Blade Runner 2049 aquém da dúvida
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- Cassiano Terra Rodrigues
- 15/10/2017
Em filmes de ficção científica, principalmente aqueles que tratam do fim do mundo ou de algum mundo depois deste nosso, há sempre uma ansiedade com relação ao que será mostrado no fim: para onde iremos? Que teremos nos tornado? Que podemos esperar de nós mesmos? Essas são, no fim das contas, as perguntas fundamentais. Em todo filme, na verdade, a sucessão das imagens cria uma temporalidade própria, chamada por muitos críticos e estudiosos do cinema de fílmica – a cada imagem sucessiva, a cada sequência, a cada quadro, a resposta esperada é adiada, pois é claro que ela deve vir ao final do filme, como se fosse a revelação apocalíptica que dá sentido à história.
Pois bem, essa temporalidade foi exaustivamente explorada pelo que conhecemos como narrativa clássica. No fim do filme, dá-se um fecho à história e um sentido para os espectadores. A satisfação do espectador fica garantida, mesmo que o final seja desalentador ou catastrófico. A única possibilidade de incômodo de fato, de negatividade, de insatisfação do espectador está mesmo quando o filme não fecha, ou quando o sentido é vago ou no mínimo ambíguo. É comum ouvir “esse filme não tem fim” ou “que final esquisito” quando o final do filme não confere um sentido definido à sequência de imagens até ali desenrolada. Sentimos faltar algo. Claro que essa sensação de incompletude pode vir de um filme ruim, um roteiro mal feito, uma cinematografia mal executada. Mas, nos melhores casos, falta algo mesmo e cabe ao espectador pensar que falta é essa – Hitchcock era mestre em deixar ao espectador a tarefa de dar sentido ao que foi presenciado. Os Pássaros (1963) é o exemplo mais famoso.
De exemplos mais recentes, Blade Runner – O caçador de androides (dir. Ridley Scott, EUA, 1982) marcou época na crise da narrativa cinematográfica clássica. Mesmo adulterado, com um final imposto pelo estúdio, a dúvida permanecia – como saber se somos ou não androides? Deckard é um androide ou um ser humano? Qual o sentido dessa diferença, num mundo em que os humanos parecem máquinas e os robôs parecem mais humanos que nós mesmos? Mais de trinta anos depois, essas perguntas ainda estão sem resposta. Não sabemos o que esperar desse encontro entre os humanos e os cyborgs, o pós- ou o trans-humano ainda é um enigma para nós.
Essa é a única ambiguidade de Blade Runner 2049, a única pergunta final deixada aos espectadores. Em outras palavras, nada que já não existisse no filme anterior. É pouco. Mesmo porque esse atual filme, ruim, repete chavões cinematográficos do começo ao fim e não consegue lançar dúvida alguma sobre a experiência contemporânea, como o anterior o fizera em seu tempo. Até o manjadíssimo “ele morre no final” está ali.
A comparação com o filme anterior é inevitável. É claro que os filmes subsistem por si, mas a comparação é suscitada pelo própria filme, que repete o título e o ator principal – Harrison Ford, agora como coadjuvante – em truque comercial que não conseguiu, até agora, evitar o fracasso nas bilheterias. Talvez isso se dê porque, diferentemente do filme de 1982, o de 2017 seja incapaz de provocar qualquer dúvida, incômodo ou distanciamento além do mais raso senso comum. Nesse sentido, serve muito bem ao status quo e talvez seja mesmo apenas isso que almeje. Visto dessa maneira, é uma obra-prima de conformismo Hollywoodiano, bem coerente com o final imposto pelo estúdio ao primeiro Blade Runner.
