Subgente
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- Inês do Amaral Büschel
- 04/12/2007
Tenho um amigo, o Visconti, que sempre insiste em nos dizer que, quando consideramos o outro como integrante de uma classe de “subgente”, para esse não haverá direitos. Em nossa terra é costume de algumas cabeças escolarizadas repetir a frase “direitos humanos são só para os humanos direitos”. Há no ar – tanto no primeiro como no terceiro mundo – a cultura de que quem merece ser bem tratado são somente aqueles que obedecem. E, quando há maus tratos para os desobedientes, a maioria da sociedade repete o bordão: bem feito! Fez por merecer! E dormem tranqüilos como se merecessem o sono dos justos.
Aprendemos com Guimarães Rosa que na terra onde a lei não é vigente o que rola é a regra da vingança. Simples assim.
Maltratar pessoas é um costume bem antigo da humanidade. Há religiões que combatem esse comportamento humano, mas há outras que o reforçam. Há também algumas que até mesmo justificam o castigo sofrido por alguém, sugerindo que esses estarão expiando os pecados cometidos em vidas passadas. Algumas outras pregam que aqueles que sofrem injustiças ou maus tratos merecem compaixão, mas temos de nos conformar com isso, pois essa é a condição para o aprimoramento daquele espírito. E assim tem caminhado a humanidade a passos lentos.
Para sermos um povo civilizado – educado, tirado do estado primitivo – teremos de nos aprimorar muito no convívio com os diferentes. As ciências vêm nos demonstrando há anos que cada um de nós é um ser único, somos indivíduos humanos. Para a biologia, por exemplo, não há uma pessoa que seja constituída exatamente igual à outra. Somos semelhantes apenas. Daí a necessidade de elaborarmos a política da boa vizinhança, que ao fim e ao cabo significa tratarmos bem a todos como gostaríamos de ser tratados.
O Direito e a Justiça visam estabelecer o mínimo ético dentro de uma determinada sociedade. Mas para isso será preciso que todas as pessoas sejam educadas, civilizadas, e aceitem a existência de seres não só diferentes, mas também desobedientes. Para estes existe o devido julgamento legal, com regras previamente estabelecidas e conhecidas por todos.
Todavia, de que vale o Direito se no Brasil até mesmo as pessoas com curso superior completo, com pós-graduação, exercendo cargos públicos devidamente providos por intermédio de concurso ou eleição, permanecem em estado de pré-civilizados e continuam acreditando que os desobedientes não merecem respeito e não têm dignidade? Negam humanidade aos diferentes, aos contraventores.
Pois é isso que temos visto diariamente noticiado pelos meios de comunicação social: muitas autoridades públicas e privadas desprezando os direitos humanos, principalmente da população carente, sejam obedientes ou desobedientes. Basta ser suspeito de contravenção para perdermos o direito a ser tratado com dignidade. Se formos réus confessos e condenados por sentença judicial então nem se fale! Seremos considerados subgente e nada mereceremos.
Se, dentro da cadeia pública, os detentos se maltratam ou se matam, que importância terá isso? Algumas autoridades constituídas – aqui, justiça seja feita, tanto no primeiro como no terceiro mundo – acham que não são culpadas de nada. Julgam-se cumpridoras de seus deveres, portanto obedientes, e ainda por cima pagam os impostos! Isto já basta.
O Direito e a Justiça somente serão realizados no Brasil quando os juízes de direito, promotores de justiça, delegados de polícia, funcionários públicos, empresários, parlamentares, governadores e prefeitos acreditarem que, independente da religião que escolheram para si, estarão sempre obrigados a respeitar cada pessoa humana com a máxima dignidade, seja ela obediente ou desobediente. Deverão, ainda, olhar para o contraventor e enxergar nele um ser semelhante a si próprio, ou seja, que tem direitos e no mínimo necessita da atenção de alguém que o atenda e que, se não comer alimentos bem cuidados e beber água limpa todos os dias, irá adoecer e morrer. E que isso é grave.
Os maus tratos abomináveis, torturantes, recebidos pela jovem paraense presa na cadeia pública – pessoa sofrida e desobediente –, repetem-se neste momento com outras inúmeras pessoas humanas, mulheres e homens pelo Brasil afora, aos olhos compassivos de todos nós. A consciência moral de muitas autoridades públicas e privadas – respeitadas as honrosas exceções – são plásticas e moldáveis. Para uns, tudo será permitido; para outros, tudo será negado. Aqui entre nós ainda vige a seguinte regra: aos amigos tudo e aos inimigos a lei.
Infelizmente, grande parte da sociedade brasileira ainda crê que só batendo no desobediente é que o faremos aprender. Repetindo Guimarães Rosa, a vingança é nossa regra. Ainda somos uma sociedade pouco civilizada e que tem medo de política, que é justamente a ciência que poderá nos transformar em cidadãos plenos. Nosso índice de desenvolvimento humano ainda precisa subir muito para que possamos ser encarados com respeito por outros povos.
Inês do Amaral Büschel, Promotora de Justiça de São Paulo, aposentada, Integrante do Movimento do Ministério Público Democrático. Web Site: www.mpd.org.br
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Comentários
Oxalá possamos todos compreender com profundidade tais idéias, e sobretudo levá-las à prática!
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