Lições do caso Bolsonaro: leituras para uma nova esquerda
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- Alberto Acosta e Eduardo Gudynas
- 12/01/2019
Os alertas sobre a deriva do PT no Brasil rumo a um progressismo afastado da esquerda foram ignorados. Questionamentos sobre temas fundamentais como os impactos do “neodesenvolvimentismo” primarizado não só foram desestimados como ativamente combatidos nos debates, marginalizando-se os ensaios que buscavam alternativas. Diferentes atores, tanto dentro como fora do país, aplaudiam complacentes, incapazes de escutar vozes de alerta, com o pretexto perverso de “não fazer o jogo da direita”.
Tal como círculos concêntricos se difundem na América Latina os impactos e as implicações da vitória de Jair Bolsonaro no Brasil. A vitória da direita extrema brasileira merece uma análise, mais ainda em um contexto onde o progressismo representado em figuras como Rafael Correa está em retirada, inclusive pela ação de correligionários, como Lenín Moreno, alguém em franca aproximação com o conservadorismo.
Toda a América Latina está a aprender tanto pelo triunfo de Bolsonaro – um político quase desconhecido da extrema-direita – como pela sua contraparte, o retrocesso do Partido dos Trabalhadores (PT) e de outros grupos. Sem ser a única explicação, é claro que o fracasso dos progressistas (1), caracterizados pelos seus exacerbados extrativismos (2), cria as condições para que emerjam governos ultraconservadores com traços fascistas. As esquerdas do Equador e de todo o continente estão condenadas a aprender do que aconteceu. E lhes cabe assumir uma grande responsabilidade, pois para grande parte da sociedade o fracasso dos progressismos – que sintetiza inclusive uma derrota cultural e simbólica de muitas ilusões e promessas de mudança – é também uma frustração atribuível às esquerdas.
Aqui apresentamos algumas reflexões preliminares sobre o ocorrido, intercalando apreciações focadas no Equador, com o propósito de aprender e desaprender. Não apostamos em repetir nem a informação circulante destes dias nem as explicações simplistas, sejam aquelas que veem um complô do imperialismo coligado com as forças mais conservadoras do Brasil, ou as que culpam o Partido dos Trabalhadores por tudo, ou que consideram ingenuamente que a vitória de Bolsonaro foi simplesmente o resultado da propaganda.
Nosso objetivo é promover uma reflexão que seja útil para identificar lições que sirvam a uma renovação das esquerdas e impeçam fenômenos similares a Bolsonaro nos demais países.
Progressismos e esquerdas: coisas diferentes (3)
Em toda a América Latina, os diversos grupos políticos conservadores realizam um ativo entrevero de fatos para desacreditar qualquer opção de esquerda. Mesclam-se as severas crises democráticas – não só econômicas – da Venezuela e da Nicarágua com a crise do PT no Brasil, para insistir em que as opções de esquerda são impossíveis, fatalmente tingidas de corrupção e sangue, sucessivamente. Mas justamente a crise brasileira mostra a urgência de insistir nas diferenças entre progressismos e esquerdas.
É que muitos dos problemas do Brasil resultam, como se verá abaixo, de uma gestão de governo do PT e seus aliados onde – pouco a pouco – esqueceram suas metas iniciais de esquerda para se transformarem em “progressismos’. Isso nunca foi ocultado e foi tornado atributo. Por tabela, a primeira lição crucial é que esquerdas e progressismos não são sinônimos.
Humildade para entender os humores do povo
O governo de Lula da Silva repetidamente se apresentou como exemplo das chamadas “novas esquerdas” em toda a América Latina e no mundo. Múltiplos grupos de esquerda de diferentes nações o tiveram como exemplo. Mais ainda, se insistia que a maioria do povo aderia à esquerda, explicando assim as vitórias eleitorais como as de Dilma.
