O fogo e os indígenas
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- Elaine Tavares
- 30/09/2020
Ferir a terra é ferir tudo o que vive
Então o presidente do Brasil foi à ONU dizer que as queimadas que assolam o Pantanal, o Cerrado e Amazônia - que até ontem ele negava - estão sendo provocadas pelos indígenas e pelos caboclos. Até aí nada de novo a considerar uma criatura que se move unicamente no pântano da mentira. Mas cabe a nós trazer um pouco de informação veraz à população.
Um estudo da Ambiental Media, entidade que trabalha com jornalismo de dados, cruzou informações de instituições públicas como o INPE e o Cadastro Ambiental Rural, e mostrou que são as propriedades rurais de médio e grande porte as que apresentaram 72% dos focos de incêndio no ano passado. São também essas propriedades que apresentaram o maior índice de desmatamento, “coincidentemente”. Ou seja, o fogo é usado para queimar o que foi derrubado. Esse mesmo cenário é o que se vê hoje, tanto no Pantanal quanto no Cerrado. As terras são queimadas para expandir a fronteira agrícola.
Ainda conforme os dados, as terras indígenas aparecem com apenas 11% de queimadas, sendo que boa parte delas são comprovadamente provocadas por grileiros e jagunços. Repassando: não são, portanto os indígenas nem os caboclos assentados os que colocam fogo na vegetação.
Um mínimo de conhecimento sobre a realidade indígena já seria suficiente para saber que as comunidades originárias, bem como as tradicionais – quilombolas e ribeirinhas - têm uma relação com a natureza que não está vinculada ao lucro ou à produção capitalista. Essas comunidades utilizam o território como espaço de vida e fazem uso da terra de maneira sustentável. Suas técnicas de manejo remontam há séculos e o elemento chave é a proteção.
O chamado bem-viver reivindicado pelos povos originários está firmemente ancorado na pachamama (a terra como expressão totalizadora da vida toda), na reciprocidade, no uso coletivo da terra, na propriedade comunal, na solidariedade. É fato que cada etnia tem sua concepção singular do que seria esse bem-viver, mas a organização unificada dos povos em nível continental atualmente aponta elementos que são comuns a todos. E o mais importante deles é o de que a terra não é algo que está fora da vida, ela é parte da existência de cada um. É, portanto, impensável machucá-la.
Por isso é importante perceber que a acusação de Bolsonaro na ONU não é por acaso. Os ruralistas, aliados prioritários, têm como projeto, ainda nesse governo, eliminar as comunidades indígenas dos míseros 12% do território nacional que ainda estão protegidos sob seus cuidados. A sanha de expansão do capital é imparável e todas as terras precisam ser amealhadas.
Daí que imputar aos indígenas esse crime de lesa-humanidade que vivemos hoje no país é uma grande cartada. Com base nessa ideia de que os indígenas são inúteis e ainda destroem as terras, essa gente pretende dar continuidade ao processo de reversão das demarcações já feitas, e impedir novas demarcações, extinguindo assim com essa prática, que é subversiva para o capital, de uso racional e comunitário da terra.
Quando deputado, cargo que exerceu por 28 anos, sempre foi muito conhecido o preconceito e o completo desrespeito que Bolsonaro sistematicamente manifestou no trato do tema indígena. Por isso, ao ser eleito e empossado presidente, sua decisão de passar o tema das demarcações e homologações ao Ministério da Agricultura, dirigido por uma representante do agronegócio, é claramente um ataque concreto à luta originária e um aceno servil aos interesses de fazendeiros e mineradores que já possuem mais de 60% do território nacional, sonhando abocanhar as terras indígenas, cheias de vida e de riqueza.
Ao contrário da proposta de exploração e esgotamento do ambiente implementada pelo latifúndio, os povos originários têm uma forma própria de viver e de se organizar nas terras, bem como uma forma própria de sustentabilidade. Eles não trabalham com a ideia de desenvolvimento capitalista e não pactuam com o modelo econômico que impacta negativamente seus territórios.
De novo, basta entrar nas bases de dados de órgãos governamentais, como o INPE ou o IBGE e já se pode ver claramente que as terras indígenas são espaços vigorosos, com comprovação técnica e cientifica de proteção ambiental, sendo muito bem manejadas pelos povos indígenas, e tanto que por conta desse manejo e preservação garantem constantes chuvas com as quais até as plantações e agronegócios da região do sul e sudeste são beneficiadas.
Portanto, apenas com esses poucos fatos já é possível perceber que os povos indígenas jamais seriam capazes de colocar fogo no seu território, terra-mãe. Essa é uma ação dos capitalistas, interessados em “limpar” os terrenos para introduzir pastagens, cultivos alienígenas ou para fazer mineração, terra-mercadoria.
A máquina de mentiras instalada no palácio do governo em Brasília vai continuar inflamando seus aliados/alienados contra os povos indígenas. E já possível visualizar isso nos grupos de uatizapi que reproduzem essa mentira – de que os incêndios são obra indígena - à exaustão. Mas em matéria de resistência os indígenas têm mais de 500 anos de experiência e seguirão atuando no sentido de estabelecer a verdade.
Cabe a cada um de nós ajudar nessa cruzada.
Elaine Tavares
Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC