A Bolívia é um turbilhão
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- Elaine Tavares
- 01/07/2024
Foto retirada do Twitter de Luis Arce
Eu estava na Bolívia quando houve a Rebelião de La Paz em 2003. Foram dias de grande turbulência. Havia greve da polícia nacional e o presidente Sanchez Vasquez colocou o exército para combatê-la. Mas os policiais em greve estavam armados e o confronto foi inevitável. Mobilizações massivas da população, gente morta, feridos e muita violência por parte da repressão. Em La Paz o Palácio Presidencial fica de cara para a rua. Não há muita proteção. A porta dá para a calçada, assim como as janelas. Lembro que naqueles dias, o povo apedrejou o prédio e chegou a invadir o gabinete da vice-presidência.
Rebelião é marca da população boliviana. São milhares registradas ao longo dos anos, a tal ponto de um dos teóricos mais importantes do país, Rene Zavaleta, ter tornado esse termo uma categoria de análise. Neste contexto, o que se viu na quarta, no centro de La Paz, quando o presidente Luis Arce saiu do palácio para repreender o general golpista em frente à porta, cercado de populares, não é cena de Gabriel Garcia Márquez. É a Bolívia.
O general golpista Juan José Zuñiga tinha sido exonerado do cargo de comandante geral, ocupado desde 2022, depois de ter declarado que não permitiria o retorno de Evo Morales, hoje candidato à presidência. Para ele, Morales estaria inabilitado e sua insistência em ser candidato provoca instabilidade no país. Durante o cerco ao palácio, Zuñiga exigia que Arce trocasse todo o gabinete ministerial para então decidir se continuaria apoiando ou não o seu governo. Não teve sucesso. Também reivindicava a libertação dos golpistas de 2009. Pouco tempo depois, desbaratado o golpe, ele denunciaria que tudo tinha sido uma armação para elevar a popularidade de Arce. Isso agora está para se investigar.
Há que entender os acontecimentos observando alguns eventos recentes no país. As eleições estão chegando e cercadas de muita polêmica. Tudo isso porque Evo Morales queria ser o candidato do MAS, quando Arce decidiu também postular a candidatura. Isso abriu uma crise no partido e o rompimento das relações entre Evo e Arce. Há também um entendimento de que a atual candidatura de Evo Morales seria ilegal, o que tem levado a muitas controvérsias. De qualquer forma, as duas candidaturas no campo da esquerda estão colocadas e Evo Morales ainda tem muita força. Há que lembrar que o governo de Luis Arce, eleito por ampla maioria depois do golpe de 2019, conseguiu colocar na prisão praticamente todos os golpistas, inclusive a usurpadora Jeanine Añez e essas forças seguem vivas e atuantes também na política, mobilizando grandes massas.
No pano de fundo de toda essa turbulência estão o gás e o lítio, duas riquezas muito cobiçadas, que são patrimônio do povo boliviano. Já o golpe de 2019 foi dado de olho nessas reservas: o gás como energia e o lítio como um mineral fundamental para o mundo moderno, visto que sustenta a indústria das novas tecnologias. Não dá para descartar influências externas no episódio, mas o episódio ainda precisa de muita investigação. Foi um golpe? Foi uma armação de Arce? Foi um movimento da direita? Teve participação da CIA? As respostas ainda não são claras. Há que esperar assentar a poeira.
O fato é que as análises não podem ser simplistas. Há uma intrincada relação de interesses bem como o sistemático projeto de manter os países da América Latina sempre em permanente estado de instabilidade. Uma estratégia bastante eficaz do capital e do império.
Por enquanto tudo voltou ao seu lugar. Mas em se tratando de América Latina tudo pode acontecer.
É importante observar que o governo de Arce, ainda que tenha conseguido fazer crescer o tal do PIB e controlar a inflação, não é um governo de esquerda, disposto a garantir que as riquezas do povo boliviano fiquem sob o controle do povo. Nem ele, nem Evo Morales descartam alianças com os Estados Unidos e com o capital internacional. Assim, nem um nem outro pode ser chamado de “comunista”. De qualquer forma, caso queiram preservar parte da riqueza para a própria nação já se transformam em grandes inimigos mundiais do capital, que não aceitam perder um centímetro. É ruim para a Bolívia que eles estejam rompidos e em disputa.
Hoje a Bolívia esta “revuelta”. Vários movimentos sociais, sindicatos e centrais de trabalhadores estão em movimento realizando manifestações e trancamento de estradas e ruas. A palavra de ordem é garantir a Constituição e a democracia.
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Elaine Tavares
Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC