Correio da Cidadania

Direitos da natureza e biocentrismo são as chaves para conter colapso climático

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Eduardo Gudynas à frente de mural na sede da |Fundação de Estudos do Sindicato dos Petroleiros de Bogotá | Arquivo

O fim da edição deste ano da Cúpula do Clima, realizada em Dubai, consagra um impasse histórico para a humanidade: ao mesmo tempo em que parece consolidada a noção de que as mudanças do clima estão em um estágio dramaticamente avançado, não se consegue estabelecer acordos gerais em torno de medidas de mitigação e reorientação dos modelos de desenvolvimento econômico.

Para além da força dos lobbies capitalistas, que se fizeram presentes como nunca nesta Cúpula do Clima, um dos problemas centrais da estagnação aqui descrita passa pela insuficiência dos conceitos dominantes de sustentabilidade e preservação da natureza. É isso que afirma Eduardo Gudynas, pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social e autor do livro “Direitos da Natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais”, nesta entrevista ao Correio, na qual defende novos métodos de valoração da natureza e suas riquezas, dentro do que denomina “biocentrismo”.

“A ideia refere-se ao reconhecimento de valores que são próprios, inerentes à Natureza. A postura predominante é que o que nos cerca são objetos, pois apenas os humanos podem atribuir valores. Isso faz com que prevaleçam posturas utilitaristas, avaliando o ambiente com base em valores econômicos, utilidades para a economia etc. A floresta tem um valor, por exemplo, devido aos minerais sob o solo, pela venda de madeira ou pela pecuária que poderia sustentar, mas a vegetação original, as árvores e a fauna não têm valor. Esta é a postura antropocêntrica. O biocentrismo vai além do antropocentrismo. Reconhece múltiplas valorações no que nos rodeia, que podem ser estéticas, históricas, religiosas e mais. Mas vai além, compreende que a Natureza, os seres vivos, têm valor em si mesmos, independentemente de existir uma pessoa para determinar sua utilidade”, explicou Gudynas.

Uruguaio, Gudynas é colunista deste Correio desde 2008 e pesquisa ecologia e sustentabilidade há mais de 30 anos, tendo sido o primeiro latino-americano a receber a cátedra Arne Naess da Universidade de Oslo, Noruega. Arne Naess é o precursor do conceito de biocentrismo, a partir da denominação “Ecologia profunda” que criou. A ideia, como explica Gudynas em sua obra, aprofunda as ideias originárias de ambientalismo e ecologismo, elaboradas em subordinação ao desenvolvimentismo capitalista e suas lógicas de produtividade e acumulação.

“Do meu ponto de vista, toda a evidência disponível indica que, se não houver uma mudança nos modos de valorar, sentir e agir em relação ao ambiente, os processos que explicam as crises atuais persistirão. Todas as tentativas de reformas e ajustes nas ideias de desenvolvimento, seja sob as posturas ideológicas da direita ou do progressismo, falharam em suas ações concretas e não oferecem inovações teóricas. Vimos isso na América Latina nos últimos 23 anos”, explicou.

De quebra, ainda adverte que a adaptação dos projetos ditos progressistas a tal lógica capitalista pouco tem servido para evitar o avanço de alternativas políticas conservadoras e até negacionistas em relação ao colapso climático e aquecimento global. E, diante do cenário observado na COP-28, com investimento inédito de forças do capital na promoção de seus interesses, a hora de uma ruptura teórica com os atuais dogmas desenvolvimentistas parece ter chegado.

“A COP em Dubai também foi a que recebeu o maior número de delegados empresariais em toda a história dessas negociações. Eles somaram mais de 2400 delegados, o grupo mais numeroso depois das delegações do país anfitrião e do Brasil, e muito mais do que a soma dos 1509 enviados dos dez países mais vulneráveis às mudanças climáticas. Isso não havia ocorrido de maneira tão clara no passado. As empresas de petróleo e mineração agiam por meio de lobby ou de suas relações com os governos. Mas agora passaram para o primeiro plano”, observou.

A entrevista completa com Eduardo Gudynas pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisa a última cúpula do clima, a COP 28, recém-realizada em Dubai? Há algo a se aproveitar deste encontro?

Eduardo Gudynas: Em Dubai, eventos conhecidos foram repetidos, mas também houve novidades, embora na minha análise sejam diferentes das indicadas por muitos analistas. Lembramos que esse encontro faz parte das negociações da Convenção sobre Mudança do Clima, acordada no Rio de Janeiro em 1992. Seu objetivo é evitar a emissão de gases de efeito estufa para deter o aumento da temperatura média do planeta.

O balanço de três décadas de negociações é que não se consegue impedir o efeito estufa. A recente cúpula repetiu a incapacidade de impor ações e compromissos necessários para alcançar esse objetivo. As emissões continuam aumentando e em 2023 tiveram um forte impulso, especialmente por parte da China. Espera-se que 2024 apresente novos recordes de aumento de temperatura em todas as regiões. Eventos climáticos extremos já são evidentes; o Brasil sofreu tanto com uma seca histórica na região amazônica quanto com inundações no sul.

Para evitar a mudança climática, são necessárias medidas drásticas de rápida redução na extração e queima de combustíveis fósseis, alcançando balanços de emissões líquidas zero de carbono, bem como medidas enérgicas para conter as emissões de metano, tanto no setor de hidrocarbonetos quanto na redução das provenientes do desmatamento ou agricultura. Nada disso foi acordado em Dubai.

Assim, na minha opinião, é exagerado celebrar o documento de Dubai porque, pela primeira vez, foi mencionado que os países devem iniciar uma "transição" para abandonar os "combustíveis fósseis". O acordo dos governos é apenas um propósito, não está associado a medidas concretas nem a um cronograma de ações obrigatórias. Por isso, questiono se aqueles que celebram essas palavras realmente entendem a gravidade da mudança climática e que estamos ficando sem tempo.

No entanto, ao mesmo tempo, Dubai foi diferente das outras cúpulas climáticas. Neste caso, foram muito visíveis os atores que defendem os combustíveis fósseis, que têm o poder econômico e político. Eles saíram do segundo plano para o primeiro, defendendo-se ativamente. Havia neles o temor de que, nesta ou em outra cúpula futura, os governos finalmente impusessem medidas obrigatórias para reduzir os combustíveis fósseis.

Esse medo ficou evidente quando se soube que o secretário da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), Haitham al-Ghais, enviou uma carta a cada um dos governos membros. Ele alertava que qualquer acordo que reduzisse a extração de hidrocarbonetos teria efeitos econômicos muito negativos e instava cada governo a pressionar em Dubai contra qualquer limitação.

Outra jogada foi impor, com sucesso, um executivo do setor petrolífero como presidente da COP. De fato, Ahmed Al Jaber é ministro nos Emirados Árabes Unidos, mas também é presidente da ADNOC, a empresa estatal de petróleo. Sob sua liderança, a corporação tem o maior programa de expansão petrolífera do mundo. Dessa forma, garantiu-se que um CEO do setor petrolífero conduzisse as negociações.

Correio da Cidadania: Esse protagonismo do presidente da COP, além de um número recorde de delegados de grandes empresas do ramo de carvão, óleo e gás, revelam uma agudização das contradições entre o poder político e econômico e a sociedade civil, e até mesmo uma divisão dentre diferentes setores do capital que tentam aderir a metas de redução de emissões?

Eduardo Gudynas: A COP em Dubai também foi a que recebeu o maior número de delegados empresariais em toda a história dessas negociações. Eles somaram mais de 2400 delegados, o grupo mais numeroso depois das delegações do país anfitrião e do Brasil, e muito mais do que a soma dos 1509 enviados dos dez países mais vulneráveis às mudanças climáticas.

Isso não havia ocorrido de maneira tão clara no passado. As empresas de petróleo e mineração agiam por meio de lobby ou de suas relações com os governos. Mas agora passaram para o primeiro plano. O Washington Post, em uma análise reveladora, apontava que Dubai era uma festa.

Não pode escapar de uma análise rigorosa que os atores empresariais e políticos alinhados aos combustíveis fósseis também estão enfrentando outros grupos, também empresariais ou políticos, que estão preocupados com as mudanças climáticas e desejam medidas mais enérgicas. Estes se consideram representantes de um capitalismo mais moderno, entendem que é possível um colapso climático e que isso provocará todo tipo de crises, arrastando seus negócios ou países. Exemplos dessas posições são ouvidos, por exemplo, no Fórum Econômico Mundial em Davos.

Portanto, os defensores do petróleo e do carvão passaram para o primeiro plano para defender seus interesses diante de diferentes grupos. A disputa é, claro, com organizações cidadãs preocupadas com as mudanças climáticas, comitês científicos que elaboram relatórios de alerta ou governos de países diretamente ameaçados, por exemplo, pelo aumento do nível dos oceanos. Mas também há uma batalha em curso entre conglomerados do desenvolvimento capitalista.

