Correio da Cidadania

2023: O ano em que o colapso bateu à porta de um mundo dividido entre dois projetos inviáveis de sociedade

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Imagem em IA gerada pelo aplicativo Craiyon, a partir da junção das palavras colapso climático e fascismo

O Brasil chega ao fim do primeiro ano de governo Lula respirando ares de normalidade. O problema é que o mundo ao redor, literalmente, derrete. O novo normal é um cenário interno e externo caótico, marcado por crises locais, globais, econômicas e, sobretudo, ambientais. Chegamos ao limiar de pontos de inflexão na história e, como em outros momentos chaves, não está claro o que sairá deste processo e quem liderará uma possível nova ordem. Os impasses e fracassos da COP-28 recém-realizada em Dubai são o melhor retrato de um mundo polarizado por projetos de globalização insuficientes para oferecer uma alternativa segura à humanidade.

Dentro dos distintos países e continentes, governos se revezam em processos políticos internos com vínculos internacionais cada vez mais influentes, sem que o imenso mal-estar social de uma crise geral do capitalismo que já soma 15 anos dê sinais mínimos de refluxo. Pelo contrário, as contradições e conflitividades não param de se acentuar e, com a emergência incontornável do colapso climático, dão indícios de que podem chegar a níveis que a humanidade nunca cogitou administrar. Esta é a complexa e intrincada reflexão que o cientista político José Correia Leite faz, nesta entrevista que encabeça a edição Retrospectiva do Correio da Cidadania.

“As pessoas pensam os impactos das mudanças climáticas separados das questões sociais, econômicas e geopolíticas. Mas pensemos que os 2 milhões de imigrantes que saíram da Síria pela guerra civil iniciada em 2011/12 (que tinha um componente ambiental) já foram um detonador de todo o processo político que hoje debatemos. Temos 7 milhões de pessoas que saíram da Venezuela, 10 milhões da Ucrânia. Em Gaza, temos 20 mil mortos sobre uma população de 2,5 milhões de habitantes. Temos hoje mais de 100 milhões de refugiados, muitos em seus próprios países. O que vai ser o cenário político no mundo com 200 milhões de refugiados, como teremos nas próximas décadas? Isso interage com as guerras civis e de conquista, com fronteiras fechadas, com o crescimento do racismo e da xenofobia. O que acontecerá se a continuidade do aquecimento global produzir 300, 400 milhões de refugiados? A multiplicação de Estados nacionais falidos vai criar um caos sistêmico, abarcando inclusive países com armas nucleares, como o Paquistão. Qual a proposta da esquerda para isso?”, indagou.

Na longa conversa, José Correia Leite, também mestre e doutor em sociologia e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP, analisa o contexto brasileiro em meio a este cenário tão desafiante. Em sua visão, Lula faz um governo do possível, o que o consagra como aquele que de fato é o político mais capaz de manter alguma coesão política, institucional e social no país, apesar de todos os desgastes pelo qual o petismo passou nos últimos anos. O problema é que os horizontes não param de se rebaixar, dentro e fora do país, em função da manutenção de uma racionalidade neoliberal na condução dos sistemas. O “possível” de hoje é absolutamente inviável para o amanhã.

“Lula quer gerir a economia do modo como está montada hoje, ampliar o crescimento e reforçar a base social de apoio à esquerda, daqueles que votam contra a direita por vários motivos. Nisso, não vejo Lula em uma situação catastrófica, embora ele esteja pagando um pedágio cada vez mais caro para o centrão. Não é um crescimento como na época do boom das commodities, pois o capitalismo contemporâneo não permite aquele nível de crescimento. Nós vivemos um horizonte de expectativas decrescentes, mas a economia está melhor do que no período Bolsonaro, inclusive porque o período anterior foi o da crise pandêmica. Há espaço para o Lula trabalhar por sua reeleição, embora não exista nenhuma figura minimamente progressista na cena política nacional que possa substituí-lo. Mas ainda há riscos de a extrema-direita retornar, particularmente com figuras um pouco mais flexíveis, sem os traços caricatos de Bolsonaro. Isso se dá inclusive pelo espaço que Lula abre para o conservadorismo social (no imaginário do boi, da Bíblia e da bala, por exemplo)”, sintetiza.

