Dois toques sobre a eleição no Brasil
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- Elaine Tavares
- 07/10/2022
Antes da eleição eu estava sentada lá no Elias, comendo um pastel. Sentou ao meu lado um homem e logo puxou conversa perguntando em quem eu iria votar. Não era um homem sem cultura formal, era um brasileiro médio, pequeno empresário e bem articulado. Respondi que não sabia ainda, para dar corda. Ele então começou a falar sobre as propostas da “esquerda”. Uma delas era que o Lula, se eleito, iria transformar os banheiros das escolas em banheiros conjuntos, meninos e meninas junto. E que aquilo era um absurdo. Também que nas escolas iriam ensinar como ser gay e puta, estragando a família brasileira. Disse ainda que as vacinas que as pessoas tinham tomado eram feitas de placenta humana e que causavam câncer em massa. Que o Bolsonaro estava certo em não querer que a população se vacinasse, que ele salvou vidas. Falou da ministra Damares e no quanto ela estava trabalhando para proteger as meninas de tanto pecado. Sobrou até para o Papa Francisco, que, segundo o cara, era um pedófilo convicto e que, unido com a esquerda, iria perverter todas as crianças. Disse ainda que o comunismo era a coisa mais horrível do mundo, embora não conseguisse me explicar em que exatamente consistia. O que ele sabia era que destruía a família. Por isso a necessidade de escolas militares. Além disso, falou do quanto o Lula era ladrão e do tanto que tinha roubado o país. Por isso era fundamental que a população estivesse armada, para se proteger da violência e dos ladrões. Também afirmou convicto, que as queimadas na Amazônia e no Pantanal tinham sido provocadas por esquerdistas aliados ao Leonardo DiCaprio, para manchar o nome de Bolsonaro. Por fim, para salvar a família, só mesmo o Bolsonaro.
Estas são algumas das verdades que estão firmes na cabeça de um número expressivo de brasileiros. São ideias que cruzam o éter nos grupos de família, de amigos, na igreja, nas conversas de bar. O comunismo é do diabo, torna as pessoas marginais e por isso é preciso acabar com essa ideologia satânica. Se precisar, para dar fim no comunismo é preciso acabar fisicamente com os comunistas. Eles são a maçã podre que está enfraquecendo a nação e a família. Eles são monstros que realizam sacrifícios humanos para se manter no poder no mundo. Tudo o que dá errado no país é culpa deles. Eles causam os problemas para incriminar Bolsonaro. Por isso a cruzada do presidente e de sua religiosa esposa. Eliminar os comunistas é salvar a nação. E as pessoas falam isso sem qualquer pejo. Porque para elas, matar um comunista não é crime, é ajudar na missão de deus para criar um país seguro para seus filhos. Por isso acreditam na ideia de que os militares, quando deram o golpe em 1964, estavam corretíssimos em perseguir, torturar e matar os comunistas. Porque eles são a causa de todo o mal.
Esse tipo de discursos não está apenas no âmbito das pessoas mais simples e religiosas. Ele circula velozmente mesmo entre os letrados. Tem se transformado numa espécie de monstro que carrega todo mal do mundo. E não adianta querer argumentar, trazer elementos da história. Não. É crença. Não está no campo da razão. Qualquer tentativa de debate é rechaçada com um olhar estranho de reconhecimento: ela é o diabo. Já ouvi isso até mesmo de pessoas da família, pessoas muito próximas. E esse reconhecimento implica em uma ação imediata de rechaço e de necessidade de eliminação. Assim que não adianta trazer números sobre o quanto a ditadura matou e torturou. Para essa gente, os milicos fizeram o que tinham de fazer e, se precisar, eles mesmos o fazem agora. Tudo para salvar a família. Não há argumento que penetre esse muro criado pela fé cega.
É nesse mundo que estamos agora. E, de certa forma, perdidos. Porque o que se vê no campo da esquerda é uma incapacidade teórica e prática de atuar nesse universo. Primeiro que há uma negação sobre esse discurso e uma desqualificação das pessoas que o disseminam. Não sei se é o caminho. A política está atravessada pela moral, sempre esteve de algum modo quando definimos o que é bom ou o que é ruim. Mas, agora, nesses tempos, a moral se sobrepõe porque a política – tal como aparece - tem se mostrado incapaz de dar respostas aos problemas cotidianos. Geralmente quem tem feito isso – dar respostas e caminhos - é a igreja. As neopentecostais estão em cada esquina, como as farmácias. E elas são espaços onde as pessoas se sentem seguras para sonhar com a resolução dos problemas. Então, entregar a vida nas mãos de deus parece ser o mais seguro. E quem é o homem de deus? Bolsonaro. Então, quem está com ele, está com deus.
