Correio da Cidadania

Venezuela: resiste e avança

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Venezuela: resiste e avança
Uma das vantagens de ser velho é que se tem memória. E isso fica ainda melhor se a gente estuda. Conhecer a realidade nos obriga a desvelar o que está escondido. Sendo jornalista essas duas qualidades ficam ainda mais importantes, visto que nosso trabalho é uma fundamental mediação. Digo isso para falar da Venezuela, que nestes dias voltou a ser o tema da vez nas mídias comerciais e nos grandes portais monopólicos de informação. E o que dizem é por lá há uma ditadura e que as últimas eleições foram fraudadas.

Bom, sobre a Venezuela há que se lembrar que até a eleição de Hugo Chávez, em 1998, o país foi governado de forma alternada pela elite dominante. Conservadores e liberais. Ora um, ora outro, mesma forma de governar. Riqueza do petróleo para eles e miséria para o povo. E tudo isso decidido ali mesmo, por eles, sem grande interferência estrangeira.

Chávez quebra esse círculo. Quando o sistema político vigente estava totalmente puído, ele surge, com uma proposta bolivariana, qual seja, a construção de um país soberano vinculado a ideia de Pátria Grande, formulada por Simon Bolívar, um dos pais da independência dos países de nossa região. Rodando o país pregando mudança, ele vence as eleições. Poucos meses depois, cumpre sua promessa de dar início a um novo tempo, com uma nova Constituição. Elegem-se os constituintes, formula-se a nova carta magna e Chávez coloca-se pronto para uma nova eleição, já sob a égide da Constituição pensada e aprovada pelas gentes organizadas. Vence!

A nova lei venezuelana traz uma novidade que aparece como “insustentável” para o chamado “mundo livre”, leia-se Estados Unidos. O país se organizaria a partir daí com cinco poderes, fugindo da tradicional organização burguesa. Além do Executivo, Legislativo, Judiciário e Eleitoral, foi criado o Poder Popular, sendo que esse supera todos os demais. Ou seja, um referendo, um plebiscito ou qualquer outra forma de consulta popular pode mudar qualquer decisão dos demais poderes. Ora, que país no mundo poderia se atrever a isso? Entregar o mando das questões estratégicas para a população? Isso cheirava a comunismo, então, era preciso destruir.

Foi aí que veio o golpe de 2002 quando Chávez foi sequestrado e o palácio invadido por empresários representantes da elite local. Mas, a organização popular promovida e respaldada por Chávez deu resposta imediata. O golpe durou apenas 36 horas. Militares leais a Chávez informaram aos meios de comunicação populares que o presidente não havia renunciado como diziam os golpistas, ele havia sido sequestrado. Foi o que bastou para que os venezuelanos fossem às ruas exigir o retorno do presidente. Chávez volta e reassume. É quando a direita local, financiada pelos Estados Unidos, começa seu ciclo de violência. Desde aí não houve paz.

Chávez governou até 2013, quando morreu, e sofreu várias ondas de protestos e violências. Ainda assim, fortaleceu a democracia participativa, criando as missões nos bairros, organizando as gentes para o exercício do poder popular. Sua morte aconteceu quando já estava eleito para novo mandato, tendo Maduro como vice. Em qualquer outro lugar do mundo, o vice assumiria, como já aconteceu no Brasil. Quem lembra sabe. Tancredo foi eleito, morreu antes de assumir e Sarney governou.

Mas na Venezuela, não. Maduro foi considerado ilegítimo e nova onda de violência foi criada para impedir que ele assumisse. Seria legítimo assumir, mas ainda assim Maduro se colocou para uma nova eleição. E a direita golpista perdeu. Maduro foi o escolhido e passou a governar. Enfrentou violências muito maiores que Chávez, como as famosas “guarimbas” que causaram muitas mortes. Tudo isso incentivado e promovido pelos agora “democráticos” adversários. Foram tempos duros e não houve sossego.

