Correio da Cidadania

Viver, morrer, ser lembrado: A falecida, a peça de Nelson Rodrigues e o filme de Leon Hirszman

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À Maria Hirszman

 

A peça A falecida, de Nelson Rodrigues, apresenta uma mulher, Zulmira, moradora da Zona Norte do Rio de Janeiro, fins da década de 40, cuja obsessão pela morte traduz-se no desejo de ter um enterro luxuoso, "bonito, lindo... de penacho...". Fica clara, na peça, a intenção de Zulmira de ser enterrada com tanta pompa de modo a dar uma lição em sua prima e vizinha Glorinha: "Quando eu morrer," diz ela ao marido Tuninho, "Glorinha há de estar, na janela, assistindo, de camarote, o meu enterro, gozando. Ela sabe que estamos na última lona e, portanto, que meu enterro deve ser de quinta classe. Olha! Eu quero sair daqui! Nada de capelinha! Se Glorinha soubesse! Se pudesse imaginar que eu, na surdina, estou tomando as minhas providências!".

 

Algum leitor há de se perguntar: "Enterro lindo? Como assim?!?". Na peça, a razão da obsessão de Zulmira revela-se no terceiro ato: Glorinha é testemunha de uma traição de Zulmira. Em geral, as poucas análises da peça (de que este escritor tem conhecimento) vêem nisso algo de psicanálise superficial, justificada pelas posições ideológicas do autor, notório conservador e "reacionário". Não raro lemos que, em A falecida, Nelson Rodrigues faz troça da vida suburbana carioca, chegando mesmo a ridicularizar a personagem Zulmira.

 

Já o filme A falecida, dirigido por Leon Hirszman e roteirizado por Eduardo Coutinho (Brasil, 1965), apresentaria a história de Zulmira (na bela interpretação de Fernanda Montenegro) sob outra perspectiva, a da degradação e da alienação sociais da classe média. Em vez de um olhar ridicularizante, o filme traria um olhar compassivo para com as personagens alienadas e empobrecidas do subúrbio carioca, vítimas de uma realidade social injusta.

 

Agora, com o lançamento do filme em DVD, no quarto volume do projeto de restauração da obra de Leon Hirszman, tomamos conhecimento de uma declaração de Fernanda Montenegro: "Acho que há uma deformação, do ponto de vista dramático, quando se vê o Nelson. Ele (Leon Hirszman) quis fazer um filme, não anti-Nelson, ele nunca falou isso, mas um filme que mostrasse o lado denso do Nelson, sem folclore".

 

Propomos aqui uma interpretação que tenta harmonizar a idéia da alienação com a de uma dramaturgia rodriguiana densa e sem folclore, seguindo a nota dissonante sugerida pela grande atriz.

 

A interpretação aludida – que também explicaria as desavenças entre o diretor e o dramaturgo, o qual não teria gostado do filme – é confirmada por dois grandes críticos do cinema brasileiro. Diz Jean-Claude Bernadet:

 

"A falecida, baseado em peça de Nelson Rodrigues, é a história de uma alienação. (...) A falecida poderia ser um esplêndido retrato da vida suburbana carioca e excelente evocação do marasmo em que vive grande parte da classe média do país, em conseqüência das contradições que já vimos e do processo acelerado de proletarização em que se encontra. (...) A falecida sugeriria perfeitamente essa degradação lenta da classe média, esse resvalo para um nível de vida baixo, essa diminuição de suas possibilidades, não fosse a segunda parte do filme, em que um retrospecto dá a explicação do comportamento de Zulmira: tudo isso porque fora adúltera e apanhada em flagrante por uma vizinha. O filme então resvala para uma psicanálise de folhetim, perdendo-se todas as implicações da primeira parte. Tem-se a impressão de encontrar na primeira parte Leon Hirszman, enquanto a segunda é de Nelson Rodrigues. Nessa primeira parte, reconhece-se de fato um aspecto da temática de Hirszman – uma vida que existe em função da morte –, mas as explicações de Hirszman nunca poderiam limitar-se a um adultério" (em Brasil em tempo de cinema, livro de 1967).

 

De fato, o próprio diretor declarou, certa vez, ter deliberadamente mudado o enfoque da narrativa, reduzindo uma característica ênfase psicopatológica rodriguiana na construção da personagem Zulmira para apenas um motivo dentre outros, de modo a ressaltar, por exemplo, a dimensão social da "farsa trágica" (denominação presente no programa de estréia da peça em 1953).

