A mulher faz o artista, o cinema agradece
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- Cassiano Terra Rodrigues
- 10/03/2012
À Dri.
“Quem dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera
Ser o verão no apogeu da primavera
E só por ela ser”.
Super-Homem, A Canção, de Gilberto Gil.
Por que fazer um filme sobre cinema mudo? Por que, agora, mais de 100 anos de cinema, voltar ao começo do cinema para falar do cinema? Essas podem ser as duas questões mais óbvias a alguém que se interesse pelo mais recente ganhador do Oscar de melhor filme, O Artista (The Artist, dir. Michel Hazanavicius, França/EUA, 2011). Este escritor que assina este pequeno ensaio não sabe se tem respostas satisfatórias para as perguntas. O que tentarei aqui é mais pensar o filme de uma perspectiva feminina do que tentar respondê-las.
Desde o início, fique claro: no filme, é a mulher quem dá ao herói a chave para que se reinvente. O herói é George Valentin (Jean Dujardin, também ganhador do Oscar de melhor ator principal por este papel), astro do cinema mudo, típico herói masculino daqueles filmes d’antanho: mocinho, um tanto cínico, vence sempre os bandidos e no fim fica com a mocinha. Não por acaso, chamasse Rodolfo...
Logo de início, o filme o mostra a olhar por trás da grande tela para suas imagens projetadas – um espectador às avessas, que olha para a imagem de uma perspectiva vedada aos outros espectadores. E diferentemente dos outros, olha para as próprias imagens. Ao término do filme, como de costume antigamente, ele vai à frente do palco (ainda antes da invenção da rampa que ligava, nos antigos teatros transformados em salas de exibição cinematográfica, a platéia à tela; lembremos de Serge Daney) e concede um mimo ao público: dança, sapateia, faz gracejos. E, para irritação da atriz do filme, chama seu cão, companheiro inseparável de todos os filmes, antes de chamá-la a receber os aplausos.
Valentin tem uma imensa mansão, um imenso quadro seu, grande astro do cinema, pendurado na parede, tem dinheiro, tem fama, um casamento em crise e a certeza de que é maior do que realmente é. Ao se defrontar com “o futuro” representado pelo som no cinema, ele arrogantemente desdenha a novidade: “As pessoas vão ao cinema para me ver, cinema falado é uma novidade vulgar”. Nesse ponto, o filme nada traz de novo: com a chegada do cinema falado, os velhos astros do cinema mudo perderam lugar. Basta lembrarmos Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, EUA, 1950), de Billy Wilder. Mas é nesse momento que o filme deixa de ser óbvio.
O ocaso de Valentin é mostrado simultaneamente à ascensão de Peppy Miller (Bérénice Bejo). Jovem fã de Valentin, eles se trombam, literalmente, já no início do filme. Nessa primeira seqüência do encontro, ela já o tira do lugar, dá-lhe um empurrão, desequilibra-o, como a dar a tônica do que será a relação de ambos durante o restante do filme. Esse encontro rende uma manchete de jornal e o início de uma carreira a ela. Logo depois, eles novamente se encontram por acaso, no estúdio, ela, jovem figurante, ele, astro consagrado. Ele a defende, e ajuda-a a manter seu trabalho e começar a carreira. Posteriormente, ele a lembrará disso, quando já estiver em decadência e ela em franca ascensão cinematográfica.
A maneira como o filme apresenta a ascensão de uma e a queda do outro é que nos parece feminina: enquanto ele insiste em se identificar com a imagem de herói das suas personagens nos filmes, o tempo todo olhando para si mesmo ao olhar para o quadro, para os espelhos ou para as telas, ela, em momento algum do filme, precisa de uma imagem para saber de si. Isso marca uma distância entre quem ela é e quais as personagens que representa nas telas. Ao contrário de Valentin, Peppy Miller sabe distanciar-se da imagem que o espetáculo cria para ela, e não teme fazer uso de seus atributos femininos para se posicionar e atingir seus objetivos, sem, no entanto, fazer disso uma bandeira de guerra.