Logo em seguida, sem conseguir derrotar o governo pela violência local, os opositores conseguiram com que o governo dos Estados Unidos abrisse, em 2015, o que ficou conhecido como “guerra econômica”, uma forma de terrorismo bem pouco falada na famosa mídia burguesa. A Venezuela passou a sofrer sanções e a vida do povo foi estrangulada. Como o país praticamente comprava tudo que necessitava do exterior, e as sanções impediam o comércio, os produtos desapareceram das prateleiras. Faltava tudo, principalmente comida. E na mídia, o bombardeio contra Maduro. Filas gigantescas para comprar alimentos, gente saindo do país, a inflação disparando até as alturas. Era o caos.

Não bastasse isso, um parlamentar representante desta elite predadora, decidiu se autointitular presidente de fato da Venezuela. Juan Guidó, de triste figura. Ocorre que ele foi reconhecido pelos Estados Unidos e por outros países aliados na Europa e até no Brasil.

Enquanto isso os bancos europeus e estadunidenses decidiram simplesmente roubar as reservas venezuelanas, sem que nenhum tribunal internacional interviesse. Roubaram ouro e dólares na cara dura e repassaram esse dinheiro para que Juan Guidó andasse pelo mundo fazendo campanha contra Maduro. Esse horror foi sustentado inclusive durante a pandemia da Covid-19, quando a Venezuela ficou sem recursos para comprar as vacinas e os remédios para a população. Um crime sem precedentes, que jamais foi questionado, nem pela mídia, nem pelos governos de então. Não fosse a ajuda da Rússia, China, Irã e Cuba, os venezuelanos teriam tido números astronômicos de morte.

Agora, na última eleição, a direita decidiu voltar a disputar, e perdeu. Mas, não aceita. Simples assim. “Se perdi, não valeu”. Uma espécie de síndrome de Aécio. E, como sempre, desde 1998, é apoiada em mais esse crime pelos Estados Unidos e seus marionetes, inclusive o Brasil (cumprindo um triste papel, como já cumpriu no Haiti, também em um governo de Lula). Assim, tudo o que foi vivido após a morte de Chávez volta a se repetir. As guarimbas incitando a violência e até a proposta de um novo “presidente” marionete, como foi Guaidó. Mais um pretexto para continuar usando os recursos roubados do povo venezuelano.

Esse é o teatro montado. O mais do mesmo, a velha técnica da mentira e do crime, aplaudida pela mídia e pelos governantes títeres do mundo.

“Ah, mas Maduro é um ditador”, “Ah, mas o povo tá fugindo”, “Ah, mas tem muito problema”. Esta é a arenga de quem não consegue enxergar mais que um palmo diante do nariz ou pensar com a própria cabeça. É óbvio que não tem sido fácil enfrentar todo esse drama de roubo e ingerência, mas a população venezuelana organizada tem plena capacidade de resolver seus problemas. Há uma grande parcela que apoia Maduro (por isso venceu as eleições), há os críticos que querem ver o presidente avançar pelos caminhos do chavismo, há os descontentes que simplesmente querem melhorar a vida e pensam que isso pode acontecer se a direita voltar e há a direita que quer recuperar seu poder e, principalmente a renda petroleira.

Como qualquer país, a Venezuela tem seus próprios nós a desenrolar. Infelizmente, por ter essa riqueza tão cobiçada, não consegue, porque a ingerência dos Estados Unidos, aliada com a elite predadora local não deixa a vida seguir seu curso, como nunca permitiu que Cuba pudesse seguir seu caminho, livre. É sempre bom lembrar que os EUA não conseguiram ainda quebrar Cuba, com mais de 60 anos de bloqueio, estrangulada. Pois assim tem sido na Venezuela. Bloqueada e roubada desde 2015, resiste. Há erros? Sim, há. Há corrupção em espaços de governo? Sim, há. O Maduro, por vezes exagera no histrionismo? Sim, exagera. Mas esses são problemas que precisam ser resolvidos pelos venezuelanos.

O que se vê agora é só mais um capítulo da guerra travada contra a proposta de soberania colocada por Chávez. Um país pode tudo no mundo, menos desobedecer ao império. Isso é o que pensam os Estados Unidos e seus asseclas. Bueno, a história já mostrou que sim, é possível desafiar o império e vencer. Por isso, os venezuelanos resistem. O preço é alto, mas a luta é essa.

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As “misiones populares” seguem organizando a população e reivindicando vida digna

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Elaine Tavares

Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC

Elaine Tavares
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