Correio da Cidadania

Crime de bagatela?

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Vem ganhando repercussão na imprensa, em razão de decisões judiciais recentes, a questão relativa ao reconhecimento do denominado "princípio da insignificância", ou "da bagatela".

 

Registre-se desde logo que nossa legislação penal não concebe expressamente a aplicação do mencionado princípio, que, todavia, vem sendo acolhido pelos nossos Tribunais pátrios como verdadeira causa supralegal de exclusão de tipicidade, sob o argumento de que o direito penal não deve ocupar-se com ninharias, devendo ser excluído de seu âmbito de incidência danos de pouca importância, dada a natureza fragmentária desse ramo do direito.

 

Para melhor compreensão de todos quantos não sejam da área jurídica, em crimes patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça, como, por exemplo, o furto, se o valor da coisa subtraída for considerado ínfimo, o réu poderá ser absolvido, entendendo-se que sua conduta não possui carga de ofensividade jurídica.

 

Pois bem, o primeiro problema que se põe é como estabelecer esse valor a ser considerado ínfimo ou desprezível, a ponto de justificar a omissão do Estado, enquanto regulador das relações de convivência civilizadas e lícitas, no que diz respeito à persecução penal.

 

Seria o equivalente a um, ou a meio salário mínimo? Ou, ainda, um percentual de 10%, 20% ou 30% sobre o salário vigente?

 

Pensamos que as respostas a tais questões só podem ser negativas. Isto porque o critério do desvalor, servindo o valor do prejuízo para aferição do cabimento ou não do princípio da insignificância, não pode ser extraído por meio de "tabelas de valores".

 

Com efeito, o que releva é levar-se em conta a situação da vítima como destinatária de proteção da norma penal, nada importando seu poderio econômico, não se perdendo de vista que no caso do furto o objeto jurídico penalmente tutelado é a posse, a propriedade e a detenção de um bem móvel de valor econômico (objeto material).

 

Ainda que superada tal questão, como justificar a inação estatal perante o cidadão vítima de um delito patrimonial, sob o argumento de que o que ele tinha era tão pouco que desnecessária se mostra a persecução penal – forma legítima de resolução da agressão sofrida – para reprovação da ação ilícita perpetrada pelo agressor?

 

Afinal, para a vítima de uma agressão, notadamente no âmbito penal, a lesão é sempre significativa.

 

Acrescente-se, por fim, que a legislação penal vigente contempla a existência de institutos como, por exemplo, o furto privilegiado (a permitir sensível redução da pena ou imposição de mera multa), que permite a devida responsabilização do indivíduo infrator da legislação penal, sem qualquer ofensa ao princípio da proporcionalidade, observado o equilíbrio entre o crime cometido e a sanção cominada, alcançando fatos de menor gravidade ou repercussão social, ou, ainda, a substituição de pena corporal por restritivas de direitos ou simples multa, preservando-se, pois, a necessária correlação entre o direito de propriedade, constitucionalmente assegurado, assim como da segurança de proteção jurídica às vítimas, e a justiça na aplicação da pena, sem se olvidar do incontroverso desvalor ético na conduta do autor da subtração.

 

Afinal, se a vítima de um furto de bens de pequeno valor – que não se confunde com valor irrisório ou ninharia, note-se bem (subtração de uma laranja, de um palito de fósforo) – não puder se valer da Justiça Penal para fazer prevalecer seus direitos, que opção lhe restará? A busca pela justiça privada? Aí sim estaremos retrocedendo, e muito, no regular, legal e devido processo de apuração dos crimes e de aplicação das penas, o que não se pode aceitar.

 

Como se vê, o manejo inadequado deste ou qualquer outro princípio, sem utilização do norte fincado em outro relevante princípio, qual seja o da razoabilidade, acaba por emprestar indiscutível e indesejável viés elitista ao "decisum", em contrariedade aos cânones legais e constitucionais vigentes, acabando por incentivar a odiosa justiça privada, o que não se quer, nem se deseja, cumpre afirmar uma vez mais.

 

Tereza Cristina M. Katurchi Exner é Procuradora de Justiça e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD.

 

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Comentários   

0 #3 mecanismo de controle socialValter 04-03-2011 05:14
Acho que a autora do artigo desconsidera o viés de classe que o crime de furto assume no país. Na leitura de cerca de 50 processos tomados de forma aleatória em varas criminais da cidade de Curitiba, não foi encontrado nenhum cujo réu não estivesse localizado na pobreza ou abaixo de sua linha. Esses dados talvez enriquecessem a reflexão sobre o tema.
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0 #2 Crimes famélicosHelder Xavier Simões 22-02-2011 22:19
Sugiro pautar os chamados crimes famélicos, entre outras contextualizações cabíveis,- com as ferramentas das novas tecnologias -, em redes socias.Esse conceito jurídico foi citado por advogado militante sindical, mas não aprofundamos,à época, quando os espaços midiáticos eram mais escassos.
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0 #1 BagatelaDiego 22-02-2011 16:09
\"Segundo o Código Civil da Espanha, qualquer roubo que não supere os 400 euros (aproximadamente R$ 1 mil) está livre de punição judicial.

O ladrão é levado para a delegacia, fichado e liberado em seguida.\"
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