Ainda assim, em um processo relativamente veloz – e cheio de abusos jurídicos por parte de grupos conservadores e corruptos – o PT perdeu o controle do governo. Rousseff foi removida de seu cargo e terminou na presidência um político de direita pouco conhecido e corrupto: Michel Temer, que era vice-presidente da mesma Dilma.
A mudança foi extrema. A vitória de Bolsonaro evidencia que a sociedade brasileira é muito mais conservadora do que o pensado, e aquele mesmo “povo” que antes aplaudia o progressismo agora em sua maioria festeja um político prolífico em discursos de tom fascista, sem ignorarmos que há um componente de rejeição ao PT.
Aqui vem outra lição: devemos ser cuidadosos ao usar categorias como “povo” e ser humildes ao asseverar quais são os pensamentos ou sensibilidades prevalentes. O ufanismo se mostrou míope ante uma sociedade brasileira que não era tão de esquerda como parecia e cujo conservadorismo está mais enraizado do que se supunha. Essa é uma questão delicada, pois parece nascer das crenças próprias do individualismo, do consumismo e demais patologias de uma prosperidade que entende como normal – e até necessária – a existência de profundas diferenças sociais, a ponto de aceitar a violência como ferramenta de “limpeza social”.
Valeria neste ponto acolher as oportunas reflexões de Maristella Svampa, que anota que “há algo da ordem do ‘impensável’ nesta ascensão da ultradireita, que evidencia a fragilidade dos valores democráticos e instala um clima social regressivo. Devemos dizer que tudo isso se nutre de um fascismo social preexistente” (4). Agrega que isso “não acontece da noite para o dia, mas uma vez que coagulam certas dinâmicas sociais regressivas podemos ver com claridade que estamos diante de outro cenário, muito distinto do anterior”, onde não podem se esquecer das ações das igrejas evangélicas no caso brasileiro.
Direitas sem disfarces e progressismos disfarçados de esquerda
Frequentemente, se evidencia outro aprendizado: os riscos de um programa recostado sobre setores conservadores para ganhar eleições. Uma postura para a qual primeiro deve-se “ganhar” e, depois, no Palácio de governo, se mudará o Estado e a sociedade. Exemplos disso são as ações que vão desde a adesão à ordem financeira (como na famosa Carta ao Povo Brasileiro, assinada por Lula em plena campanha de 2002) até a articulação política com o PMDB, de centro-direita, para alcançar “governabilidade”.
Seguiram-se outras concessões-chaves nas estratégias de desenvolvimento, enterrando as transformações estruturais do aparato produtivo e repetindo a lógica primário-exportadora. Este é justamente um dos aspectos que caracterizam o progressismo e o diferencia das esquerdas (5).
Assim, se cai na situação onde o progressismo uma e outra vez dissimula que é uma esquerda, enquanto a nova direita nada disfarça ou esconde. Bolsonaro critica abertamente negros e indígenas, é homofóbico e misógino, ironiza com o fuzilamento de militantes de esquerda ou defende a tortura e a ditadura. Esse é o tipo de discurso apoiado por parcela significativa da sociedade brasileira, gostemos ou não.
Desenvolvimento nada novo, e sim senil
A urgência de distinguir entre progressismos e esquerda também é evidente ao analisarmos as estratégias sobre desenvolvimento seguidas pelo PT no Brasil. O caminho de Lula e Dilma foi o “neodesenvolvimentismo”, cuja base são as exportações primárias, que ampliam as fronteiras extrativistas e a captação de investimento estrangeiro, afastando-se de muitas reivindicações da esquerda. Uma lógica repetida em todos os países governados pelo progressismo; no Equador, por exemplo, Correa apareceu como grande promotor da megamineração (6) e sua gestão. Além do mais, não impulsionou transformação estrutural alguma, pelo que se permite falar em “década desperdiçada” (7).
