Correio da Cidadania

Uma velha e novíssima (quase) esquecida: Esfir Shub

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É apropriado lembrar, neste mês de março, o nome da cineasta russa Esfir Shub (1894-1959), também conhecida como Esther Il’inichna Shub. Ainda pouco conhecida no Brasil fora dos círculos especializados, Esfir Shub tem importância comparável à de seus compatriotas e coetâneos mais famosos Dziga Vertov (1895-1954) e Sergei Einsenstein (1898-1948) para a história do cinema mundial.

Na verdade, Shub foi tão inventora de uma gramática cinematográfica quanto Vertov. Considerada criadora do cinema de compilação, ela foi uma das protagonistas do construtivismo russo e participou ativamente da Frente de Esquerda das Artes (LEF, em russo) e do grupo Outubro, convivendo com artistas como Aleksandr Rodchenko, Varvara Stepânova, Lasar Lissitzky, dentre outros. Há quem a considere praticamente mentora de Einsenstein, com quem trabalhou na Goskino, a principal companhia cinematográfica do estado soviético.

Na Goskino, Esfir Shub era editora, o que significava que seu trabalho consistia em reeditar os filmes estrangeiros, isto é, recortá-los e remontá-los, antes que fossem exibidos, adequando-os à ideologia bolchevique para as telas soviéticas. Por esse trabalho, ela se tornou pioneira na montagem de “filmagem encontrada”, isto é, a colagem e a edição de imagens de eventos reais feitas após algum tempo de os eventos acontecerem e as imagens serem reencontradas em arquivos. Pouco mais tarde, ela aplicaria toda a habilidade aprendida na Goskino para realizar o primeiro “documentário de compilação”, ou o primeiro documentário com imagens de arquivo, da história do cinema, seu impressionante A queda da dinastia Romanov (Padenie dinastii Romanovykh, URSS, 1927, 87min). Além desse, O grande caminho (Viéliki Put, 1927), A Rússia de Nicolau II e Leon Tolstói (Rossia Nikolaia II e Liev Tolstói, 1928) e Espanha (Ispania, 1939) compõem o conjunto dos seus filmes geralmente mais lembrados. As cenas da evacuação das crianças na Guerra Civil Espanhola que aparecem em O Espelho (Zerkalo, 1974), de Tarkóvski, são do filme de Shub de 1939; exemplares nacionais do gênero filme de compilação são Nós que aqui estamos por vós esperamos (dir. Marcelo Masagão, 2006) e Democracia em vertigem (dir. Petra Costa, 2019).

Apesar de sua importância, a obra de Shub nem de longe foi tão pesquisada quanto a de seus colegas mais famosos. Não posso falar internacionalmente, mas, no Brasil, há pouquíssimo escrito sobre ela e, mais importante, seus filmes quase nunca são exibidos, mesmo em mostras. Sei que o CINUSP exibiu A queda da dinastia Romanov, em 2017, por ocasião dos 100 anos da Revolução de Outubro, junto com outros filmes de outros diretores; e descobri que o mesmo filme foi exibido na mostra de documentários É tudo verdade, alguns anos antes disso. É pouco, como também pouco se debate atualmente o cinema de Esfir Shub. O contraste com os registros de há quase 100 anos, quando seus filmes foram lançados, não podia ser maior. Pois não apenas os vanguardistas de esquerda os elogiaram como a crítica internacional não deixou de reconhecer a sua originalidade. A então calorosa recepção de seus filmes motivou um debate sobre os novos rumos do cinema, seu estatuto artístico, sua função social e a relação dos filmes com a realidade.

Por que Shub ficou esquecida durante tanto tempo? Obviamente, não podemos desconsiderar o elemento sexista, bem como o antissemitismo, nesse apagamento histórico. Pois quantas teses foram escritas sobre o cinema da nazista eurocentrada Leni Riefensthal e quantas sobre o cinema da judia comunista Esfir Shub?

No entanto, após ver A queda da dinastia Romanov pela primeira vez, arrisco dizer que esses elementos, embora componham a situação, não podem ser considerados isoladamente. Pois, ainda que ideologicamente muito bem definido – não há dúvidas quanto à sua adesão ao comunismo – o cinema de Shub tampouco pode ser acusado de meramente panfletário. A sua ideologia não está a serviço da mera propaganda, ao contrário, Shub jamais reduz a realidade a uma ideia. O cinema de Riefenstahl é fabuloso, mas não se sustenta sem essa redução. Shub, ao contrário, não escamoteia a complexidade dos eventos e o seu filme se apega a um nítido senso de enraizamento social e histórico, sem deixar de emocionar.

Isso não significa que o filme descamba para o sentimentalismo, mas sim que evoca mais a simpatia do público, ou a empatia, como atualmente é mais comum falar, do que a identificação pura e simples, como heróis ou personagens maiores que a vida, como nas narrativas mais comuns. A bem falar, não há propriamente personagens individuais no filme, há as classes distintas, contrapostas pela montagem e mostradas de uma perspectiva distanciada, embora não completamente isenta de juízos. Shub filma de acordo com a ideia da ostranenie, termo comumente traduzido como “estranhamento”, “desfamiliarização”, ou “distanciamento”, isto é, a técnica de apresentar ao público o que lhe é familiar, mas de uma maneira inusitada, estranha, não apenas para chocar, mas para suscitar a reflexão. No cinema de Shub, trata-se de evitar provocar uma identificação sentimental do espectador, sem, contudo, barrar completamente uma resposta emocional. Em outras palavras, Shub anda no fio da navalha entre o engajamento com o que se vê e o necessário distanciamento para pensar criticamente sobre o que se vê. Em suma, não é um cinema para quem prefere verdades prontas em vez de questionar essas mesmas verdades.