Por isso, um completo desconhecido, com uma arma na mão, pode virar o senador eleito de um estado, como aconteceu em Santa Catarina, porque ele é um soldado de deus para acabar com os bandidos e defender a família. Esse é o mantra. “Deus no controle”, e não um deus qualquer, mas um deus vingador, sedento de sangue. E os comunistas é que são os satânicos. Ah, mas claro. Eles estão a serviço do diabo. Por isso devem ser eliminados. Simples assim.
Elementos da realidade do governo de Bolsonaro tais como a compra de imóveis de luxo com dinheiro vivo, corte de 92% da verba para Ciência e Tecnologia, aumento dos salários do presidente, do vice e dos generais em 69%, mais de trinta bilhões de orçamento secreto, cinco bilhões para o Fundão eleitoral, cinco milhões para os desfiles de moto, pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), desvio de verbas de combate à Covid, retirada de recursos das Universidades, fim de direitos trabalhistas, invasão das terras indígenas, e outros tantos, não são considerados. Isso não é considerado problema pela maioria da população.
E é nesse ritmo que a realidade perde força diante da fé. Se os preços dos alimentos estão nas alturas, não têm nada a ver com o governo. É coisa do demo e dos comunistas. Se a gasolina foi a sete reais, culpa dos esquerdistas. Se não há emprego, é porque os comunistas exigem direitos, ora só. Direitos! Se não há segurança é porque os esquerdistas estão mancomunados com os bandidos. Essa é a oração repetida e repetida. “Tudo está começando a melhorar”, insistia o candidato Bolsonaro nos seus comícios. “Agora vai”, porque já limpamos bastante o país de comunistas. Mas ainda há que limpar mais. E a fé cega acompanha e acredita. Nas suas falas ele toca no que interessa: a comida vai chegar à mesa, a família estará protegida. Quem não quer isso?
Bolsonaro cometeu todos os crimes eleitorais possíveis durante a campanha. Fez até do sete de setembro um ato eleitoral. E a justiça quieta, no miudinho. Porque os que a operam estão igualmente montados nesse cavalo moral. A classe dominante apoia porque o Bolsonaro é útil ao sistema, tem garantido todas as suas demandas. E a massa, hipnotizada pela fé, não questiona. Esse é o pântano onde estamos metidos. A realidade material é de arrocho, miséria – a fome já toca mais de 33 milhões de pessoas – insegurança, medo. Só que isso não mobiliza para a mudança, porque o presidente já prometeu melhorar. A ideologia vencedora é de que com armas na mão será possível defender a família e que, com deus no comando, a vitória virá. Quem não quer defender a família?
A história nos conta de momentos assim, de prevalência da moral, tais como a inquisição, o nazismo, o fascismo. São tempos duros para os quais as respostas não são fáceis ou simples. A esquerda brasileira não conseguiu ainda se mover nesse campo. Ainda não têm respostas. Mas, como também nos mostra a história, fatalmente acabará encontrando. Por enquanto está tateando. As propostas bolsonaristas são concretas e dizem respeito às demandas concretas da população. “Vamos melhorar a vida, vamos limpar o país dos ladrões, vamos defender a família”. As propostas da esquerda não são claras e não tocam a realidade, preferem defender pautas particularistas que só tocam na classe média. Eis aí o nó.
E para nosso desespero ainda há quem faça discurso de vitória por terem conseguido colocar algumas figuras representativas dos movimentos sociais no parlamento. Ora, a política não se decide ali. Haveria que se retomar um discurso classista, repleto de propostas claras para a classe trabalhadora. Propostas concretas, que dizem respeito aos dramas reais dos trabalhadores. Os trabalhadores querem emprego bom, defender os seus filhos das drogas, da violência, e querem viver em paz. O candidato da direita fala com eles, promete isso, ainda que não cumpra. Esse é o ponto. Em quatro anos a vida piorou, mas “agora vai melhorar”, aponta o messias. E o povo, desesperado por mudanças, acredita.
Elaine Tavares
Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC