Chile: as brutais tensões da derrubada da classe política
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- Eduardo Gudynas
- 19/02/2020
Nove de cada dez chilenos não têm confiança nos partidos políticos. Essa é uma situação impactante, mais ainda quando são os políticos os que deveriam encaminhar o processo de uma nova Constituição, o mecanismo mais urgente para superar a crise que ficou em evidência a partir de outubro de 2019. Esses e outros resultados foram mostrados pela recente pesquisa do CEP (Centro de Estudos Públicos), confirmando a derrocada da política convencional, mas também deixando claro que essa crise é mais profunda do que assume boa parte da classe política, tanto à direita como à esquerda.
Essa nova avaliação mostra que o Chile enfrenta tensões que só podem ser descritas como brutais. É que a saída da crise por meio de uma nova Constituição, que deixe definitivamente para trás as heranças pinochetistas, está em mãos de políticos que quase ninguém os respalda. Cerca de 98% dos chilenos desconfiam dos partidos, 97% do Congresso e 95% desacreditam o governo. A política convencional ficou nas mãos de uma minúscula minoria que quase ninguém apoia.
Apesar disso, os partidos políticos que sustentam o governo seguem insistindo em que uma das saídas pode ser uma convenção constitucional “mista”, com 50% de parlamentares. Não entendem que os congressistas contam com apenas 3% de confiança. O sentido comum demandaria centrar-se em outra opção, uma convenção com constituintes especificamente eleitos para esta tarefa e sobretudo provenientes de movimentos sociais. De todos os modos, estes políticos convencionais já estão entorpecendo ou bloqueando a postulação de candidatos independentes. Fazem isso de vários modos, como ao exigir os mecanismos que usam os partidos políticos; ignoram a paridade de gênero; impedem que exista representação específica dos povos originários e até bloqueiam o acesso à televisão.
Ao mesmo tempo, Sebastián Piñera, que de alguma maneira segue coordenando ações para sair do atoleiro, chegou ao mais baixo nível de apoio público a um presidente: só 6% dos chilenos o respaldam. Isso é menos que Dilma no Brasil quando de sua destituição (7%); menos que Fernando de la Rua na Argentina em 2001 (8%), que até fugiu de helicóptero da Casa Rosada. Dito de outra maneira, quase todos os chilenos desconfiam ou acham incapaz a pessoa que deveria mostrar os caminhos de saída da crise.
Nem sequer os partidos políticos da oposição parecem entender esta problemática, já que repetem posturas que seguem afastando-os das demandas da cidadania. Por exemplo, para enfrentar o protesto nas ruas, os parlamentares da coalizão de governo estão aprovando uma lei “antissaques” com duras penas. Na lei, ações como a interrupção da livre circulação de pessoas ou veículos mediante violência ou intimidação ou instalação de barricadas podem ser condenadas de 61 dias a quase um ano e meio de prisão; os que jogam objetos cortantes ou contundentes (como uma pedra) podem ser encarcerados por até três anos (2). É uma norma duríssima, que criminaliza o protesto, mas que mesmo assim recebeu votos de parlamentares opositores, inclusive aqueles que se consideram de esquerda no Chile, como o PPD (Partido Pela Democracia) de Ricardo Lagos ou legisladores do Partido Socialista (PS).
Isso permite entender que o descrédito não afeta unicamente o presidente, mas todos os demais atores de todo o espectro ideológico. Segundo a pesquisa do CEP, as avaliações negativas superam largamente as positivas em líderes da direita, como Jacqueline van Rysselberghe da UDI (União Democrática Independente): 74% de imagem negativa ou muito negativa, e 6% positiva, o que a coloca como a pior avaliada, abaixo até de Piñera.
