Correio da Cidadania

A Lei da Irrigação no Uruguai

0
0
0
s2sdefault


Em ritmo fulminante, os senadores aprovaram o texto revisado pelos deputados e se concretizou a nova lei para administrar a irrigação no país. Cria-se um mercado de irrigação, com dois novos atores empresariais, as Sociedades Agrárias de Irrigação e os Operadores do Sistema de Irrigação, que potencialmente cobrem todas as bacias de todo o território nacional.

Diante de uma mudança de tamanha magnitude, são indispensáveis salvaguardas para proteger os cursos de água de forma correta e efetiva. O temor reside em que, coloquemos por caso, aqueles que estão acima e podem acapará-la, deixando-a sem nada os que estão abaixo de uma bacia, obrigando-os a comprar a água. Dito de outra forma, pode haver uma disputa onde uns queiram se apoderar da água para lucrar com sua venda para irrigação. Uma das consequências desse tipo de batalhas empresariais é que trechos de riachos ou rios podem ficar sem água.

Quando as ações humanas desembocam em trechos sem água de um rio ou riacho, quando a água está represada apenas em uns piscinões, desconectados uns dos outros, estamos diante de impactos ambientais substantivos. Isso tem efeitos muito nocivos sobre a fauna e flora aquáticas, assim como nos ambientes das margens, tais como cadeia de montanhas ou matas ciliares. Impactos deste tipo não se revertem facilmente. De alguma maneira poderia se dizer que o rio é um como um organismo vivo que não pode se sustentar sem água.

Frente a essa situação, é necessário assegurar um caudal mínimo que esteja sempre presente, para evitar que o curso da água morra. São as condições indispensáveis para que se mantenha a fauna e flora aquática, e nas margens.

Assim, qualquer lei relativa a esta matéria deveria deixar muito claro no marco destes caudais ecológicos mínimos, assinalando critérios ambientais, as vias para determinar umbrais chaves, quem e como controlaria, as sanções para quem violar etc.

Na lei que acaba de se aprovar se fez quase tudo ao contrário. Primeiro se asseguram os fins empresariais e o marco legal para os investidores, e se deixa para uma futura regulamentação o que acontecerá com a água. Ou seja, o elemento mais importante para uma lei deste tipo não é adequadamente atendida, e se joga a bola para um futuro incerto, em mãos de autoridades do MGAP (Ministério da Pecuária, Agricultura e Pesca), que é exatamente um dos principais responsáveis de todos os problemas com a água no país. Não esqueçamos que o MGAP defendeu essa lei dizendo que “tem muita água” no país. .
 


Esquema de um curso de água, com distinção entre o caudal ecológico como indispensável para manter suas comunidades de vida e, acima deste, os possíveis usos humanos. O caudal total por sua vez oscila (por exemplo, entre o verão e o inverno).

Essa insistência em criar um mercado de irrigação começou no governo anterior, e se expressa na “Estratégia de fomento ao desenvolvimento da agricultura irrigada no Uruguai”, que o MGAP terminou de elaborar em 2014 com apoio do Banco Mundial. Tudo está muito claro: o primeiro ponto da estratégia é criar um “marco legal propício aos investimentos públicos e privados” e, neste objetivo, há medidas como revisar a velha lei da irrigação. Isso é o que disseram.

Outra questão ambiental de enorme relevância que a lei tampouco aborda adequadamente é que se possa contar com avaliações de pequenos e medianos impactos que se acumulam numa bacia hidrográfica. É que podem ocorrer uma sucessão de aprovações de pequenos represamentos, onde cada um separadamente talvez cumpra com as exigências ambientais, mas que ao se somarem uns aos outros tem efeitos substantivos no conjunto da bacia. É a clássica situação de represinhas, quebra-mares e canalizações em banhados, vales, riachos, que nutrem um rio e deveriam ser também abordados em todo seu conjunto.

O instrumento neste caso são as avaliações ambientais que não estão focadas nas obras específicas, mas que têm uma ampla visão sobre o território. Pois bem, este tipo de instrumento foi anulado em nível nacional pelo governo Vázquez. Não há mandato legal em escala nacional para aplicá-los.

Poderão dizer que tudo é um exagero e seguramente tais problemas não se concretizarão. Ainda assim, basta ver nossa realidade nos últimos tempos para compreender o alarme.

Poucos dias atrás, o manejo das comportas na represa de Palmar deixou sem água o Rio Negro, o que mostra que nem este ente estatal nem seus dirigentes, tampouco os engenheiros, sabem muito de caudais ecológicos e deixaram o rio agonizando. É um exemplo claríssimo de descumprimento da garantia de um caudal ecológico mínimo.

Entretanto, no departamento de Rocha temos todo tipo de exemplos das consequências dos efeitos somados nas bacias que desembocaram em um caso hídrico. O que por sua vez obriga obras que geram outros impactos maiores, como o Canal Andreoni.

Esses e outros exemplos mostram um Estado, em especial o MGAP, sem adequadas capacidades para uma fiscalização efetiva da contaminação de águas por usos agroquímicos e práticas agropecuárias. O resultado é a continuada contaminação de vários grandes cursos de água.

Portanto, se o Estado não pode assegurar-nos a qualidade ambiental da água no meio rural, poderá controlar centenas de represinhas dispersas por todo o território? Colocará um policial no pé de cada uma dessas pequenas represas no verão para evitar a morte do curso d’água? E a dúvida se eleva ainda mais quando pensamos que tais represinhas estarão em mãos de toda uma ramificação empresarial.

A nova lei é parte de uma política que aborda o cuidado de rios e riachos pelo contrário, começando por usos comerciais antes de assegurar uma adequada proteção de nossos cursos hídricos.

Mais informações

Meses atrás, adiantei algumas dessas preocupações em “Riscos ambientais na reforma da lei da irrigação (link aqui) – estratégias de fomento ao desenvolvimento da agricultura irrigada no Uruguai, Resumo Executivo, MGAP, com apoio do Banco Mundial, janeiro de 2015.

Eduardo Gudynas é analista do CLAES (Centro Latino Americano de Ecologia Social) em Montevideo.
Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.

0
0
0
s2sdefault