A política entre o mito e a mentira
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- Cassiano Terra Rodrigues
- 04/01/2011
O western é, até hoje, identificado como o gênero cinematográfico dos Estados Unidos por excelência. Ninguém – ou quase ninguém – discute que os filmes de caubói transmitem os valores, as crenças, as superstições, os mitos dos EUA como pouquíssimos outros produtos culturais de lá exportados para o mundo. Mas, até mesmo por causa disso, os filmes de caubói podem nos dar a ocasião para uma reflexão política mais ampla.
Com efeito, já na década dos anos de 1950, o crítico francês André Bazin defendia que o western, como gênero cinematográfico, representava a epítome do cinema como um todo, isto é, que os filmes de faroeste materializavam a "essência do cinema", pois incorporavam, como nenhum outro gênero, o mito e a consciência mítica do mundo.
Talvez ele quisesse dizer, com isso, que os westerns apresentam personagens arquetípicos em narrativas arquetípicas, ou seja, em torno de certo número de questões fundamentais a qualquer sociedade ou civilização. Poderíamos citar, por exemplo, sem pretender esgotar as possibilidades, os seguintes temas, todos correlatos: a passagem de uma sociedade em que a vingança é imperativa para uma em que a justiça formalizada vem substituí-la; conseqüentemente, a relação entre a lei e a autoridade política; as tensões entre o privado e o público; a necessidade de uma organização social legítima, com poder legítimo para o exercício da violência; a igualdade e a dignidade morais da pessoa humana, na discussão do valor inestimável de cada indivíduo; a trajetória do herói; a dissolução dos padrões putativos de moral peculiares a determinadas classes sociais e muitos outros.
No entanto, há uma questão específica fulcral, a saber, a da formação dos Estados Unidos da América como nação. Com efeito, a maioria dos faroestes trabalha com o tema da fronteira dos EUA, da sua definição como nação e como país. Mas, ao contrário do que pode parecer ao senso comum, parece que não se trata do tema da expansão da fronteira, do começo dela, mas de seu término, ou seja, o fim do novo começo que os EUA prometeram a si mesmos. Não discutimos a persistência na cultura estadunidense do mito da expansão da fronteira; com efeito, o elemento central desse mito – um novo começo – transformou o Oeste, para os estadunidenses, naquilo que o próprio país fora para os europeus: um recomeço a partir do zero, o abandono do Velho Mundo e a entrada num Novo Mundo de possibilidades. Marc Ferro, em seu belíssimo Cinéma, une vision de l’histoire, chama atenção justamente ao fato de que poucos westerns tratam da guerra de independência dos EUA, ao passo que a quantidade de filmes que tratam da Guerra de Secessão é praticamente inumerável.
Ora, no período predileto dos westerns – de mais ou menos 1865 a mais ou menos 1890 –, os EUA estão deixando de ser uma terra de promessas, uma vasta e grandiosa potencialidade, e começando a se tornar uma atualidade histórica, como qualquer outro país europeu. E, de fato, a expansão e as possibilidades têm de terminar em certo ponto, pois a terra termina (embora o mito e a vontade de expansão possam continuar...).
Talvez nenhum outro diretor de cinema tenha tratado melhor de todas essas questões em dimensão mítica do que John Ford, peculiarmente chamado de "Homero" do cinema dos EUA. Poucas imagens são mais clássicas do que a de John Wayne dominando a paisagem do Monument Valley, naquele que é considerado o maior western de todos os tempos, Rastros de Ódio (The Searchers, EUA., 1956). Mas, vamos, aqui, considerar aquele que por muitos é considerado seu último grande filme, O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance, EUA, 1962). Filmado em preto e branco, todo em estúdio e sem o predomínio do motivo da horizontalidade da paisagem característico de outros filmes de Ford (bem como de outros), trata-se de um complexo, singular, e, podemos dizer, melancólico canto do cisne do diretor. Talvez mais do que em qualquer outra realização sua, este filme mostra o fim de uma grande noção de John Ford, a do velho oeste como um modo de vida.
