Correio da Cidadania

O começo ou o fim da América

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Se fosse vivo, James Baldwin teria feito 93 anos em 2 de agosto. Um dos maiores escritores dos EUA no século 20, Baldwin foi também um dos grandes intelectuais ativistas de sua época. Em 1970, ele escreveu uma carta aberta a Angela Davis, então presa, na qual além de expressar solidariedade, reflete sobre o racismo, a militância negra e o significado da democracia nos EUA. Traduzo-a aqui, que eu saiba, pela primeira vez em língua portuguesa.

É um texto memorável e que pode dizer muito a nós, brasileiros, em 2017 – infelizmente, muita coisa não mudou para melhor, muitos problemas permanecem os mesmos. Mas, felizmente, podemos contar com o legado de James Baldwin e Angela Davis.

 

Querida Irmã:

Uma pessoa poderia ter esperança de que, a esta hora, mesmo apenas ver correntes sobre a Carne Negra, ou mesmo apenas ver correntes seria uma visão tão intolerável para o povo dos Estados Unidos e traria uma memória tão intolerável que o próprio povo espontaneamente se insurgiria e se livraria dos grilhões. Mas, não, parece que têm orgulho de suas correntes; agora, mais do que nunca, parece que medem sua segurança por correntes e cadáveres.

E então, a Newsweek, defensora civilizada dos indefensáveis, tenta te afogar num mar de lágrimas de crocodilo (“resta ver que tipo de liberação pessoal ela conseguiu”) e te põe na capa, acorrentada.
 

Pareces muito solitária – tão solitária quanto, digamos, a esposa judia enviada num camburão para Dachau, ou tão solitária quanto qualquer um dos teus ancestrais, acorrentados todos juntos em nome de Jesus, enviados para uma terra cristã.

Pois bem. Já que vivemos numa época em que o silêncio não é apenas criminoso, mas suicida, tenho feito tanto barulho quanto posso, aqui na Europa, no rádio e na TV – na verdade, acabei de voltar de uma terra, a Alemanha, que se tornou famosa por uma maioria silenciosa, não faz tanto tempo. Pediram-me para falar sobre o caso da Senhorita Angela Davis, e eu o fiz. Muito provavelmente, um exercício de futilidade, mas não se deve deixar passar uma oportunidade.

Sou mais ou menos uns vinte anos mais velho do que és, sou, portanto, daquela geração sobre a qual George Jackson arrisca dizer que “não há irmãos sadios – nenhum”. De modo algum sou capaz de discordar dessa especulação (de toda forma, não sem descer ao que, no momento, seriam sutilezas irrelevantes), pois sei muito bem o que ele quer dizer. Minha própria saúde é certamente bastante precária. Ao considerar-te, e a Huey, a George e (principalmente) a Jonathan Jackson, comecei a compreender o que poderias ter pensado quando falaste dos usos que poderíamos atribuir à experiência do escravo.

Parece-me que o que aconteceu, falando uma forma exageradamente simples, é que toda uma geração de pessoas avaliou e absorveu a história dos escravos e, nessa ação tremenda, essas pessoas libertaram-se dela e nunca mais serão vítimas. Isso pode parecer uma coisa estranha, indefensavelmente impertinente e insensível de dizer para uma irmã que está na prisão lutando pela vida – por todas as nossas vidas. No entanto, ouso dizê-lo, pois penso que talvez não me compreenderás mal, e, afinal, não o digo da posição de um espectador.

 

Estou tentando sugerir que tu – por exemplo – não pareces ser a filha de teu pai da mesma maneira que eu sou o filho de meu pai. No fundo, as expectativas de meu pai e as minhas eram as mesmas, as expectativas de sua geração e da minha eram as mesmas; e nem a imensa diferença em nossas idades nem a mudança do Sul para o Norte conseguiram alterar essas expectativas ou tornar nossas vidas mais viáveis.

Pois, de fato, para usar um palavreado brutal daquele tempo, a linguagem interior do desespero, ele era apenas um negro – um trabalhador pregador negro, e eu também. Eu mudei de assunto, mas isso não é mais importante aqui do que o fato de que alguns pobres espanhóis tornam-se ricos toureiros, ou de que alguns garotos negros pobres enriquecem – boxeadores, por exemplo. Isso raramente ou nunca permitiu às pessoas mais do que uma grande catarse emocional, embora eu tampouco pretenda parecer condescendente com isso. Mas quando Cassius Clay tornou-se Muhammad Ali e recusou vestir aquele uniforme (e sacrificou todo aquele dinheiro!), isso causou um impacto muito diferente nas pessoas e teve início uma espécie muito diferente de instrução.