Ou seja, está tudo bem, mas não está. As tragédias de todo tipo seguem à volta da esquina, e a questão climática não nos permite dissimular. No meio disso, o Brasil e a América do Sul ainda têm para onde correr. Mas não haverá condições de se sustentar a legitimidade das democracias por muito mais tempo se os setores mais retrógrados e reacionários do Brasil e seus vizinhos seguirem a dar as cartas, em especial no modelo econômico. Imaginar um novo mundo é a grande tarefa do nosso tempo, para além de qualquer governabilidade permitida.

“Precisamos pensar um projeto de sociedade para o Brasil que tome como ponto de partida a população e a natureza, não os interesses do capital. Esse é o ponto de partida, nós precisamos que as pessoas comam, tenham acesso à educação, à saúde, que a riqueza da produção da vida em nosso continente possa ser um elemento de bem-estar e não de miséria. Aproveito aqui para recuperar a fórmula do Alberto Acosta: a maldição da abundância. A riqueza natural de nosso continente tem sido fonte de miséria do povo, de constituição de zonas de sacrifício. O que vemos em Maceió, Mariana, Belo Monte, nos territórios yanomami?”

Na concepção de Correia Leite, não há mais espaço para projetos econômicos baseados na ideia de “ganha-ganha”. Estamos em fase onde a polaridade se restringe a visões de dois capitalismos: de um lado, elites que tentam reposicionar a globalização em termos mais comprometidos com a preservação ambiental, mas sob uma capa de “colonialismo verde”, e sua contraparte também capitalista, que tenta manter intacto o modelo de predação de recursos naturais, em comunhão com processos políticos de retorno a velhos nacionalismos. Numa segunda camada, diversos atores de menor peso começam a vislumbrar saídas militares para seus projetos e crises internas. Para a humanidade, um beco sem saída. Para aqueles que querem mudar o mundo, uma oportunidade de oferecer caminhos de ruptura real.

“Devemos aproveitar o cenário político atual do Brasil para relançarmos um horizonte de futuro alternativo à polarização entre o capitalismo liberal/neoliberal e os capitalismos nacionalistas que crescem com a crise global, uma proposta de saída para a crise da civilização em que estamos mergulhados. Faz falta no mundo de hoje o elemento que foi central na derrota do fascismo no passado, a existência de um projeto antissistêmico socialista. O desafio central da esquerda brasileira (e mundial) é construir um horizonte democrático e internacionalista de superação do capitalismo, combinando tanto a atuação das forças políticas socialistas como dos movimentos ecológicos e sociais mais radicais”.

Confira a entrevista completa.

As ciências do Sistema Terra e o desafio de legitimar outro tipo de ação  política. Entrevista especial com José Corrêa Leite - Instituto Humanitas  Unisinos - IHU
José Correa Leite / Instituto de Estudos Avançados da USP

Correio da Cidadania: Após uma eleição dramática seguida de uma tentativa de golpe de Estado, o Brasil atravessou seu primeiro ano de terceiro governo Lula, inaugurado numa posse apoteótica que prometeu uma espécie de redenção do povo brasileiro, simbolizada pela presença de membros de grupos sociais historicamente vulnerabilizados pelo sistema político e econômico do país na rampa do Palácio do Planalto. Passado todo esse turbilhão, qual reflexão você faria sobre 2023?

José Correa Leite: O ano começou com um momento de fantasia, representado na imagem do Lula subindo no Planalto ao lado de pessoas oriundas dos grupos historicamente vulneráveis e marginalizados da sociedade, uma construção de propaganda e celebração. Mas o governo Lula começou mesmo em 8 de janeiro, quando o Brasil real se faz presente, o Brasil da polarização política com uma extrema-direita muito agressiva e regressiva. O Vladimir Safatle chamou isso de princípio de realidade. Nós estamos em um país muito polarizado, muito desigual e o 8 de janeiro representou a posse de fato de Lula. É importante situar o evento porque a resposta do Lula foi muito positiva, lhe deu um capital político inicial importante para esse primeiro período de governo, por quatro ou cinco meses, quando começa a aparecer o peso das instituições. O legislativo, o judiciário, a mídia e as forças armadas tiveram de decidir se aceitam um processo de contestação permanente dos resultados ou permitiriam que o governo eleito governasse.

Neste momento, Lula demite o comandante do exército e fica claro que não apenas o resultado eleitoral é fruto de uma aliança profunda, que traz a esquerda institucional e liberais, simbolizados na figura de Alckmin, mas também é uma pactuação com Arthur Lira; é um governo com espaço para o progressismo, uma parcela da esquerda socialista, a turma de Alckmin, que caracterizamos aqui como liberais, e o centrão, muito fisiológico. O governo Lula, tal como os governos anteriores do PT, se instaura a partir do deslocamento de parte do centrão para sua base aliada. O que cobra um preço alto.

