A verdade da política da pós-verdade
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- Cassiano Terra Rodrigues
- 30/01/2017
“Políticos mentem. Ninguém mais tem ilusões, todos são iguais”. Esse nivelamento rasteiro permite escolhas rasteiras.
Agradeço a José Crisóstomo de Souza e Adriana Silveira pelas sugestões que me permitiram melhorar o texto. A responsabilidade total pelo escrito permanece minha.
Como assim pós?
Em 2016, “pós-verdade” tornou-se tão comum que foi escolhida a palavra do ano de 2016 pelo dicionário Oxford. A justificativa é uma expansão do significado de “pós”. O prefixo deixou de significar apenas depois de, sendo usado também para demarcar o sentido de “próprio de uma época em que certas ideias e conceitos perderam importância”. Se nossa época é a da pós-verdade, então a verdade para nós não importa. Pouca gente talvez discorde de que a política é o palco maior dessa desimportância. Constatamos: nos nossos tempos, a verdade se tornou irrelevante, os fatos se tornaram irrelevantes. Mas, pergunto, em nome de quê?
As declarações de Corey Lewandowski, ex-coordenador da campanha de Trump, não deixam dúvidas: o “povo americano” entendeu que Trump é como qualquer pessoa comum, “ às vezes – quando você conversa com as pessoas, por exemplo, à mesa do jantar ou num bar – você vai dizer coisas e às vezes você não tem todos os fatos para sustentar o que diz”. Pouco importa se Trump diz verdades ou não, importa quem vai acreditar nele, importa o efeito que suas declarações provocam, o sentimento causado nas pessoas pelo discurso. Trump conseguiu causar efeito, não há como negar. Sua campanha explorou à exaustão a persona dele como um sem noção que fala todo tipo de barbaridades sem freio. Isso o aproximou de muita gente comum, deu a impressão de que ele é um cara qualquer. O problema é que Trump não é qualquer um num bar e a eleição presidencial dos EUA não é o jantar de sábado na casa da vovó. Muita gente simplesmente aceitou suas declarações sem procurar compreendê-las – e por que deveriam, se não são verdadeiras mesmo? Mas, por outro lado, ele diz o que muita gente quer dizer e não pode, então, na cabeça dessa gente que com ele concorda, se não são verdadeiras, deveriam ser. Né não?
Fica fácil entender: quanto mais a política torna-se exageradamente emotiva e irracional, mais será recusada e invalidada. Com o aumento de votos nulos, brancos e abstenções, sequer o princípio do voto da maioria pode ainda ser sustentado. A própria ideia de votos “válidos” é uma falácia: a soma dos votos dos primeiros candidatos sequer alcança os votos nulos e em branco. Exemplos não faltam, lá como aqui, ali, acolá. A desilusão com as falhas da democracia representativa em moldes burgueses elege há anos um candidato chamado Ninguém, talvez descendente do mesmo Ninguém que furou o único olho do ciclope Polifemo.
Chi vuol esser lieto, sia; di doman non c’è certezza
Mas a mentira sempre fez parte da política, não é verdade? Ao menos desde Maquiavel, sabemos que mentir faz parte do jogo do poder. Sem jamais ter se comprometido com o princípio rasteiro que lhe garantiu lugar na história universal da infâmia, ele defendia, sim, que certos fins podem justificar certos meios: conforme as circunstâncias, é útil ser pontualmente imoral. Não se sustenta a leitura, apressada e superficial, de que ele entendia a política como um âmbito de amoralidade no qual todos os valores são relativos conforme os interesses do momento. Maquiavel jamais defenderia a mentira, a traição e a violência como equivalentes à verdade, à lealdade e à vida, na política ou em qualquer outro domínio. Para ele, é fundamental reconhecer a imoralidade de certas ações sem escamoteá-la, porque se as circunstâncias exigirem é útil servir-se delas.
No entanto, imoralidades são autorizadas apenas em nome de um bem maior, que ele identificava, na sua época, à unificação da Itália segundo princípios republicanos. A mentira pressupõe a verdade, ela não diminui sua importância, ao contrário, é necessário saber distinguir muito bem uma da outra, inclusive porque sem isso seria impossível saber quando e como mentir. E mais do que mentir e cometer violências, Maquiavel propõe o uso da inteligência contra a ferocidade cega dos inimigos: para temperar a fúria e a força dos leões, uma boa dose de astúcia própria das raposas é sempre valiosa.