Assim, a novidade em Dubai é que essas disputas estão agora se desenrolando diante de nossos olhos. Não ocorrem mais nos bastidores. Mas não devemos nos confundir, porque uma e outra opção político-empresarial não resolvem as raízes das crises ambientais e sociais; uma as acelera, e a outra as retarda à custa de manter privilégios e desigualdades.

Correio da Cidadania: Essa estagnação nos entendimentos das últimas cúpulas, a exemplo do documento final da COP-28, diz o que sobre o atual estágio do capitalismo global e seus padrões de desenvolvimento?

Eduardo Gudynas: O impasse ocorre porque, por enquanto, o equilíbrio dessas disputas faz com que persistam abordagens do desenvolvimento baseadas em fontes de energia fóssil. Os grupos econômicos ligados à energia fóssil fundamentam-se em ideias antigas de desenvolvimento e especulam com o medo gerado por qualquer mudança. Até o momento, não existem lideranças políticas efetivas para interromper esse cenário.

Isso ocorre tanto no norte quanto no sul, incluindo nossa América Latina. Esse problema não deve ser entendido apenas pela tradicional divisão entre países industrializados do norte e subdesenvolvidos do sul. Muitos países do sul, na verdade, poluem tanto quanto os do norte e defendem tanto ou mais os setores de petróleo e carvão. Casos impactantes incluem China e Índia, mas na América Latina destacam-se também Bolívia, Brasil e Argentina, que desejam continuar sendo grandes produtores de hidrocarbonetos.

Muitos governos do sul participam de cúpulas como a de Dubai e repetem discursos nos quais se apresentam como campeões na luta contra as mudanças climáticas, atribuem toda a culpa aos países do norte e, em seguida, solicitam dinheiro para reduzir suas emissões ou mitigar os impactos das mudanças climáticas. No entanto, não mencionam nada sobre suas próprias explorações de petróleo ou carvão, nem sobre suas emissões de metano.

O presidente Lula, em Dubai, fez um discurso enérgico, mas ao mesmo tempo a Petrobras anunciava uma "revitalização" de 102 bilhões de dólares. Não apenas isso, mas também foi revelado que o Brasil se juntará à OPEP-plus, junto com México e Rússia.

Correio da Cidadania: Há algo a se destacar no encontro, talvez nos encontros e debates realizados fora dos espaços oficiais?

Eduardo Gudynas: Como a discussão esteve centrada nos hidrocarbonetos, não foi dada a devida atenção ao fato de que em Dubai foram abordadas com mais detalhes as emissões de gases de efeito estufa provenientes da agricultura e da pecuária. Há uma controvérsia sobre as emissões desses setores, que não são simples de medir e nas quais o metano desempenha um papel significativo. As estimativas mais recentes indicam, por exemplo, que as emissões da pecuária têm sido sistematicamente subestimadas e estariam em torno de 20% do total global.

Isso é crucial para os grandes exportadores agrícolas como Argentina, Brasil e Uruguai. Na COP 28, foi assinada uma declaração sobre agricultura sustentável e sistemas alimentares resilientes, que contou com a assinatura de Argentina, Brasil e Uruguai, juntamente com mais de 150 governos.

Nesse caso, o compromisso também é declarativo. No entanto, é muito importante que se preste mais atenção ao metano e se abordem as emissões de gases de efeito estufa provenientes da agricultura, pecuária e desmatamento, pois esses são os problemas mais graves em quase todos os países latino-americanos.

Correio da Cidadania: Você é autor de livro que fala em Direitos da Natureza e ética biocêntrica. Como relacionar a necessidade de direitos da natureza com a construção de metas factíveis de desenvolvimento sustentável?

Eduardo Gudynas: Do meu ponto de vista, existe uma relação direta. Temos um exemplo destacado para explicar isso: nas recentes eleições nacionais no Equador, também ocorreu uma votação para proteger uma área natural amazônica. Buscava-se evitar a exploração de petróleo nesse local, o Parque Nacional Yasuní, exatamente o que as negociações sobre mudanças climáticas tentam alcançar. No Equador, foi possível realizar essa consulta com base nos direitos da Natureza reconhecidos em sua constituição.

Esse processo foi bastante longo, levou vários anos e enfrentou conflitos com diversos governos, mas, em uma votação em nível nacional, a população decidiu proteger uma área amazônica e abriu mão das promessas de ganhos econômicos com o petróleo. É o exemplo mais significativo de uma estratégia bem-sucedida, de base cidadã, voltada para a despetrolização.