O filme tem uma típica estrutura narrativa mítica: o flashback inicial leva o observador de volta ao tempo da origem, como um "era uma vez...", para que possamos compreender o porquê de nossa situação "atual". E, nesse tempo originário e antigo, encontramos três personagens principais: Ransom Stoddard (James Stewart), o mesmo narrador do início, que conta como chegou à pequena e isolada Shinbone numa diligência, jovem advogado, ainda antes da ferrovia; Liberty Valance (Lee Marvin), pistoleiro e perigo local; e Tom Doniphon (John Wayne, em interpretação que ficou famosa por não ter ganhado o Oscar), que logo identificamos como o mocinho. Essas três personagens já foram identificadas com a tripartição das potências da alma apresentada por Platão em sua República: Liberty Valance corresponderia à potência ou capacidade irascível (em grego, epitimética) da alma, sede dos desejos ligados ao baixo-ventre, às necessidades mais básicas do ser humano, que o levam à busca da satisfação, sem mais, de seus apetites físicos mais imediatos. Liberty Valance, como seu próprio nome parece indicar, representa o desregramento das paixões, a vigência da liberdade irrefreada dos instintos. Seu exato oposto seria Ransom Stoddard, o representante da capacidade racional da alma (a potência chamada logística, por Platão), a capacidade humana de raciocinar, de ser lógico e auto-controlado, de estabelecer relações entre meios e fins e, mais, de conhecer os próprios fins. Como advogado, ele representa a lei, na sua generalidade e convencionalidade. Entre eles está Tom Doniphon, dotado de uma nobreza natural, bruta, não lapidada; Doniphon representa a potência anímica timocrática, isto é, a capacidade da coragem e o senso de dever, que, por participar mais da racionalidade, deve vigiar e controlar a falta de medida da irascibilidade; no entanto, permanece uma capacidade de agir, e não de raciocinar. Para Platão, a justiça, na alma do ser humano e na sociedade política, só pode acontecer se houver uma ordem harmoniosa entre essas três potências; mas John Ford duvida da possibilidade mesma dessa harmonia.
No filme, entre essas três personagens – entre essas três capacidades anímicas – estabelece-se uma relação tensa e de frágil equilíbrio: na maior parte do filme, parece que a impulsividade e a bruta espontaneidade da coragem natural jamais deixarão a parte racional dominar absoluta; no entanto, a mera belicosidade não consegue derrubar a racionalidade, já que esta é protegida pela força da coragem. Ora, dessa forma, o conflito que John Ford nos apresenta pode ser descrito em termos da passagem de um estado natural de auto-suficiência e individualismo nobiliário para um estado civil, uma sociedade formal e legalmente unificada, na qual não tem mais lugar o código de honra segundo o qual a violência é inevitável para se manter alguma ordem. Ora, como, então, passar da vingança à justiça? Em outras palavras, para que os EUA nasçam de fato, é preciso que o Velho Oeste morra.
O conflito entre um estado natural de prevalência das paixões individuais e um estado civil politicamente organizado é tema constante nas teorias políticas da modernidade. Pensemos, por exemplo, em John Locke, Thomas Hobbes, Benedito Espinosa e Jean-Jacques Rousseau. Em todos esses pensadores, há um forte dualismo: de um lado, o estado de natureza, de outro, o estado político. O mesmo dualismo está presente no filme.
