Correio da Cidadania

Por que a fotografia é importante?

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“Não há nada pior do que uma imagem nítida de um conceito confuso”.
Ansel Adams (1902-1984)

“Fotografia de política tem muito mais de futuro do que de passado”.
Orlando Brito (1950-2022)


Em uma conhecida reflexão sobre a fotografia e o cinema, o filósofo estadunidense Stanley Cavell chama a atenção para um fato: diante de uma fotografia, não sabemos exatamente o que vemos. Se o que vemos é uma representação de algum fato ou coisa, essa representação é verdadeira ou falsa? Não sabemos. Se não é uma representação, é o que então? Tampouco sabemos. Se, nos dias de hoje, a quantidade de imagens com que nos deparamos constitui por si um fato desconcertante, tanto mais relevante é a reflexão de Cavell: fotografias são desconcertantes não porque não as conseguimos interpretar, mas porque não sabemos como interpretar nossa própria relação com a realidade. A fotografia é um sintoma de uma desconexão anterior, não sua causa. Daí sua importância e seu fascínio: consciente ou inconscientemente, as imagens fotográficas afetam nossa percepção e contribuem para moldar nossas concepções éticas, estéticas etc. Além disso, nos dias que correm, nenhuma foto é uma ilha e nenhum olhar é só um olhar. Vemos, acompanhadas de toda sorte de signos, palavras e números, fotos em telas, vinculadas a textos, contextos e paratextos. É incontornável concluir que esse fenômeno torna o ato de ver, ou ler, muito mais complexo, e se quisermos questionar um pouco mais nossa própria relação com as imagens e com o mundo, vale a pena levar essa conclusão mais adiante. Pois uma coisa é achar que sabemos o que vemos, outra é realmente saber.


Imagem 1: Foto de Gabriela Biló publicada no jornal Folha de São Paulo em 19/01/2023. Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/19/fotografa-folha-imagem-lula-montagem-foto-planalto-vidro-gravata.htm  acesso em 20/01/2023.

Se volto a escrever neste espaço após tanto tempo é porque, neste tumultuado começo de ano, ao menos um acontecimento serve para exemplificar bem essa falta de ceticismo quanto às nossas próprias crenças. Em 19 de janeiro, o jornal Folha de S. Paulo publicou, com destaque em sua primeira página, uma foto realizada por Gabriela Biló do presidente Lula atrás de uma vidraça estilhaçada. Sob a foto, uma legenda: “foto feita com múltipla exposição”. Como de hábito nas redes, a polêmica deu-se imediatamente. A alegação que resume as objeções é que a foto, por ser “artística”, não cabe no jornalismo, atividade pautada pelo “registro” dos fatos. As mais indignadas reações cobraram, tanto do jornal quanto da fotógrafa, mais “ética” na publicação de uma “montagem” em um contexto delicado para a democracia brasileira. Pode ser que se trate de mais uma polêmica passageira, mas é um caso que dá o que pensar. Logo me ocorreram à mente a indústria cultural de Adorno e Horkheimer, a Central Scrutinizer de Frank Zappa, a entrevista de Marilyn Manson a Michael Moore em Tiros em Columbine, a Persépolis de Marjane Satrapi e algumas lembranças de infância: a culpada é a música, a televisão é a ruína da juventude. Certamente, não devo ter sido o único a pensar assim.


Imagem 2: A jovem Marjane Satrapi levou o punk de Paris a Persépolis: https://youtu.be/0Ir2gUiHxwQ 

À parte questões de delicadeza, para mim, o que mais espanta é o pânico moralista calcado na explicação técnica, algo que me parece de uma desprezível má-fé. Nos comentários que li, de pessoas respeitadas (algumas mais, outras menos) tanto no mercado fotojornalístico quanto no acadêmico, a explicação da técnica fotográfica trouxe à discussão uma suposta essência histórica da fotografia e do jornalismo: representar fielmente os fatos. Disso, passou-se rapidamente à censura: a fotógrafa e o jornal realizaram uma transposição ilícita, injustificada no atual contexto, pois impuseram aos fatos uma camada maior de subjetividade do que... do que, cara pálida?