 

No mesmo diapasão, afirma Carlos Augusto Calil: "Nelson Rodrigues, na peça A Falecida, escarnece de uma mulher suburbana, com vocação bovarista, que não suporta o olhar implacável e moralista de sua medíocre comunidade. Leon Hirszman tem compaixão pela personagem lânguida e não a condena. Eis aí o princípio do desentendimento entre autor e diretor" ("Leon Zona Norte", texto do encarte do DVD).

 

De fato, a alienação é tema tanto na peça quanto no filme. É sintomática a fala de Tuninho: "Às vezes, eu tenho inveja de ti. Tu não te interessas por futebol, não sabes quem é Ademir, não ficas de cabeça inchada, quer dizer, não tens esses aborrecimentos... Benza-te Deus!" (escrita por Nelson, mantida quase ipsis litteris no filme). O filme, ainda assim, traz elementos que trazem a alienação ao primeiro plano: o cenário de degradação espacial dos subúrbios do Rio de Janeiro, a fotografia em preto e branco a reforçar os dias nublados e chuvosos das filmagens, a frase "no tempo em que Pelé era Ademir" inserida logo após os letreiros, no começo do filme, a própria Zulmira como alegoria da dissolução etc. E, de fato, vários testemunhos confirmam que Nelson Rodrigues não teria gostado do resultado da montagem final (nos extras do DVD, as declarações de Joffre Rodrigues e Eduardo Coutinho). Mas, independente disso, há outros pontos de contato entre as duas obras que gostaríamos de ressaltar.

 

Primeiro, lembremos que a morte é tema por excelência – obsessivo! – de Nelson Rodrigues. E, como bem lembrado por Ângela Leite Lopes ("As mulheres de Nelson Rodrigues"), uma vida em que se conquista uma relação com a morte não significa, necessariamente, uma vida para a morte. O que isso quer dizer?

 

A vida de Zulmira nada tem de especial: seu marido, Tuninho (Ivan Cândido, no filme), desempregado, só pensa em futebol e em jogar sinuca, mal se importa com ela. Ela vem a encontrar num caso extra-conjugal, com João Guimarães Pimentel (no filme, Paulo Gracindo, em grande interpretação), uma forma de escapar de sua realidade maçante.

 

Note-se: seu amante é a única personagem com nome e sobrenome, como a indicar sua confortável situação financeira (é a única personagem que tem visibilidade social: vítima de perseguição jornalística, orgulha-se, até, de seu nome aparecer nos jornais, e Tuninho, depois, se valerá desse fato para chantageá-lo). Eis, então, que Glorinha aparece para acordar-lhe do sonho: um amante rico, e que ainda por cima gosta dela, só podia ser mesmo um sonho... Para Zulmira, vencer as limitações e as repressões de sua condição miserável passa a ser vingar-se da prima. E como não tem meios de alterar sua realidade, passa a querer morrer, mas não qualquer morte: ela fixa-se em um enterro "como nunca houve aqui" (eis a "psicanálise de folhetim" rodriguiana), daqueles para não se esquecer durante muito tempo. Afinal, o que teria Zulmira a contar, se sua vida é frustrada, empobrecida e sem perspectivas? Esquecida em vida, por que deveria ser lembrada após morrer?

 

Na peça, um enterro luxuoso significa superioridade e distinção social, e não só para Zulmira, mas para todos os desprestigiados e marginalizados sociais. Em passagem excluída do filme, Timbira (no filme, representado por Nelson Xavier), funcionário da funerária, declara que "o embaixador" recusou um enterro caro à própria mulher: "Pra encurtar conversa: encomendou um de oitocentos cruzeiros e olha lá! Caixão mixa! (...)

 

E assim mesmo porque eu cantei aquela besta que só você vendo!". Já o bicheiro não pensou duas vezes e preferiu muita ostentação no enterro da filha: "Quando disse que podia arranjar, pra filha dele, um caixão assim, assim, com alças de bronze, forro de cetim, sabe que, lá, todo mundo ficou com água na boca? (...) Pedi 20 mil cruzeiros e ele topou, imediatamente. Se eu pedisse trinta, também dava, aposto! Descobri que bicheiro é um grande sujeito! (...) Cortina pra cinco portas, crucifixo de cristal, o diabo a quatro! Tudo 35 mil cruzeiros". É justamente esse o enterro dos sonhos de Zulmira: muito brilho, muita ostentação, muito barulho para não passar despercebido, inclusive com hinos da igreja teofilista na hora de fechar o caixão.

