A quem houve a voz do homem diante da lei?
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- Cassiano Terra Rodrigues
- 03/01/2013
“Nousavondésormais à jugersanscritère.”
Jean-François Lyotard
Por que falar de clássicos em início de ano, quando todos parecem se preocupar mais com o futuro do que com o passado? É sempre difícil falar sobre clássicos consagrados. Por um lado, é impossível eliminar o risco de chover no molhado, repetindo mal o que já foi bem enunciado. Por outro, na tentativa de oferecer uma interpretação original, é enorme o risco de cometer erros grosseiros e ainda cair em medíocre arrogância. Evitar este segundo equívoco sempre é possível e quase sempre uma obrigação, mas ninguém está isento do primeiro risco. E, no entanto, assim é com os clássicos: quando se pensa que tudo já foi dito, sempre há o que dizer – na verdade, os clássicos sempre têm o que nos dizer.
O filme de Orson Welles, O Processo (Le Procés, França-Alemanha Ocidental-Itália, 1962, direção e roteiro de Welles), livremente inspirado em Franz Kafka, é um desses clássicos. A inspiração de Welles é identificável em ao menos duas obras de Kafka, os romances O Castelo e O Processo. “Inspiração” e não simples adaptação, o filme aglutina elementos de Kafka transformados pelas lentes e pela voz (literalmente) de Welles, que atua, também, como Albert Hastler, o advogado.
O filme começa com Welles contando a história “Diante da lei”, que Kafka escreveu como uma “parábola” autônoma e, depois, inseriu-a no final de seu O Processo. No filme, porém, temos a parábola como um prólogo, acompanhando desenhos (a impressão de movimento é dada pela técnica da tela de alfinetes, inventada por Alexandre Alexeieff e Claire Parker), simultaneamente aos quais ouvimos Welles ler o texto de Kafka. Após a história contada, a ação se desenvolve. Welles transpõe a ação de O Processo em parte para um castelo. O protagonista Joseph K. (Anthony Perkins) é acordado certo dia pela polícia, em seu próprio quarto. Ele é notificado de uma acusação, mas ninguém lhe diz exatamente qual. Para descobrir de que está sendo acusado e defender sua inocência, ele tenta enxergar por trás da fachada do sistema judicial, representado no filme como um castelo imenso. No entanto, o advogado que deveria defendê-lo parece pouco efetivo. Ele tenta ler o livro da lei, e esse livro está em branco. Ele tenta sempre entrar no castelo, mas só consegue ficar em seus corredores laterais. Levado à suprema corte, faz um vibrante discurso em que acusa todos os juízes de participarem de um complô contra as pessoas comuns, presas ao acaso e sem provas. Encontra-se com personagens obscuros, mulheres usadas como objetos de troca, acusados ambíguos que parecem cúmplices do sistema judiciário, enfim, depara-se com uma justiça incompreensível. Ao fim, foge para uma catedral onde um padre lhe conta que ele foi condenado à morte, informação esta que é confirmada pelo advogado. Preso novamente, Joseph K. é levado por seus algozes a um poço, recebe uma faca, mas se recusa a cometer suicídio. Enquanto ele grita “Vocês é que vão ter que me matar!”, seus algozes jogam dinamite sobre ele. Enquanto ele ri dos algozes que fogem, vemos uma explosão e a fumaça tomar conta da tela. Volta a voz de Welles: “Este filme, O processo, foi baseado no romance de Franz Kafka. Os atores em ordem de aparição foram Anthony Perkins (etc.). Eu fiz o advogado, escrevi e dirigi este filme. Meu nome é Orson Welles”. Vemos um cenário, sob uma luz forte que nos impede de ver nitidamente, como se fosse uma câmera, como se pela lente da câmera víssemos algum enquadramento. Isso se transforma no desenho da porta da lei, já visto no início do filme. A tela escurece em fade out, fim da música.
Por si só, a narrativa inicial já anuncia o caráter ficcional do filme de acordo com uma teoria conhecida comumente (e mal) por efeito de “estranhamento”: iniciar o filme com uma sucessão de desenhos e uma narração sobreposta (em voice over ou “voz em off”, a critério) implica já desnaturalizar a história que os espectadores ou observadores (novamente, a critério) presenciarão – na verdade, a desnaturalização incide fortemente sobre a maneira como veremos o filme. O término, também com a fala de Welles, reforça o estranhamento, distanciando-nos do efeito de real (os teóricos de cinema diriam: “uma quebra de diegese”). A voz de Welles enquadra o filme; início e fim do filme são delimitados por uma narração. Assim como na parábola de Kafka, início e fim da narrativa coincidem com início e fim da história do homem, fim do próprio Joseph K. (somos levados a crer que ele morre na explosão).