O triunfo americano – no qual sempre esteve implícita a tragédia americana – estava em fazer as pessoas negras desprezarem a si mesmas. Quando eu era pequeno, eu desprezava a mim mesmo; não sabia fazer melhor. E isso significava, embora inconscientemente, ou contra minha vontade, ou com grande dor, que eu também desprezava meu pai. E minha mãe. E meus irmãos.
E minhas irmãs.

Quando eu estava crescendo, as pessoas negras estavam se matando umas às outras toda noite de sábado na avenida Lenox; e ninguém explicou a elas, ou a mim, que era intencional que elas assim agissem; que elas estavam cercadas onde estavam, como animais, para que não considerassem a si mesmas mais do que animais. Tudo sustentava esse sentido de realidade, nada o negava: e assim, quando chegava a hora de ir trabalhar, uma pessoa já estava pronta para ser tratada como um escravo.

Assim uma pessoa estava pronta, quando chegavam os terrores humanos, a se curvar diante de um Deus branco e implorar a Jesus pela salvação – esse mesmo Deus branco que era incapaz de levantar um dedo para fazer um mínimo para te ajudar a pagar um aluguel, incapaz de ser acordado a tempo de te ajudar a salvar as tuas crianças!
 
É claro que sempre existem mais coisas numa pintura do que pode ser rapidamente visto, e nisso tudo – e apesar disso tudo – gemer e lamentar, observar, calcular, bancar o palhaço, sobreviver e levar a melhor – uma tremenda força estava em gestação, e ela é parte do nosso legado hoje. Mas esse aspecto particular de nossa jornada começa agora a ficar para trás. O segredo está revelado: somos homens!



Mas a articulação franca e aberta desse segredo amedrontou a nação até a morte. Eu queria poder dizer “até a vida”, mas isso é exigir demais de um agregado desorganizado de pessoas deslocadas que ainda estão como gado em seus vagões cantando “Onward Christians Soldiers”. A nação, se os Estados Unidos forem uma nação, não está minimamente preparada para esse dia. Este é o dia que os americanos nunca esperaram ou desejaram ver, não importa o quão piamente declarem sua crença no progresso e na democracia. Essas palavras, agora, em lábios americanos, tornaram-se uma espécie de obscenidade universal: pois esse infelicíssimo povo, fortemente crente na aritmética, nunca esperou ser confrontado pela álgebra de sua história.

Uma maneira de aferir a saúde de uma nação, ou de discernir o que ela realmente considera como seus interesses – ou a que ponto pode ser considerada como uma nação e não como uma coalizão de interesses particulares – é examinar as pessoas que ela elege para representá-la ou protegê-la. Uma olhadela sobre os líderes americanos (ou figuras de ponta) transparece que a América está no limite do caos absoluto, sugerindo também o futuro que os interesses americanos, se não a massa do povo americano, parece desejar consignar aos negros (com efeito, um olhar ao nosso passado mostra isso). É claro que para a massa de nossos compatriotas (nominais), somos todos dispensáveis. E os senhores Nixon, Agnew, Mitchell e Hoover, sem falar, naturalmente, no caso perdido de Em cada coração um pecado, Ronnie Reagan, não hesitarão um instante sequer em levar adiante o que insistem ser a vontade popular.
 

Mas o que, nos EUA, é a vontade popular? E quem, dos acima mencionados, é o povo? O povo, quem quer que seja, sabe tanto sobre as forças que colocaram os senhores acima citados no poder quanto sabem sobre as forças responsáveis pela matança no Vietnã. A vontade popular, nos EUA, sempre esteve à mercê de uma ignorância não apenas fenomenal, mas também sagrada e sacramente cultivada: o que de melhor pode ser usado por uma economia carnívora que democraticamente mata e vitimiza brancos e Negros igualmente. Mas a maioria dos brancos americanos não ousa admitir isso (embora suspeitem) e esse fato contém um perigo mortal para os Negros e uma tragédia para a nação.