O que temos hoje é muito diferente. O blefe domina o que hoje chamam de política e nivela tudo pela sua régua. Mas a quem interessa igualar a ação política ao blefar? Diferentemente do que temos hoje, a política (ou a grande política, se falarmos com Gramsci) sempre teve a verdade por princípio, como atividade de definição das prioridades coletivas, das finalidades sociais, das metas. Desde Platão, o controle da vida é um problema político inevitável e as perguntas postas em público sempre foram: controlar a vida em nome de quê? Qual o objetivo? Quando interesses não explícitos passam a ser mais determinantes do que interesses públicos, a política perde terreno para a administração do imediato. O blefe passa, assim, ao primeiro plano.
A persona Trump evidencia esse movimento. A política se dá no domínio do puro efeito discursivo, da mera enunciação. Como sabemos, falar é fazer, e o que Trump faz muito bem é causar reações na audiência, sem qualquer preocupação com os fatos. Uma das maiores barbaridades por ele ditas na campanha, a da construção de um muro separando EUA e México, foi tão estapafúrdia que funcionou: um grande industrial mexicano ofereceu-se para fornecer-lhe o cimento, pensando nos bons rendimentos dos negócios. Trump aposta: na política, no mundo das competições empresariais ou no pôquer valem a agressividade e o improviso rápido. Sua última bravata foi: “Além de ter ganhado com folga no Colégio Eleitoral, ganhei no voto popular se você deduzir milhões de pessoas que votaram ilegalmente”, implicando novamente que houve fraude nas eleições. E não é essa a sensação geral, a de que o sistema político está totalmente fraudado?
Trump é o maior dos blefadores, mas não o único. Também Doria, Bolsonaro, Crivella, Russomano e Lula (entre muitos outros...) blefam magistralmente, apesar de seus defensores não gostarem de admitir. E blefam sem vergonha de blefar. Conforme a lógica dos marqueteiros, pouco importa se o que dizem será desmentido ou não, se sua imagem é coerente com sua história de vida ou não, importa que há quem compre. A diferença entre suas personas é de grau, não de essência. O que conta é a capacidade de levantar as massas, provocar os ânimos e angariar o maior número de seguidores, pseudo-crentes e acríticos.
O discurso visa acordar o ódio (ou o amor, ou o medo, ou a ganância, ou a compaixão etc.) dormente nas pessoas e, para isso, quaisquer meios valem. Além da verdade e da mentira, desprezam completamente todas as críticas. Richard Stengel, subsecretário de Estado para a diplomacia pública dos EUA, acertou na mosca com sua própria versão do famoso print the legend: “Gostamos de pensar que a verdade tem de lutar pelo seu lugar no mercado [minha ênfase] das ideias. Pois bem, hoje em dia ela pode estar perdendo nesse mercado. Simplesmente ter mensagens baseadas em fatos não é suficiente para ganhar a guerra da informação”.
A nossa versão disso é o atrapalhado não temos provas, mas temos convicções, o que evidencia não se tratar de mera retórica nos moldes tradicionais. Se os políticos tradicionais sempre podiam encontrar razões para justificar suas mentiras e o voltar atrás nas palavras empenhadas (veja-se o caso de José Serra), os de hoje sequer se preocupam com justificativas, pois não querem mentir para manipular os fatos, mas as pessoas.
Os de antigamente também, não? Sim, mas eles usavam a credibilidade para persuadir, ao passo que os atuais persuadem pela sua total falta de credibilidade. Trump foi tão desmentido que ganhou a eleição. Dane-se o acordo com os fatos, os fatos é que têm que concordar comigo!
Entre nós, o mesmo se dá: quando um pedido de impeachment de Temer foi protocolado na Câmara dos Deputados, Janaína Paschoal, coautora do pedido contra Dilma Rousseff, alega falta de base jurídica. No desgastado e improfícuo debate entre os doutos, parece ter mais razão quem não vê razão alguma em lugar algum: “Não vejo base [para o impeachment de Temer]”, disse o professor Floriano Peixoto de Azevedo Marques, respeitado jurista e titular da Faculdade de Direito da USP, “se bem que, no caso da Dilma, não tinha também e foi declarado o impeachment”.