Com efeito, o Brasil se tornou o maior extrativista minerador e agropecuário do continente. Assim aceitou uma inserção subordinada no comércio global e uma ação limitada do Estado em setores como a indústria, justamente o contrário das aspirações da esquerda. Essa sempre aspirou as alternativas que tirassem nossos países de tal dependência.
Na essência, a estratégia neodesenvolvimentista não difere muito daquela seguida, por exemplo, pela administração Correa no Equador. Sem dúvida há matizes, em especial por uma maior presença estatal no Brasil com enormes empresas multinacionais como Petrobrás ou Vale, em parte estatais ou controladas e financiadas pelo governo. Mais além das arquiteturas financeiras e empresariais, repetia-se o extrativismo e a exportação de matérias primas, e com isso se gerava desindustrialização. E vale ter sempre presente que o extrativismo serve ao rentismo, incentiva o clientelismo, governos autoritários e corrupção.
As limitações de tais estratégias se dissimularam no Brasil com os vultosos excedentes da fase de alta dos preços das matérias primas. Ainda que se publicizasse a assistência social, o grosso da bonança se centrou em outras áreas: consumismo popular, subsídios a setores extrativos, apoio a grandes corporações (as chamadas campeãs nacionais).
Tudo isso explica que o “neodesenvolvimentismo” termine apoiado tanto por trabalhadores, que desfrutavam de créditos acessíveis, como pela elite empresarial que conseguia dinheiro estatal para se internacionalizarem. Lula era aplaudido, por razões distintas, tanto em bairros pobres como no Fórum Econômico de Davos.
O PT contribuiu substantivamente para a defesa cultural de tais estratégias, e por isso no Brasil não houve debates como os vistos no Equador quando a sociedade civil propôs a Iniciativa Yasuní-ITT (pensando alternativas ante o iminente esgotamento dos hidrocarbonetos). A esquerda do país deveria considerar o assunto, convocando as reflexões sobre como sair dos extrativismos, aproveitando que inclusive haja mandatos constitucionais fincados nos direitos coletivos dos povos e nos direitos da Natureza, que demandam tais transições.
A queda dos preços internacionais das matérias primas mostrou que as ajudas mensais que se davam no Brasil aos setores marginalizados são sem dúvidas importantes, mas não superaram totalmente a pobreza, além de ter feito persistir a excessiva concentração da riqueza – e parte do financiamento às corporações se perdeu nas redes de corrupção. A redução da pobreza se acompanhou de um simultâneo incremento da concentração da riqueza: ‘ricos muito bem, pobres levemente menos mal’, tendência denominada por Jürgen Schuldt como um “focinho de lagarto (8).
Dito “focinho de lagarto” mostra que é factível melhorar a distribuição da renda ao passo que a riqueza segue concentrada, quando existem abundantes rendas para a Receita, devido ao incremento dos preços das matérias primas. Isto é, pode se reduzir a pobreza sem mexer com os ricos, aumentando a igualdade entre lares sem enfrentar as desigualdades estruturais. Dita hipótese pode se matizar segundo os ciclos capitalistas: no auge, o lagarto capitalista “abre seu focinho” e aperta – explode – menos as classes trabalhadoras. Em troca, na crise, o focinho fecha e aperta com mais força, para sustentar a concentração dos meios de produção e acumulação de capital nos grandes grupos. Grupos que, sem dúvida, seja no Brasil do PT ou no correísmo equatoriano viveram tempos dourados.
No Brasil e no resto da América Latina vemos uma incapacidade para transformar a essência de suas estratégias de desenvolvimento. Aprofundou-se a dependência das matérias primas, com a China sendo a nova referência, com graves efeitos de desindustrialização e fragilidade econômica e financeira. O neodesenvolvimentismo extrativista vislumbrado pelo progressismo não é “novo”, é tão velho como as colônias durante as quais nasceu o extrativismo.