Ou, para dizer de outra maneira, enquanto os americanos brancos refugiarem-se na sua branquitude – enquanto permanecerem incapazes de se livrarem dessa mais monstruosa armadilha – eles permitirão que milhões de pessoas sejam assassinadas em seu nome e serão manipulados por aquilo que pensarão ser uma guerra racial, justificando-a e sendo por ela rendidos. Enquanto sua branquitude interpuser uma distância tão sinistra entre eles mesmos e sua própria experiência e a experiência dos outros, eles nunca se sentirão suficientemente humanos, suficientemente dignos, para se tornarem responsáveis por si mesmos, pelos seus líderes, seu país, suas crianças ou seu destino. Perecerão em seus pecados (conforme dissemos certa vez na nossa igreja negra) – isto é, nas suas ilusões. E isso está acontecendo, nem é preciso dizer, por toda parte à nossa volta.
 
(c) Henri Huet/AP

Apenas um punhado dentre os milhões de pessoas nesse vasto lugar estão cientes de que o destino pretendido para ti, irmã Angela, e para George Jackson, e para os inúmeros prisioneiros nos nossos campos de concentração – pois é o que são – é um destino que está prestes a engolfá-los também. Para as forças que governam este país, as vidas brancas não são mais sagradas do que as Negras, como muitos e muitos estudantes estão descobrindo, conforme provam os cadáveres de americanos brancos no Vietnã. Se o povo americano é incapaz de enfrentar seus líderes eleitos pela redenção de sua própria honra e pelas vidas de seus próprios filhos, nós, os Negros, os que somos as crianças ocidentais mais rejeitadas, podemos esperar muito pouca ajuda nas suas mãos; o que, afinal, não é nada novo. O que os americanos não percebem é que uma guerra entre irmãos, nas mesmas cidades, no mesmo solo, não é uma guerra racial, mas uma guerra civil. Mas a ilusão americana não é tão-só que seus irmãos são todos brancos, mas que os brancos são todos seus irmãos.
Que seja. Não podemos acordar esse dorminhoco, e sabe Deus como tentamos.

Temos de fazer o que podemos e fortificar e salvar uns aos outros – não estamos nos afogando numa autodisplicência apática, sentimo-nos suficientemente dignos para enfrentar até mesmo forças inexoráveis para mudar nosso destino e o destino de nossos filhos e a condição do mundo! Sabemos que um homem não é uma coisa e não pode ser posto à mercê das coisas. Sabemos que o ar e a água pertencem a toda a humanidade e não apenas aos industriais.

Sabemos que um bebê não vem ao mundo apenas para ser instrumento do lucro de alguém. Sabemos que a democracia não significa a coerção de todos para uma mediocridade letal e, no fim, malvada, mas, sim, a liberdade para que todos possam aspirar ao melhor que há ou que jamais houve em si mesmo.
Sabemos que nós, os Negros, e não apenas nós, os Negros, fomos e somos vítimas de um sistema cujo único combustível é a ganância, cujo único deus é o lucro. Sabemos que os frutos desse sistema foram a ignorância, o desespero e a morte, e sabemos que o sistema está perdido porque o mundo não pode mais se dar ao luxo dele – se é que na verdade um dia pôde. E sabemos que, para a perpetuação desse sistema, todos nós fomos impiedosamente brutalizados e apenas mentiras nos foram contadas, mentiras sobre nós mesmos e nossos próximos e nosso passado, mentiras sobre o amor, a vida e a morte, de modo que tanto a alma quanto o corpo foram aprisionados no inferno.

A enorme revolução na consciência Negra acontecida na nossa geração, minha querida irmã, significa o começo ou o fim da América. Alguns de nós, brancos e Negros, sabemos como é caro o preço que já foi pago para fazer existir uma nova consciência, um novo povo, uma nação sem precedentes. Se sabemos e nada fazemos, somos piores do que os assassinos pagos em nosso nome.

Se sabemos, então temos de lutar pela tua vida como se fosse a nossa – e ela é – e com nossos próprios corpos tornar intransponível o corredor para a câmara de gás. Pois, se vierem para te buscar de manhã, virão nos buscar à noite.

Portanto: paz.

Irmão James.
19 de novembro de 1970.

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