A queda da dinastia Romanov é um filme extraordinário. Feito com imagens de arquivo que Shub compilou, predominantemente da época da Rússia czarista, o filme foi feito por encomenda para as comemorações do décimo aniversário da Revolução de Outubro. Enquanto outros documentaristas, como Vertov, preferiram realizar as suas próprias filmagens para essa ocasião, Shub trabalhou principalmente com imagens de cinejornais. Assim como Vertov e Einsenstein, Shub também usa, e magistralmente, a justaposição de imagens para construir a sua narrativa dos eventos, sem deixar dúvidas sobre de que lado da história ela se situa.

As justaposições mostram as classes ricas em momentos de lazer, por exemplo, festando e dançando alegremente, tomando chá no gramado com a família, cachorro inclusive, enquanto a economia de guerra e os camponeses trabalhando nas (supostamente) suas minas e suas terras aumentam as suas fortunas. É desconcertante ver, hoje, enquanto a Rússia invade a Ucrânia, os soldados russos adolescentes demonstrando agradecimento pelos presentes simbólicos recebidos desses mesmos ricos, sem saber a carnificina que lhes espera quando chegarem à linha de frente. Assim como as imagens de Lenin falando às multidões, todas essas são imagens de eventos reais, nada foi feito ou encenado especialmente para o filme.

Hoje, recordar esse fato pode contribuir para aumentar o efeito retórico e emocional do filme, mas a verdade é que, sem a montagem de Shub, elas não contam história alguma. É a maneira como Shub as justapõe que as faz contar uma pungente narrativa pró-revolucionária. Aliada ao uso de intertítulos escritos por ela mesma, a montagem de Shub aponta didaticamente para uma direção definida, uma versão bem estruturada da história. Contudo, isso não significa que ela dá todo o sentido da história para os espectadores. Seus textos às vezes são descritivos como as imagens, mas às vezes são também irônicos, principalmente se comparados a elas.

Como bem apontou Lev Kuleshov, o que interessa a Shub é contar uma história que o público compreenda. Em conformidade com a ostranenie, o filme é rico em imagens mais sutis, detalhes da vida comum filmados, imagens que remontam às origens do cinema e podem, hoje, ser vistas de uma perspectiva arqueológica, luzes e texturas que parecem compor um palimpsesto fílmico. Todos esses elementos, textuais e visuais, compõem então um conjunto de pistas que o espectador pode seguir para construir o seu sentido do filme, relacionando o explícito e o explicado na tela com o implícito e o complicado, ficando livre para fazer as suas próprias inferências. Pois embora trabalhasse com imagens compiladas realizadas por outros, Shub as reorganiza tendo em vista permitir que os seus espectadores as interpretem a partir das suas próprias histórias de vida naquele conturbado momento. A história que ela conta não é menos real do que a de seus espectadores; é uma história de fato acontecida, não é apenas uma versão da história. Isso faz toda a diferença, pois é nítida a escolha de Shub de não favorecer a sua própria representação pessoal dos acontecimentos, como é evidente no caso do olho-câmera de Vertov. Em vez disso, Shub busca alinhavar um material que é irredutivelmente complexo apenas para que o espectador não se perca num caos disparatado de imagens desconexas. A personagem principal dessa história, então, só pode ser o público a quem ela é exibida – no caso específico, as massas de trabalhadores para quem o filme foi exibido e distribuído pela Goskino.

Tendo em vista essa sua natureza de produto encomendado e distribuído por um aparelho de Estado, os filmes de Shub também são verdadeiras pedras no sapato das teorias da indústria cultural que se pautam dogmaticamente por noções como “embotamento da percepção”, “reificação do desejo”, “imagens melancólicas” e outras fórmulas conceituais parecidas. E mesmo que as escolhas narrativas de Shub apareçam, hoje, evidentes, nem por isso são menos difíceis de assimilar. Pois nenhuma arte, nenhuma reflexão teórica, nenhuma ideologia são capazes de captar completamente o real. O alinhavo realizado por Shub é da ordem de um compromisso com a sua realidade histórica. Como ela não desejava impor aos espectadores o mesmo compromisso, mas sugerir que eles assumissem o seu próprio, o filme torna-se tanto mais incômodo. Se não há nele indiferença ou “neutralidade”, tampouco há autocomiseração para alimentar a catarse do público. Há uma História, com H maiúsculo, que escapa à síntese universalizante e da qual nós, humanos que somos, não conseguimos escapar – ao contrário, a História é nossa tarefa inescapável.

Esse é o sentido da narrativa de Shub: temos de fincar pé no chão da nossa realidade vivida com a consciência de que não estamos e jamais estaremos na posição de divindades oniscientes e onipotentes. Os últimos que assim se julgaram acabaram...

Deixo aos leitores que complementem a última frase como melhor lhes aprouver.

Cordiais saudações.


Nota: Felizmente, Esfir Shub está deixando de ser desconhecida no país. Encontra-se em fase de financiamento coletivo, pela Editora Kinoruss, um volume de escritos da própria Esfir Shub. Esperemos que seus filmes também passem a ser vistos mais frequentemente, com legendas em português, nas telas nacionais. Enquanto isso não acontece, A queda da dinastia Romanov pode ser visto, com intertítulos em inglês, qualidade de imagem razoável e trilha sonora menos do que isso, no YouTube.

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