Assim mesmo, vale lembrar que o PT no Brasil não contou em seus inícios com um debate cidadão tão inovador como o que mais ou menos nestes mesmos anos ocorria nos países andinos com o “Bem viver”. No Equador, a formulação original dessa ideia constituía uma crítica e alternativa ao desenvolvimento extrativista.
De todo modo, o progressismo governante impôs sua própria versão desenvolvimentista, reformulou e atou aquele Bem Viver e o transformou em instrumento de poder e simples ferramenta para a propaganda. Assim, perdeu-se uma de suas inovações mais importantes. As esquerdas deveriam observar isso com atenção e colocar entre suas prioridades a recuperação da discussão original.
A lição aqui, para as esquerdas no resto do continente, é que a reflexão sobre as alternativas de desenvolvimento seguem chaves. Poderemos ter um discurso radical, mas se as práticas de desenvolvimento repetem velhos estilos, queira-se ou não, não cairá em políticas públicas convencionais, e é essa a convencionalidade o que caracteriza os progressismos e permite diferenciá-los das esquerdas.
Clientelismo versus justiça social
O “neodesenvolvimentismo” também buscou superar algumas situações políticas e sociais que deterioram, por exemplo, direitos e democracia. O discurso lamentavelmente se distanciou cada vez mais da prática. As políticas sociais clientelistas podem diminuir a pobreza temporariamente, mas não constroem cidadanias sólidas por onde se possa exigir direitos. Tampouco se quis entender que tais estratégias obrigavam o uso de certos instrumentos econômicos, sociais e políticos nada neutros, e até contrários à essência da esquerda, como era a própria ampliação dos extrativismos ou a concentração do poder nas mãos de caudilhos. Como resultado, emergiram condições para o retorno da direita, deixando-lhe servido um Estado e normas que facilitarão sua sustentação no poder.
Além do mais, a fragilidade do neodesenvolvimentismo faz os progressismos não resolverem a crise por uma perspectiva de esquerda, mas sim conservadora. O PT erodiu a qualidade política e aplicou, por exemplo, flexibilizações ambientais e trabalhistas para atrair investidores. No Equador, após um primeiro distanciamento do FMI e das políticas neoliberais, desde 2014, quando os preços do petróleo rondavam os 100 dólares por barril, o correísmo se encaminhou a um retorno neoliberal-conservador, ainda que mantendo o discurso progressista e até de esquerda. Tal evolução se acelerou com o governo de Lenín Moreno.
No Brasil, o PT aproveitou diferentes circunstâncias para reduzir a pobreza e alcançar outras melhorias (como aumentos no salário mínimo, formalização do emprego, saúde etc.), o que merece ser aplaudido (9). Mas muito deste esforço – como no Equador – residiu no assistencialismo e na mercantilização da sociedade e da natureza. A bancarização e o crédito explodiram, o consumismo aumentou, confundindo-se com melhoras na qualidade de vida.
O progressismo esqueceu aquele princípio da esquerda de desmercantilizar a vida, justamente uma de suas reações contra o neoliberalismo prevalente no século passado. Esta meta segue atual – e pendente – no Equador. Por sua vez, a insistência progressista no crescimento econômico como fundamento do desenvolvimento reforçou um mito aproveitado por Bolsonaro, apresentando-se como o melhor mediador para alcançar a meta. O mesmo ocorre no Equador e outros países, onde os governos insistem no crescimento econômico como grande meta a ser perseguida. Em troca, as esquerdas devem, no século 21, atrever-se a por em discussão tal reducionismo.
A ideia de justiça no Brasil também se reduziu a enfatizar certas formas de redistribuição econômica, enquanto os direitos da cidadania e de diversas comunidades, sobretudo indígenas, seguem fragilizados. Não se pode dissimular que o Brasil, por exemplo, lidera os indicadores mundiais de assassinatos daqueles que defendem a terra. Sem chegar a essa violência extrema, merece menção a criminalização dos defensores e defensoras da natureza, em especial indígenas, por parte do correísmo.