De toda forma, fechando o primeiro momento do governo, fica claro um caráter de aliança muito ampla, que se apresenta como antifascista, mas vai além. Tem, de fato, o componente antifascista da parte da esquerda, mas tem o componente fisiológico da parte da direita. O bolsonarismo estava representando riscos para setores importantes do capital, tanto que Lula foi literalmente tirado da prisão para poder se candidatar, pois era a única liderança capaz de apresentar algum horizonte de estabilidade para o regime estruturado em 1988.

A partir da normalização do governo, nós temos iniciativas como a reforma tributária ou a política econômica que são bastante conservadoras, não tem traços desenvolvimentistas. Há, é verdade, uma recuperação do espaço de participação cidadã numa série de áreas, com mulheres, negros, povos indígenas e uma centralidade para a questão do combate ao desmatamento da Amazônia, o que nos leva a falar da inserção internacional do seu governo.

Correio da Cidadania: Esta projeção global do Brasil com Lula, simbolizada em sua viagem à COP-27 no Egito ainda em novembro de 2022, parece trazer dilemas de todo tipo. Pois, após mais uma cúpula do clima, em Dubai, que foi um fracasso, fica patente a divisão entre blocos de países e os impasses entre diferentes visões de desenvolvimento. Pra completar, Lula lida com uma elite econômica ruralista que mantém uma pauta destrutiva ao meio ambiente avançando no Congresso, o que destruiria qualquer agenda ambiental responsável.

José Correa Leite: Uma das razões da fragilidade do bolsonarismo foi o sinal verde para a devastação da Amazônia. Para os setores do grande capital internacional que têm algum grau de preocupação com o combate às mudanças climáticas e o aquecimento global, isso foi decisivo. Porque de todos os pontos de inflexão globais da questão climática, que podem se tornar pontos de virada a partir dos quais não tenhamos mais retorno no processo de elevação das temperaturas, o desmatamento da Amazônia é o único administrável por medidas de curto prazo. Elas são custosas para o modelo predador do agronegócio estabelecido no Brasil, mas muito baratas para o capital global. A Amazônia é, nesse horizonte de ação, o “centro do mundo”. Se tivermos, a partir da degradação que já se instaurou no Pará, um avanço da savanização, isso pode levar a uma degradação sistêmica do bioma com consequências globais. Toda a humanidade está sendo claramente ameaçada.

Não à toa, imediatamente após sua vitória eleitoral, governos de França, EUA, Austrália, reconheceram sua vitória. Todos estavam muito comprometidos com a aposta em Lula como substituição de Bolsonaro. Há grandes ameaças nas propostas do governo Lula, como o asfaltamento da BR-319 ou o “leilão do fim do mundo”. Porém, com mais quatro anos de Bolsonaro, o genocídio de povos indígenas teria sido generalizado e a floresta certamente teria atingido o ponto de não-retorno na sua degradação.

Isso remete a um problema internacional mais estrutural: a divisão da burguesia global. A partir da crise de 2008, e da vitória de Trump em 2016, a burguesia norte-americana foi perdendo capacidade hegemônica, de governar criando consensos nas classes dominantes. Desde 1991, ela tinha sido capaz de conduzir o processo da globalização econômica de modo a incorporar os interesses fundamentais das principais burguesias do planeta. Mas a ascensão de Xi Jinping na China em 2013, a invasão da Criméia e do Donbass em 2022 por Putin, trouxe conflitos de orientação. Xi Jinping chega ao poder dizendo “olha, nós vamos reivindicar nosso lugar no mundo”. Putin diz “olha, não vamos mais continuar passivamente aceitando a hegemonia americana”. Mas tudo isso ganha uma qualidade distinta quando Trump vence as eleições em 2016 e o Reino Unido vota o Brexit por uma visão nacionalista nostálgica do império britânico, da glória passada ou de rejeição à globalização cosmopolita. São momentos semelhantes às vitórias de Margaret Thatcher e Ronald Reagan em 1979 e 80, ocorridas com poucos meses de diferença.

