A prostituta, a neve, os sonhos
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- Cassiano Terra Rodrigues
- 22/12/2008
Este texto é dedicado a Walther Castelli Jr., Magistro Impurus.
1957 foi um ano e tanto do século XX. Nesse ano, após proclamar o Pacto de Varsóvia em 1955 e após denunciar os crimes de Stalin e seu "culto à personalidade" em seus relatórios secretos, em 1956, Nikita Krushev ordenou a invasão da Hungria, pondo fim à Revolução Húngara. Ainda em 1957, deu início ao programa espacial soviético, com o lançamento do satélite Sputnik. E em 1957, o Leão de Prata do Festival de Veneza foi para Noites Brancas (Le notti bianche, Itália), adaptação de Luchino Visconti para o conto homônimo de Dostoievski.
Não foi a primeira nem a última adaptação de um texto literário para as telas feita pelo diretor italiano. Mas talvez seja a mais intrigante. O enredo é simples, o mesmo de Dostoievski: o conto das esperanças imaginárias de um solitário de ganhar o amor de uma jovem desesperada que ama outro, a quem espera sem saber se virá. Assim dito, poderia ser somente um folhetim romântico e banal. Mas, primeiro, temos Dostoievski; depois, Visconti.
O conto de Dostoievski está mesmo muito próximo ao romantismo, embora longe de ser ingênuo: o anônimo personagem principal tem um traço decisivo do flânneur – na rua, embora não se relacione com ninguém, ele se sente em casa. Então, encontra Nastiénka e se apaixona, passando a sonhar com o que desde o início sabe impossível – ela lhe avisa para não se apaixonar. Ele não a ouve, e a falta de senso de realidade o faz ridículo, ou quase paranóico (amigo dos prédios, ele conversa com as fachadas...).
Visconti filma a história desse sonhador transformando-o em um realista que age impulsiva e solitariamente. Assim como no conto, parece que o mundo dos problemas individuais, fechado sobre si mesmo, se separa do contexto histórico e social mais amplo, o que cria uma perspectiva de dissimulação quase alucinatória. O filme não perde esse aspecto e faz homenagem ao cinema expressionista alemão com a cenografia. E, contra o fundo de um cenário obviamente artificial, pouco importa a verossimilhança (se Livorno ou Veneza) ou a fidelidade ao conto (se ela é mais proeminente do que ele). Pouco importa a transparência narrativa – importa a cenografia como metáfora dos estados de alma, das reações subjetivas, do universo do onírico. Centrado na pequena ponte sobre a qual os dois personagens principais se encontram, certa espacialidade claustrofóbica domina todo o filme, com seus planos fechados e curtos, seu cenário de linhas exageradamente marcadas, o céu impressionante, a luz impossível.
O expressionismo alemão, com os filmes de Robert Wiene, Fritz Lang, Josef Von Sternberg, dentre outros, questionou um mundo em dissolução: a industrialização e os impasses do imperialismo colonialista europeu enterraram o Velho Mundo na mais cruenta guerra até então, jogando por terra as velhas certezas. É esse mundo em frangalhos que, com a iluminação e os cenários teatralizados ao extremo, os cineastas do expressionismo mostraram na tela o desconcerto humano com um mundo absurdo.
O filme de Visconti persegue essa mesma lógica onírica – o corte súbito entre passado e presente num mesmo plano acentua a fusão entre real e irreal. A trilha sonora de Nino Rota é classicamente hollywoodiana, embora o roteiro e a cenografia contrastem com a música aparentemente convencional. E a banalidade aparente de um singelo conto de amor é na verdade a simplificação do enredo numa parábola, o que permite o aprofundamento dos arquétipos. Com isso, o filme evita clichês fáceis, metaforizando os tropoi da perda e da ingenuidade.
