Correio da Cidadania

José Lins do Rego e a paixão pelo Flamengo

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José Lins do Rego chegou a presidir o Flamengo

O intelectual, a racionalidade e a cegueira da paixão

Procurei várias formas para definir José Lins do Rego e seus laços com o futebol e mesmo com o esporte em geral. Talvez eu quisesse ainda afirmar que Zé Lins, apesar de ser de família rica, adorava o cheiro, a linguagem, as manias, o misticismo do povo brasileiro e as loucuras deste povo dentro de um estádio lotado. Com a camisa do Flamengo ele saía de si, tornava-se possuído por uma energia ludibriante no enfrentamento com seus inimigos de plantão, tanto nos clássicos cariocas, nacionais e mesmo internacionais.

José Lins nasceu em 1901, na cidade de Pilar, Paraíba, e como muitos outros intelectuais, buscou no Recife sua meia estação, para só mais tarde voltar seus olhos e desejos para o Rio de Janeiro, o centro intelectual do país.

Cursou direito em Pernambuco, mas vivia preso às suas origens rurais do engenho do corredor, do qual seu avô era proprietário. Em 1932 lançou seu primeiro romance, “O menino do engenho”, depois vieram outras obras como: “Doidinho (1933) e Benguê (1934). Já famoso nos meios literários, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1935, após aceitar o emprego de fiscal do consumo da cidade maravilhosa, onde chegou à Academia Brasileira de Letras em 1955, falecendo em 1957.

Zé Lins, na linguagem popular, talvez e somente talvez, possuía uma inteligência visual, capaz de olhar ao seu redor e transcrever de uma forma única aquilo que estava na sua frente. Foi assim que fez obras magníficas, observando o engenho e seu entorno, captando as mensagens, os detalhes e as emoções, o cheiro do mato e as possibilidades daquele povo. Quando conhece o Rio de Janeiro, transita da temática regional para o meio urbano e mesmo que seu coração não estivesse preparado, como ele mesmo confessou, deu de cara com a sua maior paixão: o Flamengo, e o futebol.

De uma forma ou de outra, fez o mesmo caminho que Mario Filho, dono então do Jornal dos Sports. Foi Mario Fillho quem convidou José Lins a envolver-se novamente com a crônica esportiva e ele voltou, morto de saudades, fazendo o que sabia, escrever e descrever de maneira apaixonada.

Foi sem dúvida a figura intelectual brasileira mais exemplar para estabelecer a união, a ponte, entre a literatura brasileira e o futebol. Vários intelectuais fizeram este caminho. Na poesia, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Lima Barreto, Alcântara Machado, Orígenes Lessa, Rubem Fonseca. No romance havia Monteiro Lobato, Gilberto Amado, Thomas Mazzoni e outros tantos. Mas ninguém viveu apaixonadamente o futebol como José Lins do Rego. Ninguém escreveu mais e melhor do que ele.

A força de seus argumentos tem a energia do contato direto com o povo, lado a lado nas arquibancadas com negros e pobres desdentados, desempregados, favelados, felizes com o seu Flamengo ou eternamente tristes com as derrotas. Por isso escreveu assim: “Vou ao futebol e sofro como um diabo”. Esta frase caracteriza toda a brasilidade que o anima, que o impulsiona, que o faz feliz. Uma síntese admirável de sua simbiose com o povo e futebol. Sofrer por um amor eterno, algo que não tem comparação e nem mesmo o direito à separação, pois ele não conseguiria.

A escolha do coração e dos olhos de Zé Lins pelo Flamengo é a escolha pelo time mais popular e, neste sentido, pelo popular, pelo povo pobre e sofrido. Para ele, o futebol era em certa medida uma válvula inconsciente de fuga das tristezas diárias. Dizia ele que quando as tristezas nos apertam, lá vem o Flamengo, com sua torcida, bandeiras, charanga, seus gritos, sua força descomunal.

Obviamente, o Flamengo não enche a barriga, mas inunda a alma do morro e de milhões fazendo os olhos reluzirem, tal como o amor. José Lins podia ser uma fanático flamenguista, mas não era cego, pois em várias crônicas reconhecia o potencial de equipes “inimigas” como o Vasco da Gama, e ao ver com olhos críticos faz pontes com a literatura, como quando em crônica, no dia 27 de novembro de 1952, noticia que Rachel de Queiroz e seu mestre Gilberto Freyre receberam títulos honorários do Vasco da Gama.

Quanto a Rachel de Queiroz, salienta que ela é um manancial de vida, romancista que arranca das pedras e das caatingas do Ceará, tipos humanos que abafam, pela realidade pungente, a dor da sua existência. Já Gilberto Freyre foi o criador de uma forma literária, um gênio que deu aos estudos sociológicos uma importância mundial.

Ao falar sobre suas crônicas esportivas, afirma de maneira clara que procura ser imparcial, o máximo possível, mas acontece que de vez em quando inclina-se um pouco para o Flamengo que é seu time e assim, desmedidamente aponta, desolado: “não sei como que isso acontece”. Quando se trata de falar sobre as emoções e o futebol, faz uma saudação aos adversários que perderam do seu Flamengo, e salienta a necessidade de chorar: “o pranto é livre”. E o faz com a grandeza de sua literatura.             

“Chorar, choram os judeus, no muro das lamentações, há dois mil anos, e as lágrimas compridas dos filhos de Jeovah nunca secaram em seus olhos. E nem pelo choro foram queimadas, podem chorar e fazem muito bem, porque o choro alivia as dores, todas as dores, as da cabeça e as dores do cotovelo” ... “Que chorem e chorem muito, que as lágrimas rolem como no samba, que as lágrimas desçam da face abaixo, como torrente... Chorem muito, chorem demais, chorem como um bezerro desmamado, mas chorem, meus amigos, que o pranto é livre”.

Em certa passagem de sua vida Zé Lins recebeu em sua casa Graciliano Ramos, recém-saído da prisão, onde escreveu um livro que era a continuação de “Memórias do Cárcere”. Ficou com ele uma temporada. Graciliano não entendia essa paixão de José Lins, que fazia de Leônidas um ídolo maior do que Dostoievski. Era o fim. Ele lembra que Zé Lins trabalhava em seus escritos dia após dia, diligente, mas ao final da tarde saía, religiosamente.

Então Graciliano, curioso, lhe pergunta: aonde você vai? Vou assistir ao treino do Flamengo. Graciliano conta que Zé Lins tinha o Flamengo como o time do povo enquanto o Fluminense era o time pó de arroz, dos ricos das Laranjeiras.

Em excursão pela Europa com o Flamengo, Zé Lins escreve: “chego da Suécia convencido de que o futebol é hoje um produto tão valioso quanto o café para nossas exportações. Vi o nome do Brasil aclamado em cidades longínquas do norte, vi em Paris aplausos aos brasileiros com o mais vivo entusiasmo. Disse-me o meu querido Ouro Preto: Só Santos Dumont foi tão falado pela imprensa desta terra, sempre distante de tudo que é europeu, quanto os rapazes do Flamengo”.

Também escreveu páginas e páginas acerca de Leônidas e de sua criação, a bicicleta, bem como se derretia em amores e admiração pelo zagueiro Domingos da Guia, salientando que sua delicadeza transformava-o no “Goethe do futebol”. Já sobre os intelectuais e ricos que torciam o nariz para o futebol, dizia: “para essa gente, tudo isto não passa de uma degradação. No entanto há uma grandeza no futebol que escapa aos requintados”.

Zé Lins ficava com a alma em festa na presença do futebol, tinha orgulho de ver o Brasil grande, pelo menos nos campos, nas chuteiras, nos negros sendo endeusados como mágicos e heróis. Assim como os espanhóis agarravam-se as touradas e isto explicava a sua alma, ele acreditava que o futebol brasileiro explicava a nossa alma. O desejo da vitória, a natureza humana em jogo.

Ao contrário de Descartes, não dividia o jogo e o jogador em mente sã em corpo são, um erro histórico fantástico além de catastrófico para nossa inteligência emocional. Dizia que em meio à ferocidade da torcida, aos berros, gritos, desejos e lágrimas, os jogadores do Flamengo estavam na verdade “usando a cabeça, o cérebro e a inteligência e, para que eles vençam, se faz necessário um domínio completo de todos os impulsos”.

José Lins amava o Flamengo e o futebol e certa vez lamentou-se por não ter descoberto há mais tempo essa obsessão. Uma paixão que começou em 1938, ouvindo pelas ondas do rádio, as jogadas de Leônidas na Copa da França. O Brasil não ganhou, mas Leônidas foi o artilheiro da Copa e assombrou o mundo. É aí, através da paixão e admiração por Leônidas, que surge um flamenguista fanático. Em 1939, torna-se sócio contribuinte do Flamengo e depois chega a dirigente do clube, na condição de secretário geral. Mas não foi José Lins do rego um cartola como hoje vemos, aquele que se serve do clube. Pelo contrário, José Lins serviu ao Flamengo.

A ascensão de José Lins como dirigente possui os dedos delicados de Carlos Drummond de Andrade, o poeta. Drummond era chefe de gabinete do Ministro da Educação, Gustavo Capanema, e assim José Lins vai integrar o Conselho Nacional de Desporto, o CND, chefiando a delegação Brasileira no Campeonato Sul-Americano de 1953, em Lima, Peru. Faz-se secretário da Confederação Brasileira de Desportes e depois se torna o presidente interino na ausência de Marco Polo.

Ao eleger-se para Academia Brasileira de Letras José Lins teve o jantar de posse oferecido pelo Flamengo, na sede do Clube, com direito a violinos e champanhe francesa, e quando faleceu, em 12 de setembro de 1957, tornou-se imortal na galeria da memória rubro-negra, com a bandeira do clube sobre seu corpo, o que ele mesmo chamava de manto sagrado.

Assim destacou a sua passagem pelo Flamengo e pelo futebol: “tenho o Flamengo no sangue e desde que me chamem para seu serviço, não sou mais que um escravo. Admirável paixão que nos arrasta aos entusiasmos mais extremos e a tristezas profundas, mas paixão que nos ajuda a viver, que nos congrega em torcidas que não temem a chuva e o sol, que se propõe aos nossos interesses particulares, para ser um /flamengo, um simples homem de arquibancada disposto a tudo. Sou grato ao Flamengo e por ele darei tudo que puder”.

José Lins do Rego poderia ter sido deputado, senador ou exercer qualquer cargo na política, pois a nação rubro-negra o carregaria nas costas, mas preferiu ser simplesmente flamenguista, devoto de uma paixão cega, viver na arquibancada ou nos vestiários, ou mesmo observando seus ídolos nos treinos e sofrendo por uma amor irretocável. Escreveu um livro considerado a referência histórica da literatura esportiva: “A nação rubro-negra” (1990, Fundação Nestlé).

Todo este amor pelo Flamengo foi retratado no livro de Edilberto Coutinho escrito em 1982, com o nome singelo de “Zelins - Flamengo até morrer”. Nesse trabalho, Edilberto retrata as mais de mil crônicas de José Lins do Rego, de 1946 a 1957, na histórica coluna, “Esporte e Vida”, publicada no Jornal dos Sports de Mario Filho, Rio de Janeiro.


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Nilso Ouriques é professor de educação física.

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