Nesse contexto, não admira ser inútil replicar exaustivamente as conversas que denunciam a armação do Impeachment para parar as operações da Polícia Federal. Temer até ganhou o prêmio “Brasileiro do Ano”, já dado, aliás, a Lula há alguns anos. É preocupante, porém, que esse desprezo pela verdade encontre tanto respaldo social. Em toda parte, esse tipo de raciocínio fingido é assustadoramente dominante. Onde viceja o antimétodo, fenece a atitude genuinamente científica: em vez de raciocinar para estabelecer alguma conclusão, primeiro adotamos uma conclusão e só então construímos um raciocínio com o objetivo de justificar essa adoção. Esse é o mecanismo dos algoritmos na Internet: apenas replicam infinitamente nas nossas telas conteúdos parecidos com os que já partilhamos e aos quais, de uma ou outra maneira, demos nossa aprovação. Isso fortalece a falácia da verdade ser uma narrativa como qualquer outra, a qual pode ser preferida ou preterida conforme preferências pessoais. Perguntar se a vontade de crer é efeito dos algoritmos, ou se os algoritmos correspondem a uma niilista e já antiga vontade de crer, é como perguntar quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha. É o outro lado da pós-moeda: a melhor narrativa é a mais aceita, aquela que mais “emociona” as pessoas é a melhor. – You can’t handle the truth! – But frankly, my dear, I don’t give a damn.
Com a Internet e a espetacularização desmedida da vida, é cada vez maior a sensação de vivermos todos num Show de Truman, ou numa Matrix. Cresce o apego acrítico das pessoas às suas próprias convicções. Não se trata de informar, dizia Umberto Eco, mas de produzir consenso por meio da desinformação. Onde está o real? Como verificar uma informação? Como descobrir o que é verdade ou mentira? Impossível. Por isso mesmo abundam também as constatações: os desastres são mostrados, os escândalos divulgados, as delações premiadas e as informações são exatas. Mas como entender tudo isso? Na dúvida, compartilhamos. Compartilhamos. Fragmentamos. Diluímos. Ou liquidificamos, como prefere Zygmunt Bauman, alçado midiaticamente a posto de arauto de nossas autodecepções.
O resultado são dicotomias estanques: bem e mal; real e virtual; nós e eles. No fim das contas, chegamos apenas à impossibilidade de pensar de maneira menos ingênua, e, se tiver razão Eco, imbecilizamo-nos todos. O nascemorrenasce do falso é implacável: cremos mais nas propagandas de celular. Quando questionamos, é sempre de imediato e com fôlego curto. Some-se a isso o infinito círculo de vulgarização midiática das incertezas da ciência que, como Trump, já entrou até n’Os Simpsons: afinal, comer bananas faz bem ou mal? Não era o ovo frito o vilão da história?
E, de fato, se ainda pensarmos existir alguma verdade universal, pura e eterna, é impossível ir além de constatações simplistas. Uma verdade assim estaria mesmo fora de alcance humano, só compreensível a divindades, pois nosso conhecimento é feito de opiniões, hipóteses, tentativas e erros. Nossas representações são sempre parciais e ninguém é dono da verdade. Por isso mesmo é preciso analisá-las: alguém pode em algum momento conhecer alguma verdade. Se fosse absolutamente impossível distinguir uma declaração verdadeira de uma falsa, até a leitura deste texto seria impossível. Se estamos inevitavelmente enredados na linguagem, nem por isso tudo que experimentamos pode ser reduzido às nossas idiossincráticas escolhas de vocabulário. O problema está em como reconciliar duas esferas, a da experiência de fenômenos irredutíveis à nossa imaginação e a da representação dessa experiência. Reduzir a primeira à segunda é o erro que sustenta a política da pós-verdade.