Mas a oposição política também é castigada pela opinião pública. Por exemplo, Camila Vallejo, deputada pelo Partido Comunista, tem 61% de imagem negativa. Os líderes mais jovens que deram a ilusão de uma renovação a partir da esquerda ao saírem do movimento estudantil sofrem o mesmo padecimento: Gabriel Boric tem 46% de imagem negativa e só 19% positiva; Giorgio Jackson, líder da Renovação Democrática e um dos promotores da Frente Ampla (FA), tem 49% negativo e 19% favorável.
Para além dos limites de pesquisas como esta, e a qualidade de tais indicadores, o que parece evidente é que as maiorias cidadãs não só não se sentem refletidas nos discursos e ações políticas, mas desconfiam cada vez mais delas. O problema é muito mais agudo para as esquerdas, já que se esperaria uma sintonia melhor com as demandas das ruas.
De fato, essa viragem à esquerda ocorrida em vários países vizinhos em inícios dos anos 2000 foi o resultado de severas crises em governos conservadores ou neoliberais, e incluíram explosões sociais em alguns casos. Nestes países as esquerdas escutaram, aprenderam, aproveitaram e lideraram processos e por isso venceram eleições. É certo que uma vez alcançado o governo tais grupos partidários transitaram desde aquela esquerda combativa ao que chamamos de progressismo, como no Equador, com a Aliança País e Rafael Correa, ou na Bolívia, com o Movimento ao Socialismo e Evo Morales. Mas este progressismo se conformou como resultado de um largo processo que teve lugar enquanto estava no governo, alimentado entre outras coisas por repetidas concessões ao economicismo convencional ou à linha extrativista de desenvolvimento.
Ao contrário desta evolução, pareceria que a esquerda chilena muda rapidamente ao progressismo, sem ter ganhado o governo e ainda na oposição. Isso não é exagerado e basta repassar a recente carta de renúncia de 70 militantes do PS, que claramente sustentam que seu partido “vive hoje a "deslegitimação social mais profunda de sua história”, por uma liderança que nunca assumiu a vontade da militância em favor de um “programa antineoliberal e crítico ao capitalismo”, e que se afastou dos movimentos sociais, para se somar a um “polo socialdemocrata conservador”. A carta é lapidar: “O Chile despertou, mas o PS segue na letargia” (3).
Queixas semelhantes se escutam de importantes líderes que atuavam dentro da Frente Ampla. O prefeito de Valparaíso, Jorge Sharp, expressa a raiz dos problemas: “não entendo como a FA prefere dialogar com estes setores autoritários da direita e não com movimentos sociais”, e agrega que a derrota deste autoritarismo não se fará com a direita, mas “trabalhando e construindo com o povo” (4). Sharp saiu em novembro passado da Convergência Nacional, um dos grupos da FA, quando seu líder, Gabriel Boric, se somou ao programa de governo para uma nova Constituição.
Os analistas econômicos mais próximos dos partidos e mais afastados dos movimentos sociais nem sempre parecem interessados nestes paradoxos, e seguem apostando na classe política convencional. Por exemplo, o sociólogo e consultor Eugenio Tironi estima que para o baixíssimo respaldo a Piñera a alternativa é “cogovernar” com o parlamento e na medida do possível com os municípios, no que chama de “semipresidencialismo de fato” (5). Mas isso leva a perguntamos se Tironi, como muitos outros acadêmicos, realmente entendem o que a altíssima desconfiança popular significa, já que sua receita é persistir com aqueles que governam entre 95% e 97% de rejeição.
Não há novidade substancial. Por isso não pode surpreender que bajule Piñera, afirmando que “demonstrou o tipo de flexibilidade que se adquire no mundo dos negócios e isso é meritório para governar nos tempos atuais”. Nesta afirmação se revela, como em outros analistas, que seguem apostando em uma estratégia de governo como se fosse um gerenciamento empresarial; não é o país que está em crise, mas a “companhia” e basta um bom “gerente” para lidar com isso. Não haveria uma crise profunda nos modos de conceber e praticar a política como discussão pública, mas apenas má gestão.
No entanto, é mais apropriado aceitar que a explosão social de outubro de 2019 resulta de tensões e contradições muito mais complexas e profundas do que um simples gerenciamento. Neste sentido, está melhor encaminhada Kathya Araujo, ao alertar sobre um “efeito de fissão” onde se rompem as adesões às normas e instituições da vida em comum, prevalecendo a “desconfiança, a impotência, a resignação ou, em sua versão mais preocupante, a rejeição radical” (6).
Não estamos diante da queda do respaldo ou popularidade de algumas figuras políticas ou de um partido, mas de uma derrubada geral da confiança em todos os políticos e todas as suas organizações. A gravidade é alarmante, mas parece que muitos ainda não entendem. As tensões que estão no ar são brutais.
É certo que a rejeição aos modos convencionais da política permitem nutrir exigências de mudanças profundas, como pode ser uma nova Constituição, terminar com a mercantilização da seguridade social ou da medicina, recuperar o controle sobre a água, levar a sério a plurinacionalidade, e assim sucessivamente. A reação contra a política clássica permitiu romper com mitos arraigados, retomar debates adiados, alimentar o ativismo e criar uma abertura a alternativas de mudança que pareciam impensáveis até uns meses atrás.
Mas a rejeição pode ser tão extrema e sustentada que deteriora as opções de construções políticas alternativas, justamente quando mais se precisa delas. O projeto de conseguir uma nova Constituição para ser vitorioso requer uma composição do tecido político, uma volta da confiança. Isso não será simples já que, ainda que amplos setores da cidadania tenham “acordado”, os políticos convencionais e os gerentes seguem atuando para silenciá-los.
É necessária a abertura à pluralidade dos movimentos e no lugar de criminalizá-los, calá-los ou imobilizá-los, tornar urgente escutá-los, respeitá-los e cortejá-los, já que é com eles que se poderá reconstruir a confiança com a política. Ao mesmo tempo, estes movimentos também devem assumir desafios: está se aproximando o momento em que devem se organizar, se coordenar e se representar, para que suas vozes se escutem; deverão criar uma política sob sua medida para que suas demandas por mudança se realizem.
Leia também:
“Só a história dirá se o Chile vive um processo revolucionário; agora, aprovar a Constituinte é um grande avanço”
Notas:
1. Estudio Nacional de Opinión Pública N° 84, Diciembre 2019, Centro de Estudios Públicos, en: https://www.cepchile.cl
2. Senado aprueba “ley antisaqueos” con división opositora, F. Cáceres, La Tercera, 13 enero 2020, https://www.latercera.com/politica/noticia/senado-aprueba-ley-antisaqueos-division-opositora/972665
3. Siguen las renuncias en el PS: 70 militantes dejan el partido con críticas a la directiva de Elizalde, El Mostrador, 16 enero 2020, https://www.elmostrador.cl/dia/2020/01/16/siguen-las-renuncias-en-el-ps-70-militantes-dejan-el-partido-con-criticas-a-la-directiva-de-elizalde
4. Jorge Sharp: “Tenemos que ver cómo aprovechamos el proceso constituyente para ir por todo”, entrevista de F. Cáceres, La Tercera, 18 enero 2020, https://www.latercera.com/politica/noticia/jorge-sharp-alcalde-valparaiso-tenemos-ver-aprovechamos-proceso-constituyente-ir/978600
5. Eugenio Tironi: “Piñera ha demostrado una capacidad de dominar su propio ego que era bastante inimaginada”, entrevista de F. Artaza, La Tercera, Santiago, 19 enero, https://www.latercera.com/la-tercera-domingo/noticia/eugenio-tironi-pinera-ha-demostrado-una-capacidad-dominar-propio-ego-bastante-inimaginada/978621
6. Katya Araujo, "Desmesura, decepción y desapego", Santiago No 8, Universidad Diego Portales, diciembre 2019.
Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.