O Brexit e a eleição do Trump nos Estados Unidos começam a desmontar ou redefinir fortemente a globalização conduzida desde 1980 pelos líderes destes mesmos países. É uma ideia de “nós vamos defender só os nossos interesses, não estamos mais preocupados em negociar uma pactuação mais ampla”. Isso é feito dentro de um recorte nacionalista e, portanto, fica evidente que a burguesia global está dividida entre dois projetos: de um lado, de continuidade da globalização neoliberal no qual estiveram desde os anos 80 os governos norte-americanos, a União Europeia, os japoneses e que passou a incluir os governos chineses; de outro, uma constelação conservadora ampla de nacionalismos e fundamentalismos de muitas feições, mas que agora incorpora também uma coluna vertebral neofascista. Temos hoje governos importantes com perfil muito conservador, que deslocam o centro de gravidade da política global para a direita.

A pesquisa de Benjamin Teitelbaum faz um diagnóstico muito interessante, ligando o conservadorismo de Trump, Putin e Bolsonaro, a partir da pesquisa sobre seus ideólogos Steve Bannon, Olavo de Carvalho e Alexander Dugin. Ela revela um fundo ideológico comum, de guerra contra o mundo cosmopolita globalizado, de guerra contra o protagonismo de diversidades não aceitas pelo conservadorismo (mulheres, populações lgbtqia+, populações racializadas, minorias religiosas etc). É uma base ideológica, mas no fundo tem um choque de interesses, porque a burguesia também está dividida do ponto de vista dos seus setores. Qual a velocidade que se dá à transição energética? Ou melhor, tem transição energética ou para alguns setores se trata essencialmente de preservar o capitalismo baseado na extração de combustíveis fósseis? No período de menor crescimento econômico, como conter as massas que não encontram mais emprego? A multiplicação de crises ambientais e de guerras na periferia não para de escalar. Para onde vão esses refugiados? Como lidar com o problema da imigração?

Estamos vendo na Europa nos últimos anos a gradativa expansão de governos que aceitam composições de direita com presença ou até protagonismos maiores de correntes fascistas e neofascistas. Nos EUA, estamos vendo a profundidade da divisão da burguesia norte-americana. E nós vemos isso na América do Sul, agora na eleição do Milei na Argentina, o avanço de Kast no Chile, a disputa na Colômbia... No Brasil, portanto, não tem nada de tão diferente do que acontece no resto do mundo.

Correio da Cidadania: Compreender essa dualidade dentro das próprias classes dominantes globais é um elemento chave na contenção desse processo de fascistização?

José Correa Leite: É um elemento crítico a ser estudado. A burguesia global está dividida sobre o que fazer, sobre qual o seu projeto de globalização. Há uma vertente mais “verde”, que quer criar formas de colonialismo verde para garantir os minérios da periferia e impulsionar carros elétricos, dar uma série de impulsos a inovações tecnológicas nessa direção, de modo a garantir a continuidade do funcionamento do mercado global. E há outro setor, mais conservador, para quem estamos num período onde não tem mais cobertor para todo mundo, não tem mais espaço para incluir toda a humanidade no mundo globalizado: “vamos garantir o nosso ou da nossa turma”. Este é o projeto conservador neofascista, que, dessa forma, leva ao recrudescimento das identidades atávicas e à volta de nacionalismos.

É assim que devemos situar a discussão. Não é derrotar o fascismo, por si só. É evidente que foi decisivo e fundamental a derrota do Bolsonaro na eleição. O problema é saber qual o projeto para sair dessa situação onde a renovação da expansão da globalização neoliberal clássica, cosmopolita e multicultural, vai erodindo as bases da democracia liberal, dos pactos capazes de sustentar alguma coesão nas sociedades e impedir que o descontentamento, que não para de crescer desde 2008, seja capitalizado pela extrema direita. Isso porque a extrema direita está cada vez mais se colocando como antissistema, está cada vez mais se colocando como uma alternativa de civilização. Eu achei muito significativa a quantidade de conservadores radicais brasileiros que foram a Buenos Aires ver a posse de Javier Milei, não só Bolsonaro, mas os governadores estaduais dessa nova direita.

Isso revela que a disputa de projetos é global, que a política mundial está cada vez mais internacionalizada. É evidente que o destino do Brasil vai depender do resultado da eleição dos EUA no ano que vem, entre Biden e Trump, e as perspectivas não são alvissareiras. A clivagem no seio da burguesia global é evidente e também é evidente que apareceram problemas de hegemonia que se refletem no terreno mais clássico dos conflitos interimperialistas, do recurso da burguesia de cada Estado mais poderoso à iniciativa militar para garantir seu espaço no cenário internacional. Modi na Índia, Erdogan na Turquia são mais instigantes para pensarmos esse cenário do que resumir a situação geopolítica na polarização entre os EUA e a China. Evidente, a China é o país que tem condições de questionar os EUA em alguns terrenos, de maneira consistente, há uma década.

