O ano novo do sul
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- Elaine Tavares
- 22/06/2020
No último domingo, dia 21 de junho, celebrou-se o solstício de inverno no hemisfério sul. É quando os povos originários comemoram o ano novo em toda a franja latino-americana. Dia de reverenciar o Sol, que era e ainda é considerado o deus maior. O Sol. Tata Inti. Estamos em 5.528 pelas contas do povo dos Andes.
A região andina é onde esse momento é mais festejado e cujas cerimônias jamais saíram da lembrança ou das práticas cotidianas. Tanto que o Inti Raymi (Festa do Sol) é a festa mais importante do ano e acontece sempre no solstício para reverenciar Inti, o deus mais importante das culturas Aymara e Quéchua. A cerimônia é realizada no dia 24, na fabulosa fortaleza de Sacsayhuamán, que fica a pouco mais de dois quilômetros de Cusco, no Peru.
Durante a época dos incas, o Inti Raymi era o mais importante dos quatro grandes festivais celebrados em Cusco e marcava o início do ano andino. Naqueles dias o festival durava nove dias com muita festa, dança e rituais de sacrifício. O último Inti Raymi realizado com a presença do Imperador Inca foi em 1535. A cerimônia era na praça Aucaypata, hoje chamada de Plaza de Armas, no centro de Cusco, e toda a cidade vinha assistir e participar. Segundo relatos da época a população chegava aos 100 mil habitantes.
De todos os lugares vinham os curacas (chefes de aldeia) e os sacerdotes. E nos três dias que antecediam a festa só comiam milho branco, cru, algumas ervas e água. Também não acendiam fogo e não tinham relações sexuais. Era um período de purificação. As sacerdotisas do sol, as acllas, preparavam pãezinhos de milho que seriam distribuídos às gentes. No dia da festa o Inca e seus parentes vinham para a praça, descalços, à espera do sol. Ajoelhavam-se e jogavam beijos para Inti enquanto ele despontava no horizonte. Depois bebiam chicha e derramavam uma parte em honra do deus. Em seguida seguiam para o Corincancha, ou Qorikancha, o "Templo do Sol", onde faziam adorações. Os curacas faziam fila para entregar as oferendas que haviam trazido de suas aldeias e então todos seguiam de volta para a grande praça onde sacrificavam animais, cujas carnes eram repartidas entre os presentes. Acendia-se o fogo do ano novo que queimaria no templo até o Inti Raymi seguinte.
A festa dos incas foi proibida em 1572 pelo Vice-Rei Francisco de Toledo, que não tolerava qualquer cerimônia que não fosse cristã. Mas, entre os originários a cerimônia seguiu sendo praticada às escondidas durante séculos, até que em 1944 voltou a ser realizada a céu aberto, reconstruída historicamente por Faustino Espinoza Navarro a partir de textos do cronista Inca Garcilaso de la Vega. Desde aí, todos os anos, as gentes originárias se encontram em Cusco, para reverenciar Inti.
É fato que a festa adquiriu um caráter bastante turístico e acaba sendo um grande espetáculo. Mas quem já caminhou pelas ruas de Cusco e conheceu sua gente sabe que, enquanto os turistas se embriagam com as cores e os ritos espetacularizados, o povo originário refaz seu caminho de encontro com Inti, bem no fundo de sua alma ancestral. O Inti Raymi é um momento de profunda beleza e de introspectiva reflexão.
Feliz ano novo a todos nós, filhos e filhas do sol!
Jallalla! Kausachun, Inti!
Elaine Tavares
Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC