Correio da Cidadania

Martin Luther King Jr

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Em 4 de abril de 1967, Martin Luther King Jr. fez um discurso na Igreja de Riverside, na cidade de Nova Iorque, contra a guerra do Vietnã, intitulado “Além do Vietnã”. Talvez este seja seu discurso mais pungente, e não o famoso “Eu tenho um sonho“, de 1963.

Pela sua teologia, o pastor e pregador Martin Luther King Jr. incomodava a esquerda, cujos membros ateístas e materialistas tinham dificuldade em dialogar com a espiritualidade e a religiosidade populares. Pelas críticas abertas e cada vez mais radicais ao capitalismo e à sua intrínseca regulação combinatória de racismo e classismo, o socialista democrático Martin Luther King Jr. incomodava ainda mais a direita, a ponto de J. Edgar Hoover enviar-lhe cartas forjadas e anônimas sugerindo o suicídio.

Exatamente um ano depois desse discurso, em 4 de abril de 1968, ele foi assassinado por um franco-atirador.

O status quo contra o qual ele lutou a vida toda se esforça para transformá-lo num santo pacifista, nem de esquerda nem de direita, desinfetado de toda potencial ameaça, um “pai Tomás”, moldando sua imagem como se fosse um inofensivo “papai noel”, num processo chamado por Cornel West de “Santa Claus-ification” de Martin Luther King, Jr.

Elogios à sua vida e sua luta frequentemente o colocam como o pacifista convicto antípoda a Malcolm X, esse, sim, representante de uma terrível e violenta ameaça aos valores estadunidenses.

A história oficiosa de Martin Luther King Jr. tenta retratá-lo como um herói limpo e puro que morreu para que o racismo e os direitos civis dos negros fossem garantidos. Um santo que seguiu o exemplo de Cristo, como cabe bem a um pastor.

Isso quer dizer que a disputa simbólica de seu legado ainda está aberta: que sentido teve sua luta? Por que foi assassinado?

No entanto, King não lutou apenas contra a injustiça racial, mas também em favor da justiça econômica e contra o militarismo, principalmente a guerra do Vietnã, identificando um vínculo essencial entre a perspectiva antirracista e a perspectiva classista.

Por causa disso, em seus últimos anos de vida, ele teve de enfrentar não apenas os ataques dos segregacionistas reacionários do sul dos EUA, mas também o bloqueio e a chantagem dos mandachuvas do Partido Democrata e até mesmo a resistência de outros líderes do movimento pelos direitos civis que ele ajudou a criar, pois o consideravam uma real ameaça ao sistema econômico estadunidense.

De fato, vindo de um líder popular com tanta influência e com sua envergadura, soa bastante revolucionária uma declaração como a seguinte:

“Estamos agora fazendo exigências que terão um custo para a nação. Você não pode falar de resolver o problema do negro sem falar de bilhões de dólares. Você não pode falar em acabar com as favelas (slums) sem antes dizer que o lucro tem de ser tirado delas. Aí é que você está realmente incomodando e pisando em terreno perigoso, porque com isso você está se metendo com pessoas, você está se metendo com os barões da indústria. Ora, isso quer dizer que estamos pisando em correnteza forte, porque isso realmente significa que estamos dizendo que há algo de errado com o capitalismo. Tem de existir uma melhor distribuição de renda, e talvez os EUA precisem mudar para um socialismo democrático”.

Declarações como essa não constam de nenhum discurso, nenhum escrito seu. Isso facilita a apropriação simbólica de seu legado pela via de uma direita muito reacionária, que o usa contra o povo pobre, de origem afro-indígena, mestiço e periférico, ao qual ele pertencia e defendia. Hoje, o discurso em defesa dos direitos humanos, da igualdade racial e da justiça social é facilmente desqualificado como ilegítimo, pois a defesa da igualdade de oportunidades nunca teria sido problemática: “antigamente ninguém reclamava, antigamente as pessoas trabalhavam e não ficavam de mimimi”.

Mas o fato é que não: quem hoje supõe uma igualdade e uma justiça que nunca existiram detesta ouvir falar de soluções e ações políticas, pois os problemas são considerados superficiais ou mesmo inexistentes. O discurso de ódio torna-se moeda corrente e a recusa da verdade histórica, uma couraça. Dada essa situação, não teria sido melhor Martin Luther King Jr. ter sido mais explícito?

Sabe-se que ele não gostava de explicitar seu socialismo e até mesmo impedia que o gravassem defendendo uma posição explicitamente socialista. O trecho acima, segundo seu biógrafo Michael Eric Dyson, é a transcrição de um dos raros registros sonoros por ele autorizados. Segundo Dyson, Martin Luther King, Jr. não queria, em primeiro lugar, ter de explicar a todo momento que não era um comunista e, com isso, desviar a atenção dos assuntos realmente importantes.
 
Entendendo o estrago que poderia ser causado à sua credibilidade pelas poderosas campanhas midiáticas de difamação e pelas táticas sorrateiras usadas pelo FBI contra ele, tanto no plano da vida pública quanto no da vida privada, ele habilmente evitava ser rotulado e, com isso, perder legitimidade. Seu discurso político estava sujeito a chantagens e ataques que jamais preocupariam seriamente os brancos da esquerda estadunidense, fosse por serem brancos, fosse por pertencerem a famílias ricas.



Para usar chavões atuais, nos anos de 1950 e 1960 o lugar de classe protegia o lugar de fala dos brancos, tanto os da esquerda como os da direita. Não que os comunistas brancos não fossem verdadeiramente comunistas. Mas sua adesão aos ideais políticos não fora construída da mesma forma. Nos EUA daquela época, até mesmo exprimir-se em público sem o consentimento dos brancos já seria motivo, em certos lugares, para qualquer pessoa de origens africanas ser linchada e assassinada – imagine-se, então, defendendo ideias socialistas!

Martin Luther King, Jr. soube compreender muito bem essa situação. Seu radicalismo político cresceu com sua experiência militante. Desenvolvendo-se no enfrentamento brutal da violência racista e classista, e não por meio de constatações teóricas, sua adesão a ideais socialistas evidencia-se nos seus últimos discursos.

Mas ele também sabia que, por ser quem era e por ter vindo de onde veio, sua palavra tinha de respeitar limites próprios: para ser compreendido, aceito e fazer jus às origens das comunidades religiosas afro-estadunidenses, com sua mistura bastante peculiar de escatologia, transcendentalismo e resistência, ele não podia falar como um branco.

Entre seus próprios companheiros a aceitação de suas ideias sempre foi difícil e parcial, e esse ponto permanece ainda ocultado nas suas representações. Mesmo uma representação que o humaniza e não esconde suas falhas morais, como o filme Selma – uma luta pela igualdade (dir. Ava DuVernay, EUA, 2014), detém-se a um momento antes de sua radicalização socialista. Ao retratar as dificuldades da organização de uma marcha de protesto no Alabama, em 1965, o filme mostra a infidelidade de Martin Luther King, Jr. sem tergiversar e, com isso, ressalta sua responsabilidade na vida pública ao mesmo tempo que sua irresponsabilidade privada, pessoal.


Imagem do filme Selma, representando uma cena de intimidade de Martin Luther King, Jr. [David Oyelowo], com sua mulher, Coretta Scott King [Carmen Ejogo].

Martin Luther King Jr. não sobressai no filme como um herói, mas como líder de uma ação coletiva variada, muitas vezes incoerente, mas consciente e autodeterminada. Suas falhas pessoais não o impedem de agir politicamente e essa talvez seja a lição a ser tirada do filme: para seguir adiante, é preciso assumir as próprias contradições.

Mas Martin Luther King Jr., nascido e criado numa dessas comunidades do Alabama, conseguia entender com clareza algo que muita gente da esquerda ainda hoje não consegue entender, lá como aqui também. Ele entendeu que para ganhar vida e frutificar entre as pessoas – essas mesmas que a esquerda tenta alcançar – uma ideia não precisa vir com etiqueta.

Aqui, é a vida do homem que quando criança foi espancado pelo próprio pai, que teve dúvidas quanto a si mesmo e quase se suicidou por isso, e que mais tarde também duvidou dos dogmas, mas no fim acabou se convencendo da verdade irrefragável dos interesses mais elevados do espírito humano – é essa vida que o faz superar e ignorar muros e murros para tornar-se o orador religioso que transmite ideias poderosas com palavras fortes sem com isso repetir cartilhas ideológicas. Até os ouvintes em princípio mais duvidosos tornavam-se convictos de suas ideias.

A transparência de sua linguagem atesta esse poder vital: suas palavras desvelam a mais nítida, decidida e sincera fé que um ser humano pode ter, a fé na verdade e na justiça, a fé nos direitos e na dignidade humana.

Um pouco dessa fé está nas palavras ora traduzidas desse discurso, que ficou conhecido como o discurso da revolução de valores:

Estou convencido de que, se é para ficarmos do lado certo da revolução mundial, nós, como uma nação, temos de passar por uma radical revolução de valores. Temos de iniciar rapidamente a mudança de uma sociedade “orientada-para-coisas” para uma sociedade “orientada-para-pessoas”. Quando as máquinas e computadores, os motivos de lucro e os direitos de propriedade são considerados mais importantes do que as pessoas, os trigêmeos gigantes do racismo, do materialismo e do militarismo são incapazes de ser conquistados.

Uma verdadeira revolução de valores logo nos fará questionar a equidade e a justiça de muitas das nossas políticas do passado e do presente.

A verdadeira compaixão é mais do que dar uma esmola para um mendigo. Uma verdadeira revolução de valores logo examinará com desconforto o flagrante contraste entre pobreza e riqueza. Com correta indignação, ela cruzará os oceanos e verá capitalistas individuais do Ocidente investindo imensas quantias de dinheiro na Ásia, na África e na América do Sul, apenas para aproveitar os lucros sem se preocuparem com a melhoria social dos países, e então dirá: “Isso não é justo”. Ela verá nossa aliança com os latifundiários da América Latina e dirá “Isso não é justo”. A arrogância do Ocidente, de sentir que tem tudo para ensinar a eles e nada para aprender com eles não é justa.

Uma verdadeira revolução de valores porá as mãos na ordem do mundo e dirá da guerra: “essa maneira de resolver as diferenças não é justa”. Esse negócio de queimar seres humanos com napalm, de encher nossos lares (aqui) na nação com órfãos e viúvas, de injetar drogas venenosas de ódio nas veias de pessoas comuns e benévolas, de mandar de volta para casa homens fisicamente aleijados e psicologicamente transtornados vindos de campos de batalha escuros e sangrentos, isso não pode ser reconciliado com a sabedoria, a justiça e o amor.

Uma nação que continua ano após ano a gastar mais dinheiro na defesa militar do que em programas de estímulo social aproxima-se da morte.

Essa espécie de revolução positiva de valores é nossa melhor defesa contra o comunismo. A guerra não é a resposta. O comunismo nunca será derrotado pelo uso de bombas atômicas ou armas nucleares. (…) Não devemos nos envolver num anticomunismo negativo, mas, antes, numa pressão positiva em favor da democracia, percebendo que nossa maior defesa contra o comunismo é partir para a ação ofensiva em nome da justiça. Com a ação positiva, temos de remover as condições da pobreza, da insegurança e da injustiça que são o solo fértil em que a semente do comunismo cresce e se desenvolve.

É de fato triste que, por causa do conforto, da complacência, de um medo mórbido do comunismo e da nossa tendência para nos ajustarmos à injustiça, as nações Ocidentais, as mesmas que deram início à grande parte do espírito revolucionário do mundo moderno, tenham agora se tornado as maiores antirrevolucionárias.

Isso levou muitos a sentir que somente o marxismo tem um espírito revolucionário. Portanto, o comunismo é um juízo contrário ao nosso fracasso na realização da democracia e no prosseguimento das revoluções que iniciamos.

Nossa única esperança, hoje, está na nossa capacidade de recapturar o espírito revolucionário e, indo por um mundo às vezes hostil, declarar hostilidade eterna à pobreza, ao racismo e ao militarismo. Com esse poderoso comprometimento, ousadamente desafiaremos o status quo e os costumes injustos e, com isso, anteciparemos o dia em que ‘todo vale será exaltado, e todo monte e todo outeiro será abatido; e o que é torcido se endireitará, e o que é áspero se aplainará’ [Isaías, 40: 4].

Uma genuína revolução de valores significa, em última análise, que nossas lealdades devem se tornar ecumênicas e não seccionais. Toda nação, agora, deve desenvolver uma lealdade predominante à humanidade como um todo para preservar o melhor em suas sociedades individuais.

Esse chamado àa um companheirismo mundial que eleva a preocupação com o próximo além de tribo, raça, classe e nação individual é, na realidade, um chamado a um amor incondicional e global por toda a humanidade. Esse conceito, frequentemente mal compreendido e mal interpretado pelos Nietzsches do mundo como um impulso fraco e covarde, tornou-se agora uma necessidade absoluta para a sobrevivência do homem.


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