Bem, ao recriminar o jornal e a fotógrafa, tais toscos comentários fizeram exatamente o que censuram: impuseram à “montagem” a própria subjetividade, expectativas ideológicas e desejismos políticos, tentando disfarçar essa imposição autoritária com o recurso à história e à ética.

Pois bem. Sem falar nos problemas de concluir um juízo de valor de um juízo de fato, considero indiscutível que a fotografia de Gabriela Biló é uma obra de arte, ao que acrescento, uma obra-prima. E as reações mais banais a qualquer obra de arte, na falta de algo inteligente a dizer, fatalmente redundam na dicotomia entre a técnica artística e a ética da mensagem. Em outras palavras, ainda que a técnica do artista seja louvável, o que se quer dizer com essa técnica é reprovável. Ou, pior: jornal não é lugar para arte, há limites. Ora, nada mais rasteiro e vagabundo. Ou não é narrativa a atividade jornalística? Essa separação entre forma e conteúdo parece crítica feita por um médium charlatão de Itaguaí, aquele que incorpora a entidade metafísica da mensagem primordial. Mas tal absurdo ideológico é ainda insuportavelmente sintomático da mais estúpida falta de criatividade: que arrogância suprema é essa que diante de uma fotografia supõe que a imagem é equivocada e que não são possíveis outras interpretações, outras leituras? Ou seria justamente o reconhecimento de que outras interpretações diferentes da minha preferida são também possíveis o que incomoda?


Imagem 3: Foto de Ivan Pacheco, em dupla exposição, da final da Copa das Confederações de 2013. Fonte: https://placar.abril.com.br/esporte/a-grande-final-em-imagens-em-multipla-exposicao , acesso em 19/01/2023.

Pouparei quem estiver a ler este mal escrito de minha parte de teorizar superficialmente sobre impossível objetividade ou neutralidade jornalística. Em vez de ofender a inteligência do público e recorrer à história do (foto)jornalismo para recuperar seu papel originário na sociedade, na política ou onde quer que seja, darei como certo que o jornalismo só se sustenta por narrativas. Tampouco vou tentar explicar a técnica da multiexposição fotográfica, visto que até a própria fotógrafa viu-se constrangida a fazê-lo em suas redes. Contra a pedantocracia hegemônica, é útil lembrar que sentido ou significado não existem como essências, mas, antes, são funções da interpretação e têm mais que ver com os efeitos suscitados pela foto (ou texto, pouco importa) em quem a vê (ou lê) do que com sua técnica de (re)produção. Por isso, em vez de tentar enquadrar o fato em alguma ideia preconcebida, é melhor tentar imaginar que falta (de imaginação?) nossa é revelada por esse mesmo fato. E o fato, aqui, é a publicação de uma foto em um jornal, em um país, em um momento histórico tão delicado quanto todos os outros. Assim, se recorro, aqui, a alguma história, é para deslegitimar qualquer tentativa de remeter a um fundamento substancial como sustentação de uma ética.

Por sua própria tecnologia, a fotografia sempre foi considerada um poderoso instrumento de conhecimento científico, uma forma objetiva de registrar ou documentar o real. A série de fotografias de Eadweard Muybridge, retratando o galope de um cavalo, talvez seja o exemplo mais famoso dessa ideia. Partindo do fato de que a luz gravada na chapa ou película sensível é realmente um efeito físico real que cria a imagem fotográfica, a narrativa tradicional conclui que essa última se torna, então, um registro fiel que é também um objeto real, um pedaço da própria realidade representada. A conexão física da fotografia com o fotografado torna a primeira um índice do segundo, como se a foto fosse um rastro do real que por ali passou.

A relação física da luz com a chapa ou filme fotográfico levou a um grande debate sobre a fotografia como forma de arte. Na verdade, se atualmente é considerada uma forma de arte autônoma, a fotografia foi a primeira das artes que teve de justificar sua existência como tal. A disjunção entre registro do real e valor estético ainda hoje é bastante forte nas concepções comuns da fotografia, e toda essa força reapareceu nas críticas dirigidas a Gabriela Biló e à Folha de S. Paulo. Para os defensores da moralidade noticiosa, a fotógrafa se feriu no fio da navalha que define o limite e a ambição suprema do fotojornalismo. Mas essa disjunção entre o real e o fictício, por mais convincente que seja, é falsa e atrapalha o entendimento da fotografia como técnica narrativa. Ora, se há muito reconhecemos que o ato do enquadramento, o clique em certo momento e até mesmo a escolha do equipamento são atos subjetivos (e sociais), é bem verdade que, atualmente, os meios eletrônicos de criação e edição de imagens já não permitem mais sustentar ingenuamente a tradicional concepção da foto como representação do real.