 

Nesse contexto, o tema da alienação pode ser entendido em outra clave. Em belíssimo texto, Walter Benjamin já em 1936 alertava para a expulsão da morte de nossa vida contemporânea: "Antes não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido alguém. (...) Hoje, os burgueses vivem em espaços depurados de qualquer morte e, quando chegar sua hora, serão depositados por seus herdeiros em sanatórios e hospitais" (O narrador). Para Benjamin, o inesquecível aflora no momento da morte, a própria vida ganha sentido no momento da morte. Ao presenciarmos a morte de um ser humano, partilhamos a experiência de uma vulnerabilidade à qual estamos todos sujeitos, fato que faz até mesmo "um pobre-diabo" moribundo ganhar autoridade, nas palavras de Benjamin. Para ele, é dessa autoridade que nascem as narrativas: desde os mitos e a grande narrativa épica, todos os narradores sempre contaram como a experiência humana não termina com a morte individual, mas continua, transmudada. O fato da morte, de certa maneira, é negado pela lembrança perpetuada pela narrativa. Com efeito, é isso mesmo que, com um enterro nababesco, querem o bicheiro e Zulmira, ao contrário do embaixador que, é claro, não precisa disso para ser lembrado. E, das várias personagens de Nelson Rodrigues marcadas pela consciência da finitude, Zulmira talvez seja a mais escrupulosa.

 

O enterro traduz a vontade de ascensão social de Zulmira, que ganha, no filme, contornos de transcendência. Na cena mais lírica, Zulmira parece querer ascender às nuvens e unir-se às gotas de chuva; a chuva vem lavar toda sua alma e livrá-la de todas as máculas que até o momento a confinam àquela situação depauperada; seu banho de chuva é pleno de sensualidade e êxtase.

 

A partir de então, a morte é inexorável. Não poderíamos, assim, entender que a experiência da doença, para ela, representa uma possibilidade de libertação a ser consumada com sua morte? Sua morte não significa, para ela própria, sua dignidade e sua permanência, muito mais que mera ascensão social por meio de um enterro luxuoso? A ascensão social seria, assim, meio, e não fim. Da mesma forma, a alienação e a vontade de morrer não são "fenômenos em si em um meio degradado" (como quer Jean-Claude Bernadet), mas – ao menos para Zulmira – um meio para uma realização maior: a transcendência absoluta, tema caríssimo a Nelson Rodrigues. Na impossibilidade da transformação total da realidade social, a morte adquire sentido duplo, simultaneamente interrupção e superação do presente imediato. A única possibilidade visada por Zulmira para sair de sua condição petrificada e mesquinha ("Eu quero sair daqui! Nada de capelinha!"), para evitar o esquecimento e a aniquilação completos, é morrer e ter um enterro diferenciado. Mais: a morte revelaria sua pureza e integridade. Ao contrário da prima, que teve câncer e perdeu um seio, Zulmira não teme ser despida publicamente depois de morta ("Eu sou a morta, que pode ser despida..."), pois seu corpo não está mutilado – ao contrário do marido, o amante não lava as mãos após tocá-la e não a chama de "fria" –, ela é capaz, seu corpo é capaz de ter, de partilhar experiências.

 

Mas, assim como muitos outros marginalizados, empobrecidos e brutalizados, Zulmira não será lembrada pelo que desejou. Seu enterro não foi luxuoso e sua lembrança passou como a de uma "vigarista". Assim como a de muitos marginalizados, sua morte só será lembrada pelo que não foi; como muitas mulheres, nem no momento da morte ela conseguiu vencer as imposições e a indiferença do marido. O trágico revela-se, ao fim, no choro de Tuninho no estádio; o farsesco, no seu ato de jogar dinheiro às arquibancadas.

 

Zulmira seria totalmente esquecida após um cortejo vulgar, não fossem dois incomuns narradores a lembrar-nos de sua existência. Nelson Rodrigues conseguiu capturar, em várias de suas peças, essa apreensão intuitiva do sentido da vida que têm as pessoas comuns que, como Zulmira, vivem violentamente alijadas de si mesmas, a todo momento, no mundo todo. Leon Hirszman veio nos lembrar de que um banho de chuva sempre pode nos trazer de volta a nós mesmos.

 

Cordiais saudações e boas festas.