A bolha do ursinho Puff, que na verdade é ursinha
A ignorância quanto aos métodos empíricos da pesquisa científica é um dos mais amargos fracassos do Iluminismo: a ciência não produz crenças estáveis, mas, na verdade, é uma atividade que continuamente busca ir além de si mesma, sempre em busca de novas e melhores conclusões, mirando o ideal da verdade divina, num movimento que torna todas as nossas crenças e conclusões atuais em opiniões meramente provisórias. O cientista sabe que essa verdade ideal é inatingível, mas não abandona a meta. E, de certa maneira, a vontade de crer impele a investigação científica e também as pessoas a escolherem um candidato como Trump, ou como os pastores da ganância e da religião comercializada de hoje em dia: eu posso até ter dúvidas, mas confio nas certezas dele. Abandonamos, então, a diferença entre o genuíno conhecimento científico e o raciocínio fingido? Se assim fizermos, teremos cedido completamente à chantagem pseudo-nietzschiana de que a verdade é só uma moeda gasta e, por isso, sem qualquer valor, bem ao gosto dos pós-modernismos de direita (embora alguns se pretendam de esquerda; ou vice-versa).
Ora, uma coisa é dizer que estamos imobilizados numa sensação de falta de verdade e sem noção de realidade, outra muito diferente é defender que a própria realidade é efeito narrativo e não há distinção possível entre o real e seus simulacros. A verdade se tornou para nós algo muito mais complexo do que uma pontual identificação entre ideias e fatos, mas isso não nos escusa para recusá-la totalmente. Perdoem-me meus amigos lógicos se faço aqui uma grosseira simplificação de Alfred Tarski, mas se não somos capazes de enunciar uma verdade de fato e as condições dessa enunciação numa única linguagem, podemos sempre recorrer a uma metalinguagem, isto é, podemos sempre falar sobre como falamos, e esse exercício nos leva à autorreflexão, a tomar distância de nós mesmos, o que nunca foi fácil nem simples. Mas é a única maneira que temos de furar a bolha.
Sempre as mesmas perguntinhas incômodas...
No Zeitgeist contemporâneo, volta e meia nos deparamos com o tremendo papo-furado de que tudo são convenções socioculturais, a verdade não existe e a existência é uma grande ilusão, da qual só o zen-xintô-yoga-neo-tao-budismo nos libertará.
Como disse, porém, um velho poeta (esse sim, verdadeiro fascista): bello, ma non funziona. Quando nascemos, o mundo já é. Tomar consciência de nós mesmos é um processo: em algum momento de nossas vidas, nós nos damos conta de estar em meio a coisas que já existiam e que têm inúmeras características, mais do que conseguimos contar. Nossa própria vida mental é resultado de raciocínios que fazemos para explicar a relação entre os mundos interno e externo: nós caracterizamos as coisas de maneira ideal além de considerá-las objetivamente, como independentes de nós mesmos. Nosso próprio self é o resultado de um raciocínio, o que chamamos de autoconsciência é a conclusão de um processo ilativo.
Depois, passamos o resto da vida encontrando premissas para reforçar a conclusão. Mas quase nunca pensamos nisso, porque tal tipo de autorreflexão só é suscitada quando alguma ocasião nos apresenta algo que não se adequa aos nossos hábitos mentais. Sem isso, podemos passar a vida toda sem nunca reconhecer a possibilidade do questionamento, e a diferença entre o que é real ou ficção então ou é artificial ou é absoluta. Esse tipo de questionamento só pode surgir do desconforto, com uma dúvida real, e não é algo que podemos fazer de conta duvidar. Quer dizer, podemos, mas aí, quem precisaria de gênios enganadores? Acontece que a possibilidade de estar sendo enganadas sequer passa pela cabeça das pessoas: ora, se é um jornal, por que mentiriam para mim? Jornal não é pra informar? Informação não é verdade?
Essa atitude não é absurda, mas insuficiente. Absurdo é pensar que não somos manipuláveis. Esse pensamento é avesso à autocrítica, princípio básico da genuína atitude científica: reconhecer os erros, revisar as conclusões e pô-las à prova pública, para qualquer pessoa poder averiguar. O pressuposto da publicidade do conhecimento é a vida da ciência, manter segredos é próprio de interesses de outras ordens. Se o conhecimento científico não é infalível e suas conclusões nunca são suficientes, é porque a verdade científica só é conhecida quando corrigimos nossos próprios erros e conseguimos medir o tamanho de nossa ignorância. E tal processo só pode ser válido se for público, isto é, coletivo. Querer aprender com os próprios erros é o contrário do raciocínio fingido comum hoje em dia, mas é difícil e muitas vezes doloroso.