As esquerdas não deveriam se prender a reducionismos. É hora de aceitar que a justiça social implica muito mais que redistribuir, assim como o fato de a qualidade de vida ultrapassar o crescimento econômico. Uma esquerda renovada jamais deveria tolerar o enfraquecimento e menos ainda a criminalização dos movimentos cidadãos ou sociais. Pelo contrário, uma verdadeira esquerda deve promover e fortalecer a organização popular autônoma no marco dos direitos humanos e da natureza. E em todo momento e em todo lugar (seja na Colômbia, no Peru, na Venezuela ou na Nicarágua) deve defender tais direitos, mais ainda quando no governo, ainda que isso signifique perder uma eleição, já que é sua única garantia não só de essência democrática como de retornar ao mesmo governo.
Ruralidades conservadoras
As questões ao redor das ruralidades e as estratégias de desenvolvimento agrícola, pecuário e florestal também deixam lições. Sem dúvida Bolsonaro chega à presidência apoiado, entre outros, por um ruralismo ultraconservador que festeja seus discursos contra indígenas, camponeses e sem terras, e que inclui a defesa da violência armada.
O problema é que essa “bancada ruralista” que hoje apoia Bolsonaro já estava no governo, não por acaso Dilma Rousseff colocou uma das lideranças desse setor em seu gabinete (Kátia Abreu). Esse exemplo deve alertar a esquerda, pois distintos atores conservadores e ultraconservadores aproveitam dos progressismos para incrustar-se naqueles governos e chegarem mais perto do poder. São progressismos que lhes dão lugar sob discursos de pluralidade, governabilidade e necessidade de estabilidade, além de apoio eleitoral.
O retrocesso do progressismo também responde a sua incapacidade em promover uma real reforma agrária ou em transformar a essência do desenvolvimento agropecuário. Recordemos que sob o primeiro governo de Lula foi difundida a soja transgênica e se multiplicaram as monoculturas e a agroindústria de exportação, sem qualquer cobiça de mesmo porte em relação aos pequenos e médios agricultores. Outras administrações progressistas, em especial as de Argentina e Uruguai, apostaram no mesmo tipo de agropecuária.
Em suma, os progressismos não exploraram alternativas para o mundo rural, insistindo no simplismo de apoiar as monoculturas de exportação, sustentando um empresariado do campo, e se há dinheiro, dar alguma pouca assistência financeira aos camponeses. No Equador, por exemplo, Correa, contrariando a própria Constituição, se opôs a dar qualquer passo em direção da reforma agrária. Todos esses são temas sensíveis neste país e em quase todos os países da região – e se esquivar deles poderia melhorar algumas chances eleitorais – e uma esquerda real deve abordá-los apesar dos pesares.
As esquerdas devem propor uma nova ruralidade, falando sério não apenas sobre a propriedade de terras, mas sobre os usos que a ela são inferidos, o papel dos produtores e fornecedores de alimentos para o próprio país e para o comércio global. As esquerdas devem, inclusive, entender o território como espaço de vida e não somente a terra como um meio de produção: um assunto vital se quer realmente impulsionar é a construção de algum tipo de bem-estar.
Radicalizar a democracia
A debacle política brasileira nos recorda a crucial tarefa de radicalizar a democracia, umas das metas de ascensão da esquerda de anos atrás e que o progressismo abandonou. Incluía, por exemplo, construir uma efetiva participação cidadã na política e melhorar a institucionalidade partidária. Uma das grandes linhas condutoras da Constituição do Equador de 2008, que foi marginalizada e atropelada pelo correísmo.