Assim, a consequência mais óbvia e imediata da fotografia eletrônica é mesmo a necessária relativização, se não o abandono, da concepção da foto como um indício do real, um atestado de que a coisa fotografada realmente existiu em dado momento e em dado lugar. Se lembrarmos que as fotos de Muybridge foram encomendadas para, de certa forma, testemunhar ou arbitrar a verdade do movimento do cavalo, esse fato deveria nos esclarecer acerca da insuficiência dessa concepção cientificista da fotografia. Hoje, as mesmas fotos de Muybridge, justamente por seu caráter documental, parecem-nos estupendas realizações estéticas, obras de arte cuja união entre forma e conteúdo é perfeita ao ponto de sua indissociabilidade.


Imagem 4: “Homem/Cavalo (veículo)”, série de fotografias de E. Muybridge, c. 1872-1881. Fonte: https://www.eadweardmuybridge.co.uk , acesso em 19/01/2023.

Como afirma Cavell, a crença de que a câmera não mente é tão ultrapassada e inócua quanto a de que mente. Não sei se capto bem o que o filósofo estadunidense tencionava dizer, mas arrisco que o ponto é o da intencionalidade: mentir é um ato intencional que pode ser feito mesmo quando se diz a verdade, com o objetivo de desviar a atenção alheia daquilo que realmente interessa. No entanto, a ligação da fotografia com a intencionalidade enunciativa é mais complicada, pois não se trata de qualquer enunciação. Por ser antecedida de um processo de deliberação subjetiva por parte do fotógrafo, a imagem fotográfica é inevitavelmente um ato enunciativo que condensa perspectivas diferentes, como bem apontado por Arlindo Machado (“Fotografia em mutação”, 1993). Tendo em vista que o ponto de vista de quem fotografa nunca é apenas um, mas sim uma condensação de escolhas e perspectivas diversas às quais, em momento posterior, vêm se juntar outras, as nossas, nós que somos os observadores das fotos, cada foto nunca é apenas uma foto, pois contém em si várias fotos possíveis. Tão melhores são considerados os fotógrafos cujas fotos parecem não admitir outras perspectivas, e tão raros são eles, porque sempre é possível admitir outras perspectivas, outros recortes, outros enquadramentos, até mesmo dentro de um enquadramento já dado. O que interessa, e por que, depende não apenas do gesto fotográfico, mas de um ato interpretativo de quem vê.

Daí vêm a importância e a significação das fotografias: não como registros perfeitamente objetivos de qualquer realidade diferente de nós, mas transfigurações, nas palavras de Cavell, e, além disso, emanações, isto é, produções do visível, para falar com a pensadora brasileira Lúcia Santaella. Fotografias são elas mesmas objetos reais expostos à observação pública a nos provocar efeitos os mais imprevisíveis, pois “basta o flagrante da câmera para que as coisas adquiram um caráter singular, um aspecto diferente do que elas têm no fluxo vertente da vida” (Santaella, Lucia. Leitura de Imagens. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012, p. 78. Edição do Kindle.)

Assim, menos interessa se as fotografias mentem ou não do que o valor que damos a elas e à nossa relação com elas. Nesta nossa época em que a manipulação digital de imagens é acessível a qualquer pessoa que disponha de um pequeno aparelho que cabe no bolso, somos constantemente lembrados de que a fotografia não difere de qualquer outra forma de arte mais antiga em que incide a subjetividade humana: manipular imagens não é prerrogativa de artistas especializados, não mais do que criar narrativas o é de escritores ou jornalistas profissionais. Os filmes de um Georges Méliès, nos primórdios do cinema, são frequentemente recuperados para ilustrar esse ponto, assim como as manipulações políticas de imagens com o intuito de falsificar a história, algo que remonta pelo menos ao século 19 e com ampla difusão no século 20. E não é só isso. Atualmente, fotografias resultam da combinatória de matrizes matemáticas, produtos de softwares programados por pessoas reais, o que evidencia um elemento subjetivo anterior ao próprio gesto fotográfico tradicional.

