Das distopias, ilusórias ou não
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- 13/09/2018
O segundo filme de ficção dirigido por Werner Herzog é intitulado Também os anões começaram pequenos (Auch Zwerge haben klein angefangen, Alemanha, 1970). O título traduz bem o peculiar sarcasmo de Herzog a nos suscitar perguntas: como podem os anões começar pequenos se são pequenos? Quer dizer que cresceram em algum sentido? Qual? As perguntas são óbvias, o filme, longe disso.
A história é simples. Os moradores de um centro de recuperação revoltam-se. Enquanto espera por ajuda, o diretor do centro se esconde em seu escritório. Enquanto isso, os revoltosos semeiam caos e destruição por onde passam, mas não chegam a fugir. Deliciam-se em quebrar janelas e louças, deixam um furgão rodar em círculos sem motorista, armam brigas de comida, tocam fogo em flores, torturam animais, matam um porco, atormentam aos cegos e cometem heresias, encenando a crucifixão de um macaco (!).
Tudo isso sem aparentemente motivo, apenas por mero deleite. Ou não, talvez tudo não passe de mera gratuidade, mero fato da sobrevivência, como a galinha que bica o cadáver de outra galinha. Sequer uma blague nos é mostrada, todos esses atos que nos parecem ignominiosos não parecem ter sentido algum e o filme tampouco se esforça por julgá-los.
Filmado em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, o filme transmite um profundo sentimento de desconforto: a paisagem lunar, desértica, o ódio e a raiva dos personagens, a ausência de cor. Inicialmente, pensamos ser um centro para anões. Não demoramos a perceber que todos no filme são anões.
O filme começa e não sabemos por que os anões estão ali, nem porque esse centro de detenção — que podia ser uma escola, ou uma clínica, ou qualquer outra instituição — fica nesse lugar, nenhuma história de nenhuma personagem — nada. E o filme também não nos conta nada disso, nenhuma análise psicológica, nenhuma sequência explicativa, nenhuma dica de como situar os acontecimentos ali. Quem vir outros filmes do diretor da mesma época encontrará elementos em comum na construção imagética, de objetos usados pelos atores ao carro que roda em círculos. Mas isso extrapola o enquadramento do filme, e o espectador fica tentando decifrar que metáfora é essa: por que essa sanha de destruição desses anões?
Muitas outras perguntas surgem e ficam sem resposta: por que todos são anões? Por que eles não fogem? O que significa essa sucessão de violências e abusos absurdos? Onde isso vai parar? Bem, há o carro que anda em círculos e no fim vemos que é isso mesmo: ao contrário da montagem clássica, que desenvolve um enredo em linha reta, o filme de Herzog volta sempre ao mesmo ponto, vamos do nada a lugar algum num eterno retorno niilista e angustiante, numa sensação de falta de perspectiva que os longos planos e a lentidão da narrativa só fazem exacerbar.
São terríveis as pessoas ou o lugar onde estão as deixou assim? Essa é outra pergunta que não parece ter resposta. A própria maneira de filmar parece levar a isso: tal como um narrador naturalista, a câmera de Herzog é segura e racional. Seus longos planos parecem se dar devido ao diretor posar a câmera e esperar que as coisas aconteçam ali na sua frente, sem muito planejamento, mas é esse justamente o planejamento, quer dizer, aceitar a visão delimitada e esvaziada de subjetividade da câmera como forma de revelar as condições limitadas e esvaziadas de sentido da vida dos anões: os puxadores das portas são elevados demais, subir escadas é uma tarefa hercúlea, os pedais dos carros são inalcançáveis, a mobília é grande demais… É desalentador como tudo é inadequado, principalmente as pessoas. O desconforto domina todas as situações. Que fazer numa vida assim? Sair por aí quebrando tudo, e semeando a discórdia pode bem ser uma opção para essas pessoas. Quem não teria ganas de matar alguém nessas condições?
Não é mera provocação do diretor fazer um filme apenas com anões, mas uma forma de projetar na tela sua visão da existência humana. Uma visão nada alentadora ao que parece. Mas, acima de tudo, o filme nos coloca na posição dos anões: posta na altura dos olhos dos atores, a câmera causa estranheza. Afinal, quem não está acostumado a se achar superior ao que está sendo mostrado na tela? Mas a verdade é que todos somos anões, em algum sentido, e quanto mais difícil for admitir isso, mais isso se torna necessário. Como os anões do filme, nós também somos sempre capazes de nos apequenarmos. Não duvidemos disso.
Cordiais saudações.
ESPERANÇA: Ainda em pouquíssimas salas, o belíssimo e nada inocente filme brasileiro Café com canela, dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio. Desprestigiado e subestimado por críticas ignominiosas e sem nenhuma criatividade, o filme é um alento. Um banho de cinema, literalmente, de Cachoeira da Bahia, um axé forte de Oxum.
Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia do Instituto Tecnológico de Aeronáutica e ultimamente não tem duvidado do que preferiria desconhecer.
Cassiano Terra Rodrigues