No Brasil ocorreu algo semelhante. Uma vez no poder, o PT, concentrando cada vez mais poder no governo federal, teve um desempenho confuso e até perverso: em um dos casos voltaram a usar os subornos aos legisladores (lembremos do mensalão ainda no primeiro mandato de Lula); persistiu o verticalismo partidário (por exemplo, com Lula elegendo sua ‘sucessora’); pouco a pouco se desmontaram experimentos vigorosos (como os orçamentos participativos); e se fortaleceram enormes redes de corrupção ligadas a grandes obras públicas. O caudilhismo partidário se repetiu em outros progressismos: além do caso do Equador em que Correa elegeu seu sucessor, pouco antes se registou uma ação similar na Argentina, onde Cristina Kirchner tentou a mesma tática, ainda que ali tenha perdido as eleições.
É claro que uma renovação nas esquerdas deve aprender essa dinâmica, e não pode renunciar a democratizar, tanto a sociedade como suas próprias estruturas e práticas partidárias. Se não fizer assim, facilita o surgimento de oportunistas. As estruturas políticas de esquerda devem, de uma vez por todas, ser dignas de representantes das suas bases e não meros trampolins onde ascendem figuras individuais, aspirantes a caudilhos.
Outra lição é compreender que a obsessão eleitoreira leva a práticas que impedem essa democratização. Com efeito, o “medo de perder a próxima eleição” faz com que o núcleo governante (tanto seus políticos, quanto tecnocratas) se blindem, rechacem as reivindicações de mudança e abertura, e se imobilizem. Tal temor se evidencia no progressismo boliviano com sua tentativa de impor uma reeleição de duvidosa ilegalidade.
Recordemos que Correa também quis introduzir a possibilidade de uma reeleição indefinida violentando a Constituição, mas que logo, quando entendeu que sua candidatura não se aproximava do êxito, retrocedeu a uma transitória que postergava tal possibilidade. Esta realidade, em parte devida à incapacidade de fortalecer o próprio partido político em favor de sucessores e renovações, é outra amostra de debilidade democrática.
Uma lição ainda maior para as esquerdas, sobretudo após as experiências progressistas, é compreender o papel que o Estado deve assumir. A inviabilidade histórica dos Estados nacionais se explica em grande parte por não incorporar os povos indígenas e originários. Contudo, ainda fica a dúvida sobre se a incorporação e não marginalização desses grupos basta para criar outra estrutura estatal que nos leve à grande transformação civilizatória que nos convida a superar o antropocentrismo.
Renovação das esquerdas
O triunfo da extrema direita no Brasil deve ser denunciado e enfrentado nesse país, como também devem se fortalecer as barreiras que impedem que a situação se repita nos países vizinhos. O caso brasileiro ainda mostra que se devem analisar os feitos dos governos petistas por seus aspectos positivos, por sua duração (recordemos outra vez que ganharam quatro eleições), mas principalmente por suas contradições.
Diversas lições resultam de observar esse processo. Os alertas sobre a deriva do PT em direção a um progressismo alheio à esquerda foram ignorados. Questionamentos sobre temas fundamentais como os impactos do “neodesenvolvimentismo” primarizado não só desatenderam-se, como esses debates foram ativamente combatidos e ensaios que buscavam alternativas a este modelo de desenvolvimento acabaram marginalizados.
Distintos atores, tanto dentro de tais países como do exterior, aplaudiam complacentes, incapazes de escutar a voz que os alertava, com o pretexto perverso de “não fazer o jogo da direita”. Isto não deveria ocorrer nos demais países, e é necessário – e indispensável – promover esse tipo de debates, enfrentá-los com maturidade e respeito, despindo-se de qualquer dogmatismo.
Apesar de tudo, o Brasil e o resto do continente estão repletos de resistências e alternativas construídas a partir do cotidiano, em especial espaços comunitários. Elas sem dúvida serão a semente para uma recuperação da esquerda, desde uma crítica ao desenvolvimentismo, os empenhos em abandonar a dependência extrativista ou os esforços para salvaguardar os direitos cidadãos. Ali estão os insumos para uma nova esquerda emancipadora.