Não podemos senão concluir que a fotografia sempre foi adulterável, manipulável, falseável e, sobretudo, interpretável. Se, em outros tempos, um exame com um microscópio ótico bastava para identificar manipulações de imagens, atualmente isso é extremamente difícil, se não impossível. Basta citar, como exemplo, os vídeos denominados de “deep fake” para que a ideologia da evidência comprobatória da fotografia não apenas desmanche no ar, como caia por terra estrondosamente toda vez que alguém a rememore. Não é arbitrário, então, que até em documentos oficiais de identificação a fotografia já tenha deixado de ser usada como registro inequívoco da realidade. No caso da foto de Gabriela Biló, talvez esteja aí boa parte do incômodo: não é a pessoa real do presidente que está ali, pois isso é impossível, mas uma imagem dele, sim, construída, idealizada e de objetividade relativa. Uma imagem que foi vista como ameaçadora, mas, penso, não pelas razões alegadas, não por revelar uma realidade indiscutível do nosso contexto, e sim porque revela o quanto de misticismo há em narrativas que pretendem recusar o mito (o que não deixa de ser uma incômoda revelação, sem trocadilhos).

Imagem 6: A cadeira do presidente dos E.U.A. John F. Kennedy, fotografada de costas por Cornell Capa, 1961. Sobre essa foto, vale ler o que escreveu Walter Firmo: https://blogdoims.com.br/glorificar-a-margem-por-walter-firmo , acesso em 19/01/2023.

Devemos, então, relegar a fotografia ao âmbito da mais lúdica ficcionalidade sem maiores consequências? Creio que não. Na verdade, a tecnologia contemporânea potencializa a expressividade da fotografia, tornando cada vez mais necessário – em proporção direta ao seu processo de perda de valor documental – diversificar as narrativas. É forçoso reconhecer que o genuíno objeto da fotografia continua a ser a luz, e não os corpos físicos que a refletem. Cada foto é, ao fim e ao cabo, uma transfiguração altamente sofisticada desse fenômeno praticamente universal e inescapável para nós, meros mortais que não vivemos e não podemos viver em buracos negros. E se a fotografia é ela mesma uma emanação, uma mediação cujos efeitos se dão sempre e necessariamente no campo da interpretação, tanto mais necessário se faz vislumbrar possibilidades ao olhar pela luz que ilumina o objeto fotografado (Santaella, 2012, p. 68).

Para quem fotografa, a tecnologia abre amplas possibilidades de transfigurar, visualizar, refletir. A começar pela democratização da capacidade de intervir e controlar o processo de criação das imagens, tendo em vista que o trabalho tradicionalmente a cargo de técnicos de laboratório é hoje em dia realizado, no mais das vezes, pela própria pessoa que fotografa. Para ficar apenas no âmbito da natureza da fotografia, a própria arte não é mais tão estática quanto já foi um dia, visto que muitas técnicas – além da exposição múltipla, também stop motion, live photos, e até câmera lenta, dentre outras – já estão disponíveis ao toque de um botão. Recorrendo novamente a Arlindo Machado (A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo: Brasiliense; FUNARTE, 1984), o que acontece, de fato, é a mistura de linguagens que funde técnicas de fotografia, cinema e vídeo, mas também pintura e desenho. É claro que isso pode resultar em confusão e imagens pouco nítidas, mas a consequência mais importante é que as antigas divisas entre gêneros e formas de arte dissolvem-se facilmente. Esse ponto aparece em uma das manifestações de Gabriela Biló, na afirmação de que, em sua profissão, ela busca resolver a linguagem principalmente na câmera, no momento de fotografar, e isso não significa menos criação estética do que se essa resolução fosse feita na edição posterior.

Imagem 7: Foto de Marina Silva, por Gabriela Biló, em técnica de múltipla exposição. Fonte: Instagram da fotógrafa, https://www.instagram.com/p/CnXJ_1ELRdT acesso em 19/01/2023.

É claro, a responsabilidade de quem cria as imagens aumenta, mas também a de quem as consome: é inegável que o trabalho com imagens alteradas e linguagens híbridas já é de domínio corriqueiro de um grande público não especializado. Tal capacidade de intervir não apenas no momento da produção, mas também no do consumo e, principalmente, no da circulação, isto é, no da troca das imagens, transfere a responsabilidade do fotógrafo ao público. Quem seria capaz de negar que, hoje em dia, todos fazemos parte de um público que não é só observador, mas também e sobretudo sujeito, pois compreende e usa a fotografia para se exprimir e criar narrativas? A massiva exposição pública das selfies nas redes digitais põe tanto mais em evidência o caráter dialógico da intencionalidade significativa, o que pode ser entendido como um desenvolvimento previsível daquela condensação de perspectivas que o gesto fotográfico desde sempre opera. Com isso, toda tentativa de enquadramento ideológico esconde a riqueza das imagens, e mais impede a elaboração de diferentes interpretações do que contribui para a emergência de narrativas democráticas e plurais. E fotografar é, definitivamente e cada vez mais, narrar. E narrar nunca foi apenas descrever ou registrar fatos consumados.

Imagem 8: Santo Amaro da Purificação, Bahia, 2002. Foto de Walter Firmo. Fonte: https://ims.com.br/wp-content/uploads/2019/01/Walter-Firmo-Santo-Amaro-da-Purifica%C3%A7%C3%A3o-BA-2002_1920px-640x419.jpg 

Não está aí, então, grande parte da importância da fotografia? A intencionalidade no olhar fotográfico sempre acaba por revelar alguns aspectos visuais, mais ou menos inusitados, mais ou menos corriqueiramente despercebidos, de forma a compor alguma imagem do ambiente. É inegável que a fotografia é capaz de tornar visível o que cotidianamente passa por invisível, mesmo neste nosso mundo saturado de imagens fotográficas informadas pela cultura média (e talvez por isso mesmo). Mas quanto somos capazes de elaborar o que está ali na frente de nossos próprios olhos sem bloquear a visão alheia? Como exprimir em linguagem crível isso que vemos? Há mais ou menos quatro décadas, Cavell ligava essa potencialidade fotográfica ao ceticismo: a fotografia é capaz de nos fazer suspender juízos e questionar nossa relação com o mundo, ainda que nem sempre seja intencionalmente usada para isso. Mas será que são claras para nós as situações em que aparece uma coisa e não outra? Na mesma época que Cavell, Villém Flusser ainda afirmava que a fotografia transformava conceitos em cenas (Filosofia da caixa-preta. São Paulo: Hucitec, 1985): por ser a concretização de todo um aparato técnico e científico, cada foto apresenta como que uma potencialidade de atualização conceitual. A isso, acrescento uma óbvia constatação: olhar uma fotografia instiga a imaginação. O que deve ter sido? Como pode ter sido? O que poderia ser? Se isso se dá, a comunicação então se amplia para abranger significados virtuais e a realidade entra em questão pela imagem. A fotografia, mais do que mera forma, registro ou documento do real, entra definitivamente no campo do simbólico, da imaginação conceitual, do encadeamento lógico próprio das narrativas, como no cinema de ficção (“Fotografia como expressão do conceito”, 2000) – ou no jornalismo, não?

Por estar prenhe de subjetividade e conceito, a fotografia de Gabriela Biló é fortemente sugestiva, portanto, irredutivelmente inquietante. Parece mesmo que a tentativa de a enquadrar ideologicamente é uma recusa ao convite talvez mais atrevido que a fotografia nos faz, o de participar de maneira ao mesmo tempo ativa e desconfiada na criação não apenas das imagens, mas, principalmente, da nossa relação com algo que não conseguimos distinguir ao certo dessas mesmas imagens – o que chamamos de realidade.

Cordiais saudações.

Post-scriptum: este texto foi escrito no calor do momento, em 20 de janeiro de 2023. Desde então, outras vozes se levantaram em favor da fotógrafa e contrariamente às críticas por ela recebidas. Confesso que isso me deixou bastante contente e um tanto quanto aliviado.

Imagem 9: “Fotografando pra me distrair enquanto espero o presidente / 06/05/2020 / Palácio da Alvorada”, fotografia e legenda de Gabriela Biló. Fonte: Instagram da fotógrafa, https://www.instagram.com/p/B_3SFsfnksb/ , acesso em 20/01/2023.

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