Para aprender, temos de ir além das meras constatações de fato sem esquecê-los. Uma vantagem nisso, talvez pequena, mas ainda assim importante, é adquirir a compreensão de como podemos nos enganar quando relacionamos nossas narrativas pessoais aos acontecimentos externos. Em outras palavras, é preciso questionar a maneira como interpretamos as representações que fazemos dos fatos. Muito mais fácil do que analisar as causas é enumerar constatações. Interpretar a sequência e o entrelaçamento dos acontecimentos, dar uma explicação para a continuidade entre eles depois de pensar, estudar, debater, ouvir outras vozes e argumentos, dar espaço a diferentes possibilidades, tudo isso é muito trabalhoso. A quem se fecha em posições absolutas, qualquer perguntinha simples – Quem? Como? Por quê? – é um grande incômodo.
As emoções são como as flores selvagens e não estou brincando
Hoje em dia, acostumamo-nos com a ideia da mentira, principalmente em política. Políticos mentem. Ninguém mais tem ilusões, todos são iguais. Esse nivelamento rasteiro permite escolhas rasteiras: qualquer um que apareça diferente do comum é melhor que o já conhecido. Para manter a ordem social vigente, os poderes que estão por trás das eleições, os grandes financiadores de campanhas, dependem de não questionarmos a sua interpretação da verdade, assumindo-a como a nossa.
Ora, a verdade sempre foi entendida como o acordo entre as palavras e as coisas, entre as representações e os fatos, mas esse acordo pode ser entendido de diversas maneiras, interpretado de vários ângulos, o que não significa que tudo é subjetivo, relativo ou coisa que o valha. Por diversos caminhos se chega à verdade, como dizia Agostinho. Por que, então, devemos nos contentar com apenas um único caminho? Por que não questionar as interpretações oferecidas dessa concordância em vez de desqualificar a própria verdade? Pensando assim, Richard Rorty, recentemente lembrado por ter “previsto” a eleição de Trump, tinha mesmo razão: a falência de uma boa parte da esquerda deve-se à incapacidade de dialogar com as pessoas cujos interesses pretendeu defender.
Aceitando a perfectibilidade do “sistema”, quer dizer, abandonando o discurso mais radical da transformação em nome de ideias menos polêmicas e por isso mesmo mais vagas, como “governabilidade”, “fazer o que for possível” etc., o pensamento à esquerda cedeu ao charme da pós-verdade. O próprio Rorty foi um dos críticos da distinção entre uso e interpretação e da tentativa de descrever a realidade tal como ela é. Contudo, ele também defendia que a provisoriedade e a falibilidade do nosso saber não bastam para desistirmos de estabelecer critérios para interpretar como pensamos ou descrevemos o mundo. Ou arriscamos interpretações e as submetemos à prova pública, ou então cedemos a um niilismo fácil e conformista, dizendo que como não pedimos para nascer, também não devemos fazer esforço para morrer. Pífio. Surpresa alguma o próprio Rorty ter nostalgicamente escrito sobre Trotsky e as orquídeas selvagens...
Quanto mais reagirmos politicamente com emoções as mais primitivas, mais seremos manipulados, mais estaremos à mercê de interesses que desconhecemos. Vivemos num tempo de graves e globais ameaças à democracia. É fundamental resistir à chantagem irracionalista, muito mais útil aos tiranos e sicofantas do que aos pobres, desterrados e espoliados, a imensa maioria de trabalhadores do mundo. É preciso retomar os canais de comunicação com o público – não falo apenas dos media, aliás, falo além deles: é imprescindível resistir aos media tais como hoje são dirigidos, mas a resistência deve almejar a invenção de meios de compartilhar o conhecimento que não se reduzam a mercadorias e não se pautem exclusivamente pelas reações emotivas da massa.
Chomsky há anos vem defendendo esse ponto: “Você não fala a verdade para ninguém, isso é muito arrogante. O que você faz é se juntar às pessoas e tentar descobrir a verdade com elas, então você as escuta e diz a elas o que pensa e tenta encorajá-las a pensar por si mesmas”. Talvez seja isso mesmo o que nos falta: mais humildade para pensar junto e esperança de ir adiante.