Uma esquerda que deve renovar-se e, portanto, evitar velhas contradições, como negar a problemática ambiental, assumir que tudo se solucionará ao estatizar os recursos naturais ou os meios de produção, desatender seus vícios patriarcais ou ser indiferente à multiplicidade cultural expressada pelos povos afro e indígenas.
A renovação das esquerdas deve assumir a (auto)crítica, custe o que custar, para aprender, desaprender e reaprender com as experiências recentes. Se mantêm conhecidos desafios e se somam a eles novas urgências. A esquerda latino-americana deve avançar em alternativas de desenvolvimento, deve ser ambientalista – e buscar uma convivência harmônica com a natureza – e feminista para enfrentar o patriarcado, persistir no compromisso socialista para desmontar a desigualmente social e descolonizar mentes, corações e territórios, para superar o racismo, a exclusão e a marginalização. E, sobretudo, deve ser anticapitalista e antissistêmica. Tudo isto demanda sempre mais democracia, nunca menos.
Notas do autor:
1. Alejandro Teitelbaum vê até um um paralelismo entre o que ocorre na Europa com o que há na América Latina. El Progresismo colapsado en América Latina, la socialdemocracia en Europa, están dejando la mesa servida a gobiernos ultraconservadores y fascistoides. El caso de Brasil; El Salmón (Colombia), 1 noviembre 2018, http://www.elsalmon.co/2018/11/el-progresismo-colapsado-en-america.html?m=1.
2. Ver a reflexão De la resaca del neoextractivismo y los extravíos del progresismo, a los acechos del neofascismo, H. Machado Aráoz, Servindi (Perú), 29 Octubre 2018, https://www.servindi.org/actualidad-noticias/29/10/2018/de-la-resaca-del...
3. Essa distincão está em Izquierda y progresismo: la gran divergencia, E. Gudynas, ALAI, 23 diciembre 2013, https://www.alainet.org/es/active/70074 , e em La identidad del progresismo, su agotamiento y los relanzamientos de las izquierdas, E. Gudynas, 2015, https://www.alainet.org/es/articulo/172855
4. La peligrosa legitimación del “fascismo social”, M. Svampa, Rio Negro (Argentina), 2 noviembre 2018, https://www.rionegro.com.ar/debates/la-peligrosa-legitimacion-del-fascis...
5. Sobre alguns balanços realizados dentro do Brasil sobre o desempenho do PT, veja-se, entre outros a A. Singer e I. Loureiro (orgs), As contradições do Lulismo. A que ponto chegamos?, Boitempo, São Paulo, 2016; também Francisco de Oliveira, Brasil: uma biografia não autorizada, Boitempo, São Paulo, 2018.
6. Ver por exemplo, De la violación del Mandato Minero al festín minero del siglo XXI, A. Acosta y F. Hurtado Caicedo, Rebelión, 30 junio 2016, http://www.rebelion.org/noticia.php?id=215028
7. A descrição se explica em Una década desperdiciada – Las sombras del correismo, A. Acosta y J. Cajas-Guijarro, CAAP, Quito, 2018, en:https://lalineadefuego.files.wordpress.com/2018/06/libro_la_decada_despe...
8. Ver artigo com o mesmo termos de A. Acosta y J. Cajas-Guijarro, 2018, en https://es.scribd.com/document/391301168/El-gran-fraude-59-76-Alberto-Ac...
9. Vejam-se, por exemplo, as detalhadas análises de Lena Lavinas, tais como The takeover of social policy by financialization. The Brazilian paradox, Palgrave McMillan, 2017; e em colaboração com Denise Lobato Gentil, Brasil anos 2000. A política social sob regência da financeirização, Novos Estudos Cebrap, 2018.
Eduardo Gudynas é pesquisador do Centro Latino Americano de Ecologia Social, no Uruguai.
Alberto Acosta é professor universitário, foi presidente da Assembleia Constituinte do Equador e candidato à presidência pela Unidade Plurinacional das Esquerdas.
Traduzido por Gabriel Brito e Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.