Na seqüência central da escola, esse dualismo é claro. De um lado, Ransom Stoddard, representando o estado civil; de outro, Tom Doniphon e Liberty Valance, pelo estado de natureza. Na aula, Stoddard começa a ensinar a seus alunos os princípios da Declaração de Independência dos EUA, utilizando uma notícia de jornal que conta a organização dos grandes latifundiários, que defendem a manutenção do "território livre", isto é, sem demarcação de divisas estatais. Atrás dele, um retrato de George Washington, primeiro presidente dos EUA, como a indicar o nascimento simbólico da nação. A classe é formada por homens e mulheres, imigrantes europeus e mexicanos e um negro, afro-americano. A cada um cabe um papel social definido: à imprensa, servir de instrumento de esclarecimento, como se uma alusão a O Federalista e ao "common-sense" de Thomas Paine; as mulheres européias aprendem bem a lição e ensinam às crianças mexicanas, estudantes exemplares; ao afro-americano, cabe receber do homem branco o correto ensinamento do significado da liberdade, nas palavras escritas pelo senhor de escravos Thomas Jefferson: "Consideramos as seguintes verdades como auto-evidentes, a saber, que todos os homens são criaturas iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade".
Ora, a importância histórica da Declaração de Independência dos EUA não pode ser esquecida. Nas palavras de Fábio Konder Comparato, trata-se do "primeiro documento político que reconhece, a par da legitimidade da soberania popular, a existência de direitos inerentes a todo ser humano". Que esse reconhecimento tenha se dado de maneira exclusivamente formal, e a injustiça e a violência tenham de fato se perpetuado nos EUA contra os negros e outras "minorias", também não pode ser esquecido.
Na continuação da seqüência da escola, vemos que, ao tentar responder à pergunta do professor, Pompey (Woody Strode), empregado afro-americano de Tom Doniphon, não consegue lembrar das palavras da Declaração; em magnífica presença, após uma significativa pausa, ele diz: "Eu sabia, ‘seu’ Rance, mas esqueci completamente..."; e o professor, em vez de incitá-lo a responder, conta a ele a resposta, impedindo-o de por si mesmo aprender algo sobre o mito da igualdade estadunidense. Quando Pompey se levanta, a câmera mostra o retrato de Abraham Lincoln atrás dele, como a indicar a procedência de sua "liberdade" – a guerra dos homens brancos...
Logo em seguida, Stoddard lê o jornal e explica a seus alunos a necessidade de se organizarem coletivamente e elegerem um "representante" para que, em Washington, DC, ele defenda seus interesses contra os dos latifundiários. Vemos, atrás dele, uma frase escrita na lousa: "A educação é a base da lei e da ordem". Nesse momento, Doniphon entra na sala, interrompendo a aula; manda Pompey de volta ao trabalho (demonstrando plenamente o quanto ignora depender dele) e diz ao professor: "O que tenho a lhe dizer, Stoddard, é muito mais duro. Nosso bom editor aqui escreveu umas palavras nobres e você as leu muito bem. Mas se esse jornal for publicado as ruas de Shinbone vão se encher de sangue!". Ele traz a notícia de que Liberty Valance fora contratado pelos grandes fazendeiros para impedir a mobilização política dos pequenos colonos; a única maneira de impedi-lo é usando seus próprios métodos, ou seja, armas.
Fica claro o conflito: por alguns momentos, a câmera focaliza a bandeira dos EUA na bandeira; de um lado dela, próximo a George Washington, Ranson Stoddard; de outro, com Lincoln atrás, Tom Doniphon. Este representa claramente a parte timocrática da alma, na sua ambígua relação com a justiça: ele recusa toda luta política e coletiva, engajando-se apenas por motivos puramente pessoais; ele perpetua a servidão, se não a escravidão; ele sintomaticamente se acha muito mais independente do que de fato é; e não demonstra interesse algum na emancipação das mulheres. Pode-se dizer que se opõe frontalmente aos princípios da Declaração de Independência defendidos por Stoddard, apenas um pouco diferente de Liberty Valance, pois não é simplesmente um violento impulsivo e mercenário, embora acredite nas mesmas leis – "as leis do oeste". A moral da história não poderia ser outra: os EUA terão de escolher ou o caos, o voluntarismo e a violência do estado de natureza, ou a unidade formal e legal, a justiça racionalmente administrada do estado político. Seremos capazes de realizar tal façanha?
Muitas outras cenas do filme são exemplares dessa ansiedade. Por exemplo, a seqüência da eleição é impressionante por parecer tão verdadeira e atual: toda a festa, toda a encenação, toda a retórica mostrada por Ford parece ter sido tirada das últimas eleições presidenciais (nos EUA ou mesmo no Brasil...). Essa seqüência também nos apresenta muitas questões. O que devemos esperar de nossos representantes? São eles aquilo mesmo que dizem ser? São eles capazes de nos unir em torno de um projeto comum?
Será nossa sociedade capaz de formar, de maneira bem sucedida, as almas de seus cidadãos para que cooperem entre si e não se matem?
Conseguiremos superar as desigualdades naturais e originárias e construir uma nação além do mito?
Essa seqüência pode ser vista aqui: http://www.youtube.com/watch?v=kvVMx8BInM8
John Ford não era nenhum revolucionário, muito ao contrário, era bastante conservador.
Este seu filme, no entanto, não é uma obra de louvor ao conservadorismo estadunidense (conservadores como ele, nos nossos dias atuais e politicamente anódinos, seriam muito incômodos...). Após Tom Doniphon deixar a sala de aula, Ransom Stoddard apaga as belas palavras sobre educação escritas na lousa e parte em busca de uma arma para enfrentar Liberty Valance. O duelo entre os dois se dá, conforme um clichê máximo do western, no meio da rua, como a indicar não se tratar de um confronto particular, mas de um problema da vida pública. Como também em muitos outros westerns, não temos apenas uma narrativa mítica sobre a fundação de uma sociedade civil legalizada e unificada, mas a expressão de uma "grande ansiedade", como diz Robert Pippin, acerca da própria constituição dessa sociedade civil e de suas capacidades para perpetuar a justiça e abandonar definitivamente o estado de natureza.
Ao fim, terminado o flashback, o observador ouve de outro jornalista a frase que tornou o filme famoso: "Aqui é o Oeste, Senhor. Quando a lenda torna-se fato, publique-se a lenda". O agora senador Ransom Stoddard e sua mulher Hallie (Vera Miles, em papel que mereceria todo um artigo) retornam a Washington, DC, carregando a fama de ele ter sido o responsável pela morte do estado de violência, de ele ter possibilitado decisivamente toda a nova civilização – "outrora, era um deserto, hoje, um jardim". Mas também trazem consigo uma amarga expressão de decepção.
Da maneira como o filme mostra, as condições necessárias para o estabelecimento da lei e da ordenação política são moralmente muito discutíveis. Conforme o mito, a nação Estados Unidos da América só pode nascer e progredir depois de ter eliminado a violência e o caos do estado de natureza. Segundo o conservador não-platônico John Ford, ela também eliminou, com o mesmo ato, a nobreza e a verdade do caráter. Está fundada, assim, sobre uma mentira.
Cordiais saudações e votos de um feliz 2011.
* **
BIBLIOGRAFIA: Há vários escritos sobre John Ford e especialmente sobre O homem que matou o facínora. O leitor que se interessar pode ler com proveito o artigo "Spiritedness, Reason, and the Founding of Law and Order: John Ford’s The Man Who Shot Liberty Valance", de David W. Livingstone, disponível em http://web.viu.ca/livingstd/documents/Livingstone,%20spiritedness%20reason%20and%20the%20founding%20of%20law%20and%20order%20published%20version.pdf.
A citação de Robert Pippin foi tirada de seu livro Hollywood Westerns and American Myth: The importance of Howard Hawks and John Ford for Political Philosophy (Yale University Press, 2010). E a de Fábio Konder Comparato de seu A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos (Saraiva, 5ª ed., 2007).
Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia na PUC-SP e acredita nas palavras do poeta William Cullen Bryant: "Truth crushed to earth shall rise again".
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