Então, ainda que rompa visualmente com a estética do neo-realismo, no fim, o filme de Visconti termina com a mesma dura realidade da vida comum, simbolizada pela dor da perda de um amor impossível. Realidade e irrealidade coexistem no mesmo mundo, e é quase impossível distingui-las: o conto evoca as noites do verão de São Petersburgo, quando o sol quase não se põe, nunca chegando a anoitecer completamente; assim, cria-se uma metáfora dos sonhos em vigília do personagem. No filme, há a neve e sua brancura, sua branca neutralidade, sua branca delicadeza, sua suavidade branca, que escorre como um nada na palma da mão, tal como um sonho se desfaz quando acordamos.
Particularmente notável é a atuação de Mastroianni, que, dessa vez, faz um homem genuinamente tímido – mesmo quando dança clownescamente, sua atuação é contida. Seu personagem, Mario, embora belo e desejável, demonstra-se desajeitado com as mulheres, exatamente o oposto do que nos acostumamos a associar com o ator. E, ao contrário do anônimo dostoievskiano, não é propriamente um sonhador, já que recusa o amor fácil e ilusório da prostituta, sempre buscando a sinceridade com Natalia – quando ela, a verdadeira sonhadora no filme, enreda por românticos devaneios, ele sempre tenta chamá-la à realidade. Sem sucesso...
Maria Schell, como Natalia, faz o clássico papel da moça ingênua e romântica. Durante quase todo o filme sua personagem é filmada como se olhasse para a lua, olhos esbugalhados esperando um príncipe ou cavaleiro que a levará embora dali...
Jean Marais aparece como o inquilino sem nome, numa atuação – arrisco – mítica. Por que Natalia se apaixonou por esse homem misterioso? Não sabemos – nem precisamos saber, já que o amor é assim mesmo. Pode-se dizer que as mulheres freqüentemente se apaixonam por esse tipo misterioso, um tanto frio e distante, mais velho, mais experiente etc. (embora 99 de 100 provavelmente preferissem Mastroianni a Marais; a melhor história, porém, é a da exceção à regra).
Natalia é o oposto de Mario – ao contrário dele, forasteiro em busca de raízes, ela quer sair, se libertar do passado como nos contos de fadas. No entanto, apesar da ingenuidade e infantilidade, a fé e o idealismo dela são recompensados. Ele, com seu senso lógico de praticidade, fica sozinho – embora também não despreze os momentos de alegria que passou com Natalia –, afinal, o que os separa é uma ponte. Mario é seu nome, il proprio nome italiano, um italiano em alheamento em sua própria terra – uma sinédoque da Itália em reconstrução depois da IIª Guerra? Aliás, somente quando mostra ruínas é que a cenografia deixa de evidentemente denunciar o cenário – eis mais uma concessão ao neo-realismo. Podemos também lembrar a prostituta, enigma maior do filme: qual convite ela faz a Mario? A que ela o chama? Em outro filme do mesmo ano, outra prostituta se chama Cabíria...
No filme, a mocinha sonhadora e romântica é recompensada; o mocinho realista, mas que também não deixa de ser romântico, tem de enfrentar a dor da perda. Podemos pensar que Visconti recompensa a ilusão, a redenção particular e ingênua, apesar do contexto sufocante e claustrofóbico. Ou então, ele nos alerta para o fim de certos sonhos, com dores e perdas futuras e mais contundentes. Ao recusar as lições de moral e a futurologia, o filme ganha em riqueza.
Cordiais saudações, boas festas e até 2009.
* * *
Dica: Fim de ano, a TV vai reprisar Ben-Hur, O Rei dos Reis e Os Dez Mandamentos pela quatrocentésima vigésima oitava vez (errei? Ah! O Rei dos Reis é na Páscoa...). Mas há uma alternativa, e nacional: Selton Mello estréia na direção com Feliz Natal. A conferir.
Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia na PUC-SP e prefere citar Dante Milano: "Há os que fogem da realidade, preferem sonhar. São aqueles de quem a realidade foge, e sonham com aquilo que a realidade lhes nega. Só se sonha com a realidade".
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Comentários
Mas tenho uma questão: em termos alegóricos (essa me parece ser uma das chaves interpretativas do texto), quem seria a prostituta (em verdade, nem reparara que a personagem de cabelos morenos o era)?
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