Imaginem uma discussão no Brasil, em nível nacional, onde, na próxima eleição, se vota, por exemplo, suspender a exploração de petróleo em áreas ecológicas significativas, com base nos direitos da Natureza, nos direitos dos povos indígenas e nos compromissos com as mudanças climáticas.

Correio da Cidadania: Em termos gerais, como você resume esses conceitos de direitos da natureza e biocentrismo?

Eduardo Gudynas: Na verdade, o conceito de biocentrismo é fundamental nisso tudo. A ideia refere-se ao reconhecimento de valores que são próprios, inerentes à Natureza.

A postura predominante é que o que nos cerca são objetos, pois apenas os humanos podem atribuir valores. Isso faz com que prevaleçam posturas utilitaristas, avaliando o ambiente com base em valores econômicos, utilidades para a economia, etc. A floresta tem um valor, por exemplo, devido aos minerais sob o solo, pela venda de madeira ou pela pecuária que poderia sustentar, mas a vegetação original, as árvores e a fauna não têm valor. Esta é a postura antropocêntrica.

O biocentrismo vai além do antropocentrismo. Reconhece múltiplas valorações no que nos rodeia, que podem ser estéticas, históricas, religiosas e mais. Mas vai além, compreende que a Natureza, os seres vivos, têm valor em si mesmos, independentemente de existir uma pessoa para determinar sua utilidade.

Nos países andinos, isso era muito claro, já que para muitos povos originários, há elementos ou conjuntos no ambiente que são sujeitos, são "pessoas" à sua maneira, e, portanto, por serem sujeitos, devem ter direitos reconhecidos.

Correio da Cidadania: Como conciliar tais conceitos com a reprodução da vida humana, que de alguma maneira exigirá interações e intervenções na natureza?

Eduardo Gudynas: Os direitos da Natureza não implicam nem impõem um ambiente intocado. Eles não rejeitam a intervenção, a coexistência ou a habitação humana no que nos rodeia. Também não rejeitam a criação de gado ou a agricultura.

Críticas frequentes a esses direitos baseiam-se nessa advertência, mas, na realidade, carecem de fundamento. Os direitos da Natureza indicam que os humanos podem usar, compartilhar, explorar e utilizar o que chamamos de "recursos naturais", mas ao fazê-lo, nunca devem colocar em risco a sobrevivência das espécies ou a integridade dos ecossistemas. Exigem evitar qualquer extinção e demandam a conservação.

Portanto, o que chamamos de recursos naturais pode ser aproveitado, mas dentro desses limites ecológicos, dentro das capacidades do ambiente de se regenerar e sobreviver. Sob essa ideia, haveria, por exemplo, agricultura, mas seria ecológica e orgânica, diversificada, sem agrotóxicos e com controles biológicos, sempre respeitando a biodiversidade nativa.

Correio da Cidadania: Na sua visão, a ética biocêntrica é o único ambientalismo verdadeiramente sustentável? Por que ela supera as concepções anteriores de cuidado e preservação da natureza?

Eduardo Gudynas: Do meu ponto de vista, toda a evidência disponível indica que, se não houver uma mudança nos modos de valorar, sentir e agir em relação ao ambiente, os processos que explicam as crises atuais persistirão. Todas as tentativas de reformas e ajustes nas ideias de desenvolvimento, seja sob as posturas ideológicas da direita ou do progressismo, falharam em suas ações concretas e não oferecem inovações teóricas.

Vimos isso na América Latina nos últimos 23 anos. Diversas estratégias foram testadas, houve alguns avanços por algum tempo, mas eventualmente os problemas que todos conhecemos eclodem, e, além disso, o saldo líquido tem sido um aumento das direitas convencionais e até reacionárias.

Em contrapartida, uma renovação comprometida com a justiça entre as pessoas e com a Natureza, ao ser concebida a partir desse ponto, isto é, a partir da justiça, implica uma perspectiva própria da esquerda. No entanto, se realmente deseja contemplar esse mandato, não terá sucesso se permanecer vinculada ao antropocentrismo, pois essa condição a torna utilitarista. Acabará destruindo a Natureza. Portanto, é necessária uma renovação da esquerda que esteja em sua própria essência, e nisso, os modos de valorar são fundamentais. A política, no fim das contas, continua a depender de como e quem atribui valores, em considerações éticas e morais.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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