O universo de Kafka está bem representado por Welles. A parábola do começo não traz um ensinamento moral edificante; ao contrário, como já indicara Walter Benjamin, as parábolas de Kafka não nos reconfortam, mas nos aturdem – em vez de ensinamentos morais, temos uma narrativa que transmite a sensação de esvaziamento de toda moral. Assim também o filme conta a história de um indivíduo preso em um ambiente judiciário claustrofóbico, apesar de imenso. Os ambientes se sucedem e aos poucos diminuem, aumentando para o observador a sensação de claustrofobia e angústia de Joseph K. Essa sensação só termina no fim, quando o próprio Joseph K. morre e novamente nos é mostrado um ambiente aberto. O enquadramento das imagens faz-nos ver claramente a pequenez e a insignificância de Joseph K. frente à imponência da lei – qual o tamanho de Joseph K. e sua prima Irmie (Naydra Shore) diante das estátuas que adornam a escadaria do Castelo da Lei? Quem é o cidadão comum diante da lei?
A lei é, por sua natureza, geral; as ações e as pessoas, para as quais ela deve servir de norma, são particulares. Como é possível a relação entre o geral e o particular? O texto de Kafka coloca em questão a lei do texto. “Diante da lei” é seu título, Vordem Gesetz, diante, isto é, antes da lei, anteriormente à lei. A situação do camponês na parábola de Kafka indica que ele está ante a lei, no sentido de estar fora da lei, uma vez que, apesar da porta aberta, ele não entra no âmbito da lei. Esta também é a primeira frase do texto: “Vordem Gesetz”, isto é, antes-fora da narrativa alguma coisa já se põe, assim como há algo que existe antes-fora da lei. Pessoas e ações existem antes-fora da lei, existe simplesmente todo tipo de diferenças e postergações anteriormente à lei, fora de seu âmbito. Assim, no filme-texto de Welles-Kafka, para que a lei-história se faça, para que as relações e acontecimentos tenham lógica, é preciso antes narrar – um prólogo que marca o início de fora, indicando também o final.
É fundamental que assim seja: só é possível decidir alguma coisa se o sentido for construído, e isso só se faz por meio de uma narrativa. Mas nem todos podem contar histórias – se todos tivessem o direito de narrar, nada poderia ser decidido, pois todos os pontos de vista seriam válidos. Uma narrativa, para ser válida, tem de ser feita por uma autoridade competente. Assim como a literatura é instituída por direito, isto é, quem julga e decide o que é literatura são os críticos, os professores de literatura, os acadêmicos, os escritores e certo público-leitor etc., o direito é instituído por narrativas. Nem todo texto é literário, não por falta de qualidades intrínsecas, mas por falta de uma intenção (seja a intenção do escritor ou mesmo a do leitor). No âmbito do direito, uma vez acontecido o fato, que mais são os procedimentos de processo, de defesa e acusação no tribunal, a não ser narrativas com a intenção de explicar os fatos? Além disso, nem todos podem ter – não é lícito que tenham – competência para julgar qual a melhor explicação, qual a melhor narrativa. É fundamental ao direito que seja assim.
Em belíssimo texto de homenagem a Jean-François Lyotard, Jacques Derrida aproxima direito e literatura nos termos expostos acima, mostrando como o âmbito da ficção, supostamente o da literatura, e o da verdade, supostamente o do direito, se entrelaçam e se confundem de muitas maneiras. Intitulado “Prejugés – Devantlaloi”, o texto trabalha a dificuldade de se definir uma fronteira precisa entre literatura e direito, ficção e verdade. “Prejugés”, isto é, “preconceitos” em francês, ditos “pré-julgados” – tanto mais indefinível o que é ou não ficção, tanto mais necessário perguntar: quem julga? Com qual direito julga? Por quais leis julga? Essa estrutura de diferenças cria e ao mesmo tempo relega para depois a existência da lei, esvaziando espaços e distâncias, tornando-os impenetráveis.
