Após referendo, governo de Evo Morales segue em disputa
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- Eduardo Gudynas
- 19/08/2008
A Bolívia se encontra em uma crise política na qual o governo de Evo Morales é atacado por líderes regionais e políticos conservadores. A persistência dos enfrentamentos levou Morales a utilizar um novo instrumento: convocou um referendo para que os cidadãos ratificassem ou reprovassem a permanência do presidente, do vice-presidente e dos prefeitos dos departamentos de quase todo o país.
Esse "referendo revogatório" realizou-se no último dia 10 de agosto e seus resultados desembocaram numa situação em que muitos se sentem ganhadores. Evo Morales e seu vice, Álvaro Garcia Linera, obtiveram um contundente respaldo popular, conquistando 67% dos votantes.
A oposição, representada nos prefeitos dos departamentos que se localizam no oriente do país, também teve seus líderes ratificados. Os prefeitos na Bolívia possuem um cargo que de alguma maneira é uma mistura entre um governador e um prefeito no Brasil. Rúben Costas, prefeito do departamento de Santa Cruz e figura mais visível da oposição, conseguiu um apoio de 66% dos votos. Foi seguido por Ernesto Suárez, de Beni (64%), Mario Cossio, de Tarija (58%) e Leopoldo Fernandez, de Pando (56%). Em troca, o prefeito opositor de Cochabamba foi reprovado e também foi revogado o mandato do prefeito de La Paz (proveniente de um partido opositor, mas que agora se apresenta como independente e mais próximo ao governo). Mantiveram-se em seus cargos dois prefeitos próximos ao governo: Mario Virrerira, em Potosí (79%) e Alberto L. Aguilar, em Oruro, com escassos 50,86%.
Os dias que passaram desde então permitem uma análise. Em primeiro lugar, Evo Morales renova sua legitimidade democrática e ganha tempo. O mesmo ocorre com o vice-presidente, Álvaro Garcia Linera. No contexto nacional, isso serve para desarticular as acusações de autoritarismo que a direita lança sobre Morales. Mas também é importante para apaziguar a briga interna na coalizão de governo articulada ao redor do MAS (Movimento ao Socialismo), onde há algumas tensões com o vice Garcia Linera, um destacado intelectual que está por trás de muitas medidas.
Um segundo aspecto é que os principais líderes da oposição no oriente também foram ratificados nos seus cargos e, consequentemente, suas demandas se viram igualmente legitimadas. Morales não pode afirmar que se encontra diante de uma minoria.
Portanto, esse referendo não conseguiu destravar o que o vice Garcia Linera chamou de "empate catastrófico". É um enfrentamento que se desenvolve em vários planos, onde a maior parte dos atores políticos desconfia uns dos outros. Mesmo assim, as análises simplistas, de setores conservadores ou de alguns grupos de esquerda, quando se restringem a uma só dimensão, como numa oposição entre "indígenas" e "brancos", entre centralistas e autônomos, movimentos populares versus oligarquia e empresários, caem em um reducionismo que não é útil para entender a situação boliviana.
A atual disputa mistura muitas questões, desde tentativas de construção de um novo Estado e a demanda de autonomia frente ao centralismo de La Paz até invocações por uma nova identidade política indígena e um ativismo enérgico dos movimentos sociais contra um programa político-econômico conservador encarnado nos líderes de Santa Cruz, e assim por diante. O próprio debate sobre o referendo acentuou brigas que ficam amarradas ao racismo, em que uns denunciam os "q’aras" (termo aymara para se referir de forma pejorativa aos brancos) e outros atacam os "collas" (palavra genérica usada para se referir aos habitantes do altiplano andino).
O enfrentamento também tem um forte componente econômico devido à luta pelo domínio dos fundos gerados pelos hidrocarbonetos. Essas enormes quantias de dinheiro estão agora sob controle do governo central, enquanto os governos departamentais exigem recuperar sua co-participação (que no passado usavam num aparato clientelista). Entretanto, o governo central, apesar de contar com uma boa sustentação econômica, não consegue estruturar planos de envergadura (um claro exemplo é a persistência de problemas em moradia, estradas e serviços).
Morales conseguiu aumentar a proporção de votantes em comparação à eleição de 2005 em todos os departamentos, exceto Chuquisaca (onde não se realizou a consulta sobre o prefeito). Inclusive, alcançou melhoras nos departamentos opositores do Oriente: por exemplo, em Santa Cruz, passou de 33% dos votos em 2005 para 40% no referendo de 2008. Porém, o mesmo aconteceu com os quatro principais líderes de departamentos opositores. Todos eles aumentaram sua votação em relação a três anos atrás. Essas cifras mostram que existem muitos "collas" que agora vivem no oriente e que não votaram em Evo Morales, assim como há muitos "q’aras" que apóiam militantemente o MAS.
Alguns analistas advertem que o voto de apoio a Morales não necessariamente significa uma aprovação total ao governo, mas sim algo inevitável diante de um mal maior representado pelas posturas do oriente, enquanto para outros há dúvidas e queixas a respeito do funcionamento do aparato estatal e do rumo ideológico do MAS. Misturam-se, portanto, aqueles que denunciam os persistentes problemas de gestão e eficiência nas agências governamentais, as reclamações da esquerda radical que considera o governo moderado demais e um certo desencanto de diversos intelectuais e militantes chaves com o rumo dos temas públicos.
No campo opositor, o discurso político, especialmente o de Rúben Costas, de Santa Cruz, não só é dogmático como também primitivo. Chegou a qualificar Morales como "assassino" e "tirano". Insiste, além do mais, em proteger os privilégios dos grandes empresários e proprietários de terra e concretamente rejeita mecanismos de redistribuição dos benefícios da exploração dos recursos naturais. Dessa forma, cai-se facilmente em protestos de todo tipo e o país fica paralisado variadas vezes. Situações dramáticas foram vividas, nas quais o presidente Morales não pôde visitar alguns departamentos do oriente por conta de grupos de cidadãos que tomaram de assalto o aeroporto local para evitar que seu avião aterrissasse.
Esse "empate" se nutre tanto da desconfiança como de uma crescente divisão sobre como se entende o próprio país, a política e até mesmo os atores sociais. Os departamentos do oriente apelam para golpes de força e o governo central não consegue articular com tranqüilidade a sua gestão. O fôlego do referendo durou poucos dias e os chamados ao diálogo naufragaram rapidamente. Apesar da vitória de Morales, Santa Cruz desencadeou um novo golpe de efeito, agora solicitando o controle departamental da polícia, promovendo mais conflitos. O empate se mantém e o futuro do governo de Evo Morales segue em disputa.
Eduardo Gudynas é analista de informação no D3E (Desenvolvimento, Economia, Ecologia e Eqüidade), centro de investigações dos assuntos latino-americanos sediado em Montevidéu.
Traduzido por Gabriel Brito.
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