Mas a China é alternativa? Não, é outra forma de imperialismo, digamos para resumir, e abre espaço para que Putin invada a Ucrânia, para que governos conservadores se articulem. A Organização para Cooperação de Xangai reúne alguns dos regimes mais reacionários do mundo em nome da defesa do status quo. Assim, falar tanto de “nova guerra fria” como “mundo multipolar" acabam sendo fórmulas jornalísticas que confundem mais do que iluminam a realidade global; há disputas interimperialistas e há igualmente uma clivagem transversal de projetos de futura nas burguesias e é escapando dessas amarras que alternativas emancipadoras - socioambientais, democráticas e internacionalistas - terão de emergir.

A coisa chega ao ponto de atingir a América do Sul. Por motivos internos, uma eleição e um desgaste profundíssimo, o Maduro reivindica uma parte da Guiana, algo que parece sem fundamento, pois não parece haver cidadãos locais fazendo essa reivindicação, não há venezuelanos ou falantes de espanhol naquele território. É uma questão artificial que remete ao passado do colonialismo espanhol e inglês. De todo modo, o recurso da guerra se torna novamente comum. Não são mais as “guerras de procuração” na periferia, mas um cenário em que qualquer país pode, nesse novo quadro de desestabilização política, cogitar iniciativas militares.

De volta ao Brasil e ao governo Lula, temos o problema de entender que Bolsonaro não saiu do vácuo, mas é fruto de um projeto de capitalismo brasileiro inserido na globalização neoliberal que produz sua legião de perdedores, que não desenvolve consciência política; que abriu espaço para o neopentecostalismo como ideologia orgânica do capitalismo conservador contemporâneo, que abriu espaço para que um ruralismo incapaz de conviver com o mínimo de democratização da sociedade se colocar no centro do Estado brasileiro para sequestrar nossos horizontes de futuro.

Portanto, a divisão da sociedade brasileira é uma divisão de dois projetos burgueses: de um lado, um projeto de continuidade da inserção do Brasil na globalização com, para usar o termo do Plínio Sampaio Jr., uma forte “regressão neocolonial” e desmonte do processo de construção nacional realizado entre 1930 e 1990, projeto comum a Fernando Henrique, Lula, Dilma, Alckmin; de outro lado, um projeto neoconservador que aqui ganha conotações muito, muito radicalizantes, de atavismo antidemocrático profundo.

O grande problema é não existir alternativa sistêmica do ponto de vista emancipador, ecológico, libertário, socialista. Os projetos deste perfil nos últimos anos, como o Podemos na Espanha, Syriza na Grécia, Jeremy Corbyn na Inglaterra, Bernie Sanders nos EUA, acabaram derrotados e submetidos à globalização neoliberal. Inclusive porque a polarização com a extrema-direita faz com que o progressismo no mundo se alie aos liberais para defender a democracia liberal. Essa é a fotografia principal.

Correio da Cidadania: Retornando ao Brasil com esta leitura, vemos que esperanças e euforia à parte, o governo Lula parece marcado pelo pragmatismo. E esse pragmatismo parece quase compulsório, incentivado também por uma postura de cautela de movimentos sociais e da sociedade civil progressista, por sua vez explicada por essas polarizações com a extrema-direita, ainda que Lula tenha feito reiteradas falas no sentido de que seus apoiadores deveriam fazer soar suas críticas e demandas. Como você analisa essa dinâmica?