O homem comum diante da lei não consegue acesso à lei. Sempre há uma mediação que nos escapa – no filme, basta lembrar das atitudes do advogado! Welles-Kafka nos apresentam a lei como um lugar: a entrada na lei é proibida, mas não diretamente – a lei é um lugar aberto, mas com portas e guardiões –, uma promessa que, como toda promessa, é relegada ao futuro ao mesmo tempo que negada no presente – o acusado fica “de fora” da lei. Os guardiões também estão fora da lei, estão de costas para as portas da lei – e nós, de que lado estamos? Ante a lei, fora da lei, nunca temos acesso direto à lei, sempre precisamos de uma história para entrar na lei.
Estamos condenados à arbitrariedade, à convencionalidade que caracteriza justamente a lei. A lei, Derrida mostra, está baseada numa condição de impossibilidade, num paradoxo: cada pessoa é singular, mas sempre deseja-necessita entrar na universalidade – trata-se de uma situação objetiva e intransponível, pois, para assumir uma identidade, é necessário estar dentro de alguma categoria universal: cidadão; estudante; motorista; proprietário; cristão; ateu; trabalhador; etc. etc. Na leitura de Derrida, o imperativo “Que haja lei!” é uma mentira que fundamenta a existência da lei – no entanto, para que haja lei, é preciso existir alguém a ser julgado, isto é, antes-fora da lei.
É um fato que julgamos, mesmo que sem critérios, como diz Lyotard. Julgamos sempre, como também sempre somos julgados sem conhecimento da lei. Por quem? Por que razões? E fundamentalmente: quem julga, julga de que lugar? Na narrativa de Welles-Kafka, o camponês está diante da lei e decide ali ficar, não tenta entrar amedrontado pelas palavras do guarda, isto é, ele decide não decidir e continuar na promessa de um dia chegar à revelação da lei – dessa forma, ele se exime da responsabilidade de julgar e permanece fiel à lei! “Decido não decidir e não julgo! Estou diante, suspenso, fiel à lei porque deixo que outros decidam por mim – tenho por obrigação respeitar a lei não entrando nela, porque a lei é proibição –, estou diante da lei, quer dizer, estou sob a lei”. Mas eis o paradoxo: se estou diante da lei, também estou antes da proibição, o que significa que só eu posso agir para chegar à lei. Por que então não o faço? No filme, Joseph K. vive essa situação agoniante: sempre que tenta se aproximar da lei, a lei lhe escapa. Ele não tem a autoridade para fazer com que o enunciado da lei se concretize em ato e precisa do advogado – o castelo da lei é imenso, mas só ficamos em redor dele, nunca chegamos ao seu centro.
Ao enfatizar a vacuidade e a impenetrabilidade do castelo da lei, o filme de Welles reafirma que o lugar da lei é um não-lugar: o julgamento, o processo, a situação jurídica que não acontece e é sempre prometida para depois, postergada para um momento que não existe – para que esse momento exista, no entanto, é necessário comparecer diante da lei, isto é, ser citado, receber um título, ser julgado de antemão, ser a priori categorizado: a citação num processo garante a identidade, delimita o que pode e o que não pode ser julgado, da mesma forma como o título do texto de Kafka define os limites da própria obra, da mesma forma como a história narrada por Welles duas vezes, ao começo e ao término do filme, como se um prólogo e um epílogo, delimitam a ação a um espaço lógico, não um espaço real, efetivo, mas um espaço de possibilidades pré-concebidas – tudo se passa como se. O mesmo como se Derrida identifica no fundamento da lei moral: “Age como se teus atos pudessem ser universalmente válidos”.
Lei e literatura partilham, ambas, das mesmas condições de possibilidade. Igualmente instauram mundos possíveis. Para ter sua autoridade categórica garantida, a lei deve ser a-histórica, não pode possuir gênese identificável, ela tem de ser suspensa e não pode ter os pés em um lugar firme e concreto. Em outras palavras, a lei deve pairar suspensa sobre o mundo das pessoas e ações singulares como mera possibilidade – e na história, Joseph K. tenta justamente quebrar essa possibilidade e entrar na lei! A história de suas tentativas será a história daquilo que escapa à narração e que permanece inacessível – a narrativa de Kafka move-se em um nível de generalidade abstrata altíssima: “diante da lei” – qual lei?
