabalho era o mesmo que o da vida familiar como havia esferas muito bem determinadas de poder feminino, nas quais a interferência masculina era considerada ilegítima. Se as mulheres não podiam participar da vida pública, da política propriamente dita (daí a ironia de comédias como Lisístrata, de Aristófanes, ou A megera domada, de Shakespeare), ao menos em casa elas tinham seus domínios bem delimitados e respeitados – a elas cabia a educação das crianças e a administração da comida, funções essenciais nas sociedades agrárias durante milênios. A industrialização acabou com tudo isso, tornando a vida das mulheres nas cidades muito difícil em termos absolutamente diferentes.
O filme mostra só um aspecto da ascensão das mulheres à vida pública. A história da radicalização do movimento sufragista está bem representada no filme, principalmente pela representação das ações – que hoje seria facilmente desqualificada como terrorista, imaginem por quem – das militantes do Sindicato Social e Político das Mulheres (Women’s Social and Political Union, ou WSPU), organização que passou a incentivar ações de desobediência civil quando ficou claro que discursos no parlamento não bastariam para mudar a situação – ações, e não palavras, é o bordão de Emmeline Pankhurst, fundadora do WSPU (vivida por Meryl Streep no filme, em participação especial).
Com isso, mostra que as mulheres conquistaram a atenção pública como pessoas, com aspirações e interesses próprios, a custo de muito sacrifício. Somente lutando por seu lugar na vida pública conseguiram as mulheres ter plenos direitos sobre suas vidas privadas, recuperando sua autonomia dentro das famílias – a história de como Maud foi separada de seu filho sugere essa relação. No entanto, se o filme mostra a força e a determinação das sufragistas contra a violência masculina, ele peca ao esconder que essa mesma força evidenciava os próprios limites do movimento sufragista. Quanto mais forte, mais limitado ele se tornou. E o filme também: quanto mais faz a plateia se identificar com a luta e os anseios da protagonista, mais fraco se torna.
O movimento sufragista é mostrado no filme como um movimento totalmente autônomo, de modo a realçar o protagonismo feminino como um fenômeno que ultrapassou as barreiras das classes sociais quando as mulheres se tornaram conscientes de si. Isso fica claro pelo envolvimento sincero entre a pobre lavadeira Maud e a rica Mrs. Houghton (Romola Garai), mas é uma mentira histórica. O movimento sufragista britânico nunca foi totalmente autônomo e independente como o filme quer mostrar, e muito menos a luta sufragista transcendeu as rígidas barreiras classistas da sociedade vitoriana (a Rainha Vitória morreu em 1900). Ao contrário, a maioria das sufragistas jamais entenderam que teriam êxito isoladas, levantando apenas a bandeira do direito ao voto feminino. O apelo do movimento sufragista era muito pequeno, uma vez que a maioria absoluta das mulheres, na Inglaterra e principalmente fora dela, ainda vivia em condições terrivelmente mais precárias que as muitas operárias londrinas (lembremos que o Império britânico naquela época se estendia praticamente por todo o globo, de uma maneira ou de outra). Esse é um dos fatores que explica a oposição sofrida pelas sufragistas por parte de muitas mulheres que não se reconheciam nas reivindicações urbanas e burguesas das sufragistas (porque o sistema de eleição burguês é, de fato, muito pouco representativo, como não nos deixa esquecer a atual composição do Congresso Nacional). Rosa Luxemburgo, por exemplo, não via necessidade de levantar uma bandeira especificamente feminista, ao menos não nos termos do movimento sufragista, por considerar que a luta revolucionária era muito mais ampla e fundamental.
Contudo, é verdade que os movimentos operários e os sindicatos – socialistas, anarquistas ou outros – viam as mulheres como competidoras a serem eliminadas do mercado de trabalho. Apesar de ganharem muito menos e seus salários serem sempre considerados como complementares às rendas dos homens (maridos, pais ou irmãos), o fato é que muitas mulheres empregadas significava mais lucro para os patrões e menos oportunidades para os homens. Isso impunha às mulheres engajadas nas lutas operárias mais um pesado fardo, além de todos os outros, que era conquistar seu próprio lugar na luta revolucionária. Para essas mulheres, o direito de participar da política burguesa pelo voto só podia parecer algo muito pequeno e secundário, uma luta que só fazia sentido às mulheres que já pertenciam às classes burguesas – e a trajetória de Rosa é a exceção que confirma a regra daquele contexto.