* * *

REFERÊNCIAS: A cena da chuva pode ser vista no You Tube:

 

http://www.youtube.com/watch?v=51avECVROGE&feature=related

 

O DVD de A falecida ainda traz outros dois filmes em curta-metragem de Leon Hirszman: "Nelson Cavaquinho" e "Partido Alto", além de vários depoimentos nos "extras" (mais informações sobre o projeto em http://www.leonhirszman.com.br/).

 

Os trechos de Jean-Claude Bernadet e Carlos Augusto Calil foram impressos no bem cuidado encarte que acompanha o DVD. O livro Brasil em Tempo de Cinema ganhou nova edição em 2007, pela Companhia das Letras. O texto de Ângela Leite Lopes foi incluído na fortuna crítica do Teatro Completo de Nelson Rodrigues (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993), volume organizado por Sábato Magaldi, que há tempos merece outra edição. Já o texto "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov", de Walter Benjamin, pode ser encontrado no primeiro volume das obras escolhidas do autor, intitulado Magia e técnica, arte e política (São Paulo: Brasiliense, 1994, 7ª ed.).

 

Qualquer um dos itens acima pode ser um belo e memorável presente de Natal.

 

LÁGRIMAS: Uma para Mario Monicelli e uma para Blake Edwards.

 

Cassiano Terra Rodrigues é professor de Filosofia na PUC-SP e tenta esquecer-se do cotidiano árido escrevendo textos que espera não serem esquecidos pelos leitores.

 

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Comentários   

0 #3 boa morte...Humberto Zanardo Petrelli 27-12-2010 08:09
Professor Cassiano,

Parabéns pelo texto! Gostaria apenas de observar, com todo respeito, que eu não consigo compreender a necessidade de se “nivelar por baixo” sobre valores? E, na maioria das vezes, procurando na periferia ou nos excluídos da sociedade seus exemplos. Será que a ‘boa morte’ se resume apenas num enterro luxuoso? Parece que estamos nos desumanizando! Luis Buñuel, em 1950, produziu um filme bastante interessante, e que não tem muito valor para as pessoas comuns acostumadas com as “urgências” cotidianas das “grandes cidades”, chamado “Los Olvidados”, narrando a gênese do se nivelar os valores por baixo. “É coisa digna, sendo homem, não rir dos infortúnios dos homens, mas chorá-los”. Demócrito de Abdera (460-370 a.C.), neste seu fragmento 107a, já nos ensinava sobre a necessidade de se respeitar a todos. No entanto, o rumo à desumanização das “grandes cidades” tomou o lugar de se direcionar a uma vida digna. Deveríamos encontrar bons exemplos numa vida digna e virtuosa! Parece que essas palavras já soam estranhas para os apressados das “grandes cidades”. Procurar ensinar o que seria a “boa morte” realmente, tendo uma vida digna e toda preenchida por episódios que os gregos denominavam “momento oportuno e feliz” (kairos), é muito mais educativo do que comparar casos isolados e particulares da periferia, em que nossos governantes, desde a época do Nelson Rodrigues, pouco se importam e que uns outros apenas riem desses fatos precários alheios... Não sou dono da verdade, mas que poderíamos ter uma vida mais digna, isso eu tenho certeza!
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0 #2 ExcelenteMarta Kanashiro 23-12-2010 07:33
Texto muito sensível e acurado! E com ótimas referências!
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0 #1 Excelente artigoRigoletto da Silva 22-12-2010 18:34
É curioso porque hoje estava lendo o Ricoeur (Soi-même etc.) e na p. 190 ele finaliza um ataque ao Alasdair MacIntyre (sobre a falta de fechamento literário na concepção dele de unidade narrativa de uma vida) comentando o fato que após estarmos mortos não podemos narrar nossa morte. No caso dessa Zulmira, o que se vê é justamente essa tentativa de narrar o próprio enterro, de determinar a realidade mesmo após estarmos extintos. E o que eu acredito nessa questão é a narrativa funciona sim como recurso anti-niilista, mas não é suficiente. É preciso ter algo que nos transcenda para que confira sentido ou utilidade aos nossos atos, mesmo que esse ser seja ficcional e construído. Uma possibilidade é considerar a virtude de revelar a verdade como provendo essa esperança de imortalidade, pois a verdade, mesmo que seja historicamente inserida e variável, merecerá ser lembrada por outros no futuro, enquanto que as mentiras e fantasias serão descartáveis.Sei que isso pode parecer um filaletismo messiânico mas me parece melhor que outras opções por aí. Abraços, boas festas e parabéns pelo artigo.
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