Enfim, todas as leis – a lei se dá em se recusando, sem dizer quem é nem de onde vem –, escrever a história da lei significa mostrar que ela pode ser mudada, que ela surgiu de contingências humanas para responder a necessidades circunstanciadas, que não há essência absoluta da lei, que as experiências históricas da humanidade se sucedem continuamente e impõem mudanças às normas e convenções. No entanto, o silêncio e a descontinuidade, a escuridão dos corredores e a imensidão dos edifícios são constitutivos do fenômeno da lei, já que, para obrigar legitimamente, a lei deve apresentar-se como universalidade absoluta. Isso nos paralisa diante da lei e exige uma intermediação para que possamos entrar na lei – estamos sempre diante-fora da lei, até que a intermediação seja feita por alguém competente e legitimado por uma autoridade que não nos pertence.
Se todas as interpretações da lei fossem legítimas, também o seriam todas as leituras, e isso tornaria o texto da lei absolutamente inacessível – a lei é, na verdade, um interdito que é preciso superar, um interdito que só pode ser superado dizendo-o. Daí a necessidade de narrar: reconstituir os liames e enlaces lógicos, de certa maneira, é garantir o acesso à lei ao mesmo tempo em que reforça o distanciamento intransponível entre a generalidade da lei e a singularidade de todos nós. O filme de Orson Welles exprime magistralmente essa situação, ao delimitar a ação oralmente pela narrativa e pelo reconhecimento de sua autoria: “Eu, Orson Welles, fiz um filme inspirado pelo texto de Franz Kafka. Eu, Orson Welles, me dou a autoridade para contar essa história de outra maneira”.
Uma diferença entre Welles e Kafka se mostra assim. Na anti-parábola de Kafka, o fim da narrativa coincide com o fim do homem comum, derrotado pelo tempo diante de uma porta que lhe estava reservada. Um final pessimista, nenhum horizonte se abre, ao contrário, a porta é fechada. Em 1962, em tempos sombrios de Guerra Fria e ditaduras disfarçadas em democracias consumistas, muitos muros fechados tentavam sufocar as ações políticas das pessoas comuns. No filme de Welles, após a explosão final, a narrativa ainda continua: “Eu, Orson Welles, escrevi e dirigi este filme”. A força da pessoa comum diante de um poder universal e abstrato se mantém na sua capacidade de fazer ouvir sua voz: diante do poder, fora do poder, se assim eu souber contar-fazer minha própria história. A milenar tradição de contadores de histórias árabes, hoje, no Egito, deve estar cheia de motivos para novas histórias. Que nós, hoje, no Brasil, também saibamos contar-fazer os nossos.
Cordiais saudações e um feliz 2013 cheio de histórias a todos.
* * *
FILMO-BIBLIOGRAFIA: O texto de Jacques Derrida, “Prejugés – Devantlaloi”, encontra-se no volume La Faculté de Juger. Jacques Derrida, Vincent Descombes, Garbis Kortian, Philippe Lacoue-Labarthe, Jean-François Lyotard, Jean-Luc Nancy. Paris: Minuit, 1985. Não é de nosso conhecimento que tenha sido traduzido para a língua portuguesa. Já o filme O processo está em domínio público e pode ser visto facilmente na rede mundial de computadores. Eis um enlace, com legendas: https://www.youtube.com/watch?v=BrqHazwwBpY
Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia na PUC-SP e grande admirador de contadores de causos e anedotas de salão, os quais, assim como os galos, não fazem sozinhos uma manhã, já dizia o poeta.
Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
Comentários
"Dilma veta projeto que concedia autonomia financeira às Defensorias PúblicasDe acordo com ela, “ainda que meritória a intenção do projeto de valorizar as defensorias públicas, a restrição do limite de gasto do Poder Executivo Estadual ensejaria sérias dificuldades para as finanças subnacionais”.
O presidente da nacional da OAB, Ophir Cavalcante, lamentou o veto. Segundo ele, “enquanto a Defensoria Pública estiver submetida aos humores do chefe do Executivo, não terá o papel de grandeza que a sociedade dela espera”. Ophir afirmou que o veto indica que ainda não existe, por parte do Estado brasileiro, compromisso efetivo com a garantia ao princípio constitucional do acesso à Justiça, representado pelo dever do Estado de oferecer aos cidadãos carentes um advogado para que sua cidadania possa ser exercida em plenitude.
Que tal uma exibição forçada do filme para o Senado Federal e alto clero do Executivo? Seria um bom e ameno programa para início de 2013.
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