Apenas posteriormente ficou clara a especificidade da luta feminista, dado o machismo arraigado na esquerda. Pensemos, então, com a história: se mesmo a resolução dos problemas dos operários não seria necessariamente um ganho para as operárias (quem dirá para as mulheres em geral), o que um lugar no espaço público da ordem burguesa imperialista e patriarcal significaria? Mas essa não é uma pergunta feita pelo filme. Ao contrário: partindo acriticamente do direito ao voto como pressuposto de valor absoluto, o filme mostra a luta das sufragistas muito bem acolhida igualmente por mulheres pobres operárias e mulheres burguesas pertencentes às classes mais favorecidas – o rechaço das operárias à burguesa Mrs. Houghton é abandonado no começo do filme para nunca mais voltar à tela.
O fato é que muitas mulheres se envolveram nas lutas socialistas e anarquistas ao perceberem que apenas o direito ao voto, uma vez conquistado, dificilmente resolveria o problema da maioria das mulheres pobres do mundo. Mesmo assim, as bandeiras dos trabalhadores não passaram às prioridades das sufragistas, que permaneceram mais preocupadas com o direito ao voto, o acesso ao ensino superior e a igualdade política formal, numa postura tipicamente burguesa de desconsiderar as dificuldades reais em busca de um ideal pretensamente isento e universal. Não à toa, quando a Primeira Guerra Mundial começou, o movimento sufragista praticamente desapareceu na Inglaterra, sufocado pelo nacionalismo, enquanto que o direito ao voto foi um dos direitos conquistados pelas mulheres na Rússia, como consequência da Revolução socialista.
E, sempre vale lembrar, quando Margareth Thatcher se tornou Primeira-Ministra da Inglaterra, a onda neoliberal ganhou força e todos os trabalhadores – homens e mulheres – sofreram as consequências amargas do tal ajuste fiscal, dentro e fora da Inglaterra, inclusive com a consequência de reforçar muitas das antigas coerções sociais do patriarcado imperial. Até hoje os salários das mulheres são significativamente menores do que os dos homens para os mesmos ou equivalentes cargos; e o salários das mulheres negras é ainda muito menor, quando conseguem os mesmos ou equivalentes cargos. Qualquer semelhança com algum contexto conhecido do leitor não é mera coincidência.
Por isso, além de não mostrar o contexto histórico em que se deu a luta das sufragistas, o filme chega mesmo a falseá-lo, dando a impressão de que a luta das sufragistas não só conseguiu transpor barreiras de classe como ainda conseguiu se manter independente de outras lutas sociais da época. Como o filme aprofunda as dores da personagem principal, a plateia não consegue não se emocionar com o sofrimento dela. Essa identificação, porém, oblitera o senso crítico e faz com que aceitemos sem questionar tudo o que o filme nos mostra. Na nossa época atual, movida a excitações virtuais, o filme não falha em dar aos expectadores o tanto de melodrama esperado. É como se ele nos dissesse: “afinal de contas, que espécie de bolsonista, ser torpe ou machista canalha é você que pode ser contra participação a igualitária das mulheres na esfera pública?” E, de fato, é impossível ser contra! Isso, porém, não significa que uma narrativa qualquer seja válida enquanto tal apenas por ser feminista. Pois, se o nacionalismo é o último refúgio dos canalhas, o sentimentalismo no cinema é o primeiro recurso dos cínicos.
O ponto é simples: nenhum filme pode ser visto como um retrato fiel de uma época histórica – principalmente os que se pretendem históricos, como As sufragistas. Dito isso, parece-me muito mais profícuo ver o filme como um juízo sobre a história, quer dizer, como uma avaliação do que aquela luta e aquele momento históricos representam para nós, hoje. Sem necessariamente deixar de apresentar uma perspectiva burguesa e centrada num protagonismo historicamente questionável, o filme pode mostrar algo de proveitoso, pois de fato indica que as conquistas de hoje não se deram sem muita luta das gerações anteriores – o que também pode ser uma lição para o futuro: nada se conquista sem luta.