José Correa Leite: Enxergo como uma escolha política. O PT governou o país de 2003 a 2016 e poderia ter direcionado as suas políticas em outros rumos. O projeto do petismo é a inserção do Brasil como um país capitalista no mundo multipolar com algum protagonismo. Lembremos que isso significou, essencialmente, construir espaço para as grandes empresas brasileiras, as campeãs nacionais do BNDES, empresas primário-exportadoras, que se somariam à algumas empreiteiras e bancos. Isso foi e é feito sem participação política. Há espaço para que os movimentos sejam escutados mas, no final, a decisão cabe às burocracias estatais e aos lobbies existentes, dentro das relações de poder entre as partes do “Estado ampliado”. O problema é que isso não constrói cidadania, não constrói consciência. É muito importante que a população negra periférica possa ter financiamento para a universidade, um Prouni, que os povos indígenas não sejam massacrados, mas o petismo no poder não alterou sequer a política de segurança pública, quando tinha correlação de forças e condições muito melhores. Veja-se a situação do estado da Bahia: estamos diante de problemas políticos de concepção de democracia do Estado liberal, com espaço de escuta, acolhimento da diversidade, mas respeitando a correlação de forças e sem rupturas. Há uma degradação da democratização de decisão em participação e de participação em escuta.

Isso se dá mantendo um modelo econômico, uma forma de inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho orientada, desde 1988/90, para priorizar a agricultura de exportação, o neoextrativismo mineral, a pecuária, a produção de commodities, que correspondem ao essencial da exportação brasileira. Nesse período, o Brasil se tornou um componente vital da cadeia de produção da alimentação global, inclusive dos chineses, que hoje têm 30% do comércio externo do Brasil (no início do século era 1,5%). Os EUA viram sua participação se reduzir a 10% do comércio brasileiro. O Brasil voltou a ser uma grande fazenda do ponto de vista do seu lugar na divisão internacional do trabalho e isso cobra seu preço porque significa uma sociedade reprimarizada. Não temos mais uma dinâmica de industrialização capitalista que expandia as classes intermediárias, que dava espaço para ascensão social, para expansão de áreas como ciência e tecnologia, educação, cultura, saúde. Temos uma sociedade que não chega a ser de apartheid, mas que tende a isso, porque econômica e socialmente está muito imobilizada. É evidente que isso tem componentes culturais, como o racismo estrutural, mas este é reproduzido por uma dinâmica de economia de enclaves primários modernos em um tecido social crescentemente marcado pela anomia e luta individual pela sobrevivência.

Os governos Lula foram, consciente ou inconscientemente dependendo de seus componentes, orientados por essas escolhas - esse é o ponto relevante para efetuarmos um juízo objetivo sobre o seu lugar histórico. Foram governos bem intencionados que não conseguiram, e não conseguem hoje, romper a correlação de forças, mobilizar os setores populares por reformas estruturais - como o populismo pré-64 fez. Lula tem bem definido o quer para o povo brasileiro: picanha, carro popular, exploração do petróleo pela Petrobrás. Isso é um modelo de país, com suas características e dinâmicas próprias, e o presidente consegue dialogar com fatias da população que a esquerda e o progressismo brasileiros não alcançam, de modo que ficamos reduzidos a um horizonte político de inserção na globalização liberal e neoliberal. Mas isso responde a uma visão de mundo obsoleta.

A questão que me parece decisiva é saber se na esquerda existe hoje algum projeto de Brasil substancialmente diferente, de ruptura sistêmica. A minha resposta é: não. Essa situação tem que ser rapidamente superada, porque o tempo histórico e a janela de oportunidade que ganhamos em 2022, com a derrota de um certo neofascismo, não vai se manter aberta indefinidamente. De fato, não vai durar muito tempo.

Correio da Cidadania: Nesse sentido, tivemos um exemplo elucidativo na convenção do PT, onde se registrou considerável insatisfação com uma política econômica disciplinada pelos dogmas neoliberais, uma certa oposição entre a visão praticada e defendida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e outra, simbolizada nas falas de Gleisi Hoffmann, que se dirige a uma tradição denominada nacional-desenvolvimentismo, com pretensões um pouco mais ousadas a respeito de uma mudança da correlação de forças aqui posta.

José Correa Leite: Exatamente. Tanto no PT como no PSOL existem setores acomodados à dinâmica de poder estabelecida no Brasil. E tem gente muito incomodada e em rebelião contra isso. Mas por onde podemos pensar caminhos diferentes? Parece haver um limite imaginativo, que perpassa outros partidos e organizações também. Tal limite diz respeito à visão desenvolvimentista e aqui temos de falar na mudança epocal que a sociedade global atravessa. O mundo mudou radicalmente nos últimos anos e não para melhor; o lugar onde se pensava o capitalismo, a ação política, as relações sociais, passou a ser corroído pela escalada da crise ambiental (e também pela digitalização da sociedade, que em si justificaria uma discussão própria). 2023 foi um ano muito pedagógico porque um fenômeno periódico, o El Niño, levou a ondas de calor e fenômenos climáticos extremos muito fortes por todo mundo. O agronegócio brasileiro já começou a sofrer com isso. A produção de 2024 vai ser menor que a de 2023, que já foi menor em relação a 2022.