O que está em jogo aqui, como antes, é uma visão-de-mundo: após o apocalipse, que mundo restará? Pouco, talvez nenhum. Ou talvez o mesmo, se pensarmos culturalmente. Se o filme fosse crítico disso, talvez melhorasse, mas de fato não é. Em 1983, um dos questionamentos mais significativos de Blade Runner era quanto aos papéis de gênero. Se a mulher perfeita é uma androide – jovem, sedutora, desafiadora de início, logo é conquistada, pouco fala, é submissa e no final é salva pelo mocinho – as mulheres ameaçadoras também, com a diferença de que as ameaçadoras são todas exterminadas pelo herói-detetive, típico mau caráter de bom coração. Mas aí está a ambiguidade a mais: o mocinho é ou não um androide? Ele mesmo não é perfeito – ou seria o mais perfeito, coisa que nenhum ser humano é capaz de ser. Aos poucos, a cada origami, a cada imagem de memória, a cada imagem dentro da imagem, o filme construía, assim, um meta-questionamento: somos todos robôs? Este filme pode vir a se tornar realidade?
Tudo isso falta em Blade Runner 2049. A única surpresa para o espectador é um truque de roteiro – não é ele a criança redentora. Ele, na verdade, é o mártir que salvará a redentora, ele é o santo. A esperança está numa mulher, mas uma mulher frágil e assexualizada, salva pelo herói que extermina a outra, a ameaçadora, aquela que faz as vezes de Alex Forrest (Glenn Close) de Atração Fatal (Fatal Attraction, dir. Adrian Lyne, EUA, 1987). Só que, em Atração Fatal, a esposa matava a amante e a traição era dupla, pois ele traía as duas, na verdade; aqui, não há traição alguma, o robô executa fielmente a tarefa que lhe foi destinada, nenhuma consciência é capaz de desviar-lhe da programação prevista. Mesmo nos cyborgs, a ausência de ambiguidade e inconformismo desaparece: nenhum trans-cyborg, nenhuma insatisfação com a própria condição, a não ser da parte da holográfica mulher-perfeita, aquela que para satisfazer ao herói vai da dona de casa à prostituta com uma mera troca de roupa (é um trocadilho, quem vir o filme vai entender). A personagem feminina mais interessante do filme é um Tirésias desperdiçado: em vez do cego capaz de enxergar mais que todos, uma caolha cuja única função é passar a óbvia mensagem da salvação: o mais humanos que podemos ser é morrer pelos humanos. Esta é a tua porta, abra-a. Esta é a parte que te cabe neste latifúndio, tome-a.
A cinematografia é a chave para entender o reacionarismo do filme. Se o anterior imergia os espectadores em imagens de duas dimensões, fazendo-nos questionar a própria ideia de imagem e de plano, este, em 2017, usa o 3D de maneira infantilizada, tentando emular os jogos – os games, como se diz – sem, no entanto, conseguir provocar questionamento algum. Mesclando ao 3D um visual parecido com Mad Max, abusando dos closes e com raros planos abertos, parece querer fazer o espectador se sentir dentro do filme à força.
Com isso, consegue causar apenas a rasteira impressão de que é produto para o streaming em telinhas de celular. Daí que termine sem suscitar qualquer dúvida ou pergunta sobre o encontro do humano com o pós-humano. Não deixa, todavia, de dar um sentido a essa falta de problematização: a pós-humanidade-híbrida detém os sonhos da humanidade. Mas ela é frágil e precisa ser protegida. E quem vai fazer isso? O homem, é claro, branco, é claro, uma vez que os negros só são superiores às crianças e à mulher-rendentora, é claro. Mais uma fantasia de resgate do homem branco, como não poderia deixar de ser, é claro. Mas ele não é um cyborg? Sim, é claro, um santo cyborg, salvador da família do homem branco. E esse homem branco, o pai, só pode ser Indiana Jones, é claro. Mas duvidar por quê, né não? Pois é. É difícil mesmo conviver com dúvidas. Pobres tempos os nossos, em que nem a fantasia parece capaz de duvidar do real.
Cordiais ainda que desiludidas saudações.
DICA: Até 19 de novembro, no Instituto Moreira Salles, os pacientes e curiosos com a temporalidade fílmica podem conferir a videoinstalação de 24 horas, The Clock, de Christian Marclay (https://goo.gl/528Bw1). São incontáveis cenas de cinema e TV que fazem referência ao horário exato do dia em que são projetadas na tela, analisadas num belo e sugestivo texto duvidativo de Lucia Monteiro (https://goo.gl/dTVK4j).
Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia da PUC-SP, cada vez mais duvidoso das pré-certezas e certo da pontaria a posteriori das dúvidas.
Comentários
Quanto à trilha, achei banal. De fato discordamos em praticamente tudo.
Mas como isso é bom né? Sinal de q o cinema vai melhor do q pensamos, né não? Abraços.
Citando Daniel Alves:
Interessante ponto de vista, mas permita-me discordar frontalmente de sua análise. Primeiramente, creio que há um exagero na sua opinião de que Blade Runner 2049 seja um filme "ruim". Pelo seu texto, o que transparece não é que o filme seja ruim, mas antes que você não gostou dele, e isso são duas coisas bem diferentes. Digo isso, porque o senso comum que você encontrou no filme, eu também vejo na sua sua crítica - eu me pergunto onde se pode colocar seja na obra de 1982 ou na de 2017 as noções de "mocinho", "trans-cyborg" (existe esse termo em algum dos universos dos dois filmes?!), "gênero" (não seria mais correto falar em "espécies" em vez de forçar uma questão de gênero?) etc. etc etc. Aliás, muitos críticos também não ficaram satisfeitos com o Blade Runner original, e veja onde ele chegou... O público na época, idem. Logo, falar em "fracasso de bilheteria" não diz muita coisa.
Aí, você critica os "truques", os "chavões", chega a chamar a obra de "produto para o streaming"! Ora, olhe o original, que não à toa é um noir, e veja lá quantos truques há, quantos chavões, quanto "reacionarismo" - por acaso, em '82, Ridley Scott fez um filme-arte para as audiências refinadas dos clubes de cinema?! Não! Ele fez um filme comercial (naquela época não havia "streaming", não é?!) que se transformou num filme cult! O que Blade Runner 2049 faz é simplesmente transpor aquele mesmo universo para trinta anos depois. Eu não vejo onde, nem por que, ele deveria se propor "lançar dúvida sobre a experiência contemporânea" (tampouco creio que em '82 se pretendeu), sem falar que ambos são filmes distópicos! E ainda assim, as questões estão lá, sim, pois os temas abordados são universais e históricos, logo, é evidente que elas permanecem na sequência. Nesse sentido, Blade Runner 2049, não apenas se manteve fiel ao universo do filme original - o que foi reconhecido pelos fãs da obra, vide os comentários gerais na WWW -, como ele a ampliou com maestria, levando a história para ambientes (fora dos limites das urbs super-povoadas) que não aparecem no primeiro filme e o fazendo sem parecer algo desproposital. Da mesma forma, a trilha sonora também foi elogiada e fez justiça a Vangelis, algo que não foi sequer abordado na sua crítica.
Se eu fosse apontar o grande questionamento dessa sequência: eu diria que está na possibilidade, ou não, da convivência em termos iguais de diferentes espécies inteligentes, rompendo entre elas o vínculo dominador da relação de poder entre o criador e a criatura, este, o grande drama de '82. Aquilo, a possibilidade, não está no primeiro filme, não nesses termos, porque naquele momento a consciência e a "revolta", assim digamos, estava nascendo. Dessa forma, o confronto surge em primeiro plano. Em Blade Runner 2049, o confronto permanece, porém, há um olhar mais atento e uma relevância maior sobre as possibilidades de relações de empatia, qual seja, o amor principalmente, cujo caso de Deckard e Rachel faz-se o grande paradigma - assim como a ilusão do amor (ou será um novo amor?) de um ser para com um holograma inteligente (será uma nova espécie?).
Enfim, talvez a sua frustação em não encontrar nenhum novo questionamento em Blade Runner 2049 pode ter se dado porque não lhe ocorreu que para algumas questões filosóficas nós estamos longe de encontrar respostas. A própria questão é o tema e a sua atualização torna interessante insistir perguntando. Quanto a sua revolta contra a estética, prefiro deixar que o tempo responda, apesar de para mim estar bastante nítido a qualidade superior de Blade Runner 2049 em relação aos filmes contemporâneos não apenas do seu gênero, mas do cinema comercial atual em geral. Por fim, recomendo que assista novamente ao filme!
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