Uma pena a escolha da perspectiva emotiva eclipsar o contexto das lutas reais: por mais defensável que seja o seu conteúdo, o filme não está livre de certo cinismo, ou melhor, uma má fé em sentido sartriano: tentando se fazer passar como história de lutas reais, o filme conquista a plateia silenciando totalmente as vozes que de fato deram ao feminismo de todo o século 20 muito de sua força. Onde estão as mulheres operárias e socialistas? Em que as pautas anti-imperialistas e antibélicas de 1914 contribuíram para a emancipação feminina? Nada disso o filme mostra; ao contrário, faz questão de não mostrar.
Essa é a escolha que faz o filme andar no fio da navalha. E, como filme, tem de ser analisado justamente por esse aspecto: como constrói sua narrativa? O que diz e o que não quer dizer? E, daí, o que ela tem a nos dizer, ou seja, o que a luta das sufragistas significa para nós hoje?
O mais importante da escolha narrativa feita está justamente no ponto mais fraco do filme, que é também o seu mais forte: Maud. Ao fazer a plateia se identificar com a personagem principal, forçando a mão no sentimentalismo (as imagens de intimidade, a ênfase no isolamento...), a aposta do filme é mostrar o quanto as escolhas das mulheres daquela época foram dramáticas para elas e decisivas para nós. Seu legado é imensurável e sob muitos aspectos ainda está aberto, no sentido de que cabe a nós levá-lo adiante. Se visto assim, as contradições do filme tornam-se reveladoras – tanto do que o filme pretende esconder quanto do que é capaz de revelar sobre nossos tempos atuais: qual a contradição entre ser feminista e ser de direita? Ou só se pode ser feminista à esquerda? Por quê?
Maud começa o filme dizendo que não é uma sufragista – no começo, ela é uma dedicada mãe, submissa esposa e competente operária. Um pouco antes da metade, ela se declara às autoridades públicas uma convicta sufragista. Termina o filme engajando-se na mais ousada ação feminista da época, que resultou na morte de Emily W. Davison (as sequências originas da época podem ser vistas no YouTube! Uma análise delas pode ser vista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=-W_URTWjgR0).
O filme, então, pode ser lido na chave dos questionamentos de Simone de Beauvoir: o que é ser mulher? Ninguém nasce mulher, torna-se. E se levarmos o percurso de Maud a sério (talvez mais a sério do que o próprio filme é capaz...?), ser mulher é tornar-se atuante na esfera pública, recusar a limitação à esfera exclusivamente privada e agir livremente em domínios ainda hoje moldados pelo poder masculino, com o qual as mulheres mantêm relações não apenas de ordem político-econômica, como patrão/empregado, mas também afetivas, de dependência mútua e perene – enquanto existirem homens e mulheres, haverá diferenças e afetos também.
Se a liberdade, como dizia Rosa Luxemburgo, é sempre a liberdade do outro, daquele que pensa, sente e age diferente, então nenhum vínculo entre homens e mulheres pode servir para justificar a submissão econômica, a desigualdade de oportunidades e direitos políticos, a exploração sexual a que milhões de mulheres ainda são submetidas pelos homens, independente das diferenças entre classes sociais e credos políticos. Por isso, ainda vale dizer que se há inúmeras formas de injustiça, a justiça permanece una. Eis porque é tão mais imprescindível construirmos outra história, outras narrativas, outras imagens.
Cordiais Saudações.
FICA A DICA: o texto de Pasolini citado de início pode ser lido em tradução de Vinícius Nicastro Honesko no blog Flanagens: http://flanagens.blogspot.com.br/2011/12/o-sentimento-da-historia.html?m=1.
O blog é um verdadeiro oásis no deserto da Internet. Vale explorar.
Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia na PUC-SP e admirador de outras histórias e imagens femininas.
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