Essa caracterização das personagens não é fortuita. O filme todo trabalha com os clichês do cinema mudo, como se a brincar com a semântica das imagens. As personagens seguem os clichês exatamente quando e como a câmera os mostra: o cão sempre finge de morto ao gesto que imita o revólver, tal como treinado para fazer nas filmagens, Valentin sempre age como o herói que interpreta nos filmes – e isso é o que nos permite dizer que ele não consegue se ver fora de uma imagem que lhe é imposta pelo espetáculo. Ele, ao contrário dela, não é senhor de sua imagem – se o espetáculo, como dizia Guy Debord, é uma relação social mediada por imagens, no caso de Valentin é mais: sua consciência de si é mediada pelas imagens, ele não consegue escapar das imagens para se auto-definir –, assim, não consegue se apropriar do capital simbólico, não consegue fazê-lo render em seu favor e transformá-lo em capital real. Dos vários filmes dentro do filme, aquele que Valentin produz e dirige aparece como signo de sua bancarrota inevitável. Na seqüência final, ele afundando em areia movediça em frente a seu fiel cão, diz à mocinha: “Querida, desculpe-me, nunca te amei”. Sem ter consciência de seu valor como signo, ele se deixa engolir pelo buraco sem fundo da circulação das imagens, o giro em falso da indústria do entretenimento espetacular. Maior clichê, impossível.
A quebra dos clichês é efetuada por Peppy Miller: ela é quem propõe a Valentin uma saída do fosso em que se meteu. Sem querer aqui estragar o final do filme, basta dizer que é ela quem lhe mostra como usar melhor sua própria imagem – algo que ela faz naturalmente. Ao resgatá-lo do ostracismo, ela lhe propõe que use seus talentos de outra maneira: que dance e sapateie, mas não como antes; que fale, mas agora nos filmes; e que deixe a mulher falar, não após, não sob, mas simultaneamente e ao seu lado. É uma ótima sugestão do filme que a mocinha d’antanho seja muda e sirva sempre de esteio ao herói masculino tradicional; a mocinha “do futuro”, ao contrário, aparece ligada ao cinema mudo, ela fala, ela está ao lado do homem, é seu duplo e seu igual, não é mera imagem muda no espelho ou na tela. Com ela, nasce o novo cinema dos musicais, no qual o corpo ganha preeminência, a dança como parceria e não a ação racional do macho-herói.
Em O Artista, a mulher é o motor da história, e mais: todas as renovações para melhor são devidas a Peppy Miller, sem que ela fique marcada pelo olhar estereotipado masculino. Não podemos deixar de observar: há sempre uma tensão sexual entre Valentin e Peppy Miller, mas o filme em momento algum cede ao clichê de um explícito caso amoroso entre os dois. Muito mais razoável parece ser a sugestão de uma amizade sincera e apimentada. Talvez essa recusa do clichê óbvio nos permita uma interpretação mais metaforizada do uso que o filme faz dos outros clichês cinematográficos? De herói construído pelas imagens do cinema mudo, George Valentin se torna, por intervenção da Peppy Miller, um super-homem da canção de Gilberto Gil.
Fazer novos usos de antigos e quase despercebidos meios de expressão. A arte pode não salvar o mundo, mas o artista pode tomar a si papéis e funções antes inconcebíveis e intervir para mudar um contexto, um papel, um lugar ou um olhar, um gênero, a si mesmo e aos outros. Renovando-se a si mesmo, renova o mundo ao seu redor.
Cordiais saudações.
* * *
UM GOSTINHO: O filme ainda está em cartaz em diversos cinemas, como bem cabe a um ganhador de Oscar. Um gostinho, a quem ainda não viu, pode ser degustado pelos trailers originais: http://www.imdb.com/title/tt1655442/ .
Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia na PUC-SP e já quis ser super-homem na vida. Hoje tenta a difícil tarefa de não ser um clichê.
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Comentários
Perceber que os clichês que compõem o filme estão ali para serem (re)pensados - até porque o que salta aos olhos, no final, é justamente a construção do novo - é, penso eu, essencial para analisá-lo em sua justa medida: como uma obra primorosa.
Teu comentário além de me instigar a assistir ao filme fez-me lembrar o sensacional filme: "Singin' in the Rain", de 1952, dirigido por Stanley Donen e Gene Kelly, em que a temática do mudo ao falado entram em cena! Parabéns pelo brilhante texto!
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