O planeta está mudando, o processo do aquecimento global está levando a fenômenos climáticos extremos, mas não é só isso; é a crise hídrica; é a perda de biodiversidade; é a destruição dos mares. Nós estamos com uma série de problemas cumulativos a se reforçar mutuamente. Cito o livro de Luiz Marques, O decênio decisivo - políticas para sobrevivência da humanidade, para destacar que os modelos construídos trabalhavam com horizonte de eclosão de grandes problemas ambientais em 2050, 2100. Hoje é evidente que os problemas já são importantes agora e estão escalando numa velocidade que a humanidade nunca enfrentou. É como se existisse uma bomba que não vai explodir de uma vez só, mas vai provocar uma série de explosões que vão irradiando efeitos destrutivos em efeito dominó pelo mundo, crescendo nas próximas uma ou duas décadas.

Em tese, o El Niño provocaria um aumento de 0,2 graus acima da média mundial mas esse ano nós tivemos dias onde o planeta conheceu uma temperatura de 2 graus acima da média de dois séculos. Isso é muita coisa, é um desastre para a humanidade, para a vida no planeta. Foram só três dias em que a temperatura superou os dois graus médios, mas é a primeira vez que isso acontece, provavelmente, em 125 mil anos. Se em 2024 tivermos sete ou dez dias com tais marcas de calor muito acima da média, podemos ter dezenas ou mesmo centenas de milhares de mortes, em especial na região que vai do Mediterrâneo ao Oriente Médio e ao Sudeste Asiático, em países como Índia, Paquistão e Bangladesh.

A questão ambiental se torna um desafio existencial da humanidade. Não que a humanidade vá se extinguir, mas uma série de países já não tem viabilidade se a temperatura subir um pouco mais. No caso do Brasil, teremos uma expansão da desertificação da caatinga, a expansão do cerrado sobre a Floresta Amazônica, uma parte importante da grande agricultura no Centro-Oeste e Sudeste sofrendo perdas crescentes, mas, para efeitos do impacto sobre a vida do conjunto da população, não é um dos países mais afetados do mundo. Os efeitos de curto prazo se voltam mais para toda aquela faixa do hemisfério norte que, como tem muito mais terra que o hemisfério sul, se aquece muito mais rápido.

As pessoas pensam os impactos das mudanças climáticas separados das questões sociais, econômicas e geopolíticas. Mas pensemos que os 2 milhões de imigrantes que saíram da Síria pela guerra civil iniciada em 2011/12 (que tinha um componente ambiental) já foram um detonador de todo o processo político que descrevemos no começo da entrevista. Temos 7 milhões de pessoas que saíram da Venezuela, 10 milhões da Ucrânia. Em Gaza, temos 20 mil mortos sobre uma população de 2,5 milhões de habitantes. Temos hoje mais de 100 milhões de refugiados, muitos em seus próprios países. O que vai ser o cenário político no mundo com 200 milhões de refugiados, como teremos nas próximas décadas? Isso interage com as guerras civis e de conquista, com fronteiras fechadas, com o crescimento do racismo e da xenofobia. O que acontecerá se a continuidade do aquecimento global produzir 300, 400 milhões de refugiados? A multiplicação de Estados nacionais falidos vai criar um caos sistêmico, abarcando inclusive países com armas nucleares, como o Paquistão. Qual a proposta da esquerda para isso?

O debate que temos no Brasil reproduz posturas que evocam as estratégias de Lenin ou Trotsky, um debate focado nos processos eleitorais ou apelando metafisicamente à irrupção da classe trabalhadora na luta de classe. Mas quem organiza e com que estruturas, que projetos, que consciência de médio e longo prazo esses setores e as camadas de ativistas vão intervir na cena política? Qual é a alternativa de Brasil? Parece-me que temos de propor uma alternativa de ruptura com a globalização neoliberal. Mas isso não pode ser um retorno ao nacionalismo, tem de ser de integração regional; mas os processos de integração regional em nossa região foram entre os Estados e capitais, não entre os povos. Uma coisa interessante da experiência da Panamazônia é que os movimentos sociais dos vários países amazônicos dialogam diretamente entre si, independentemente dos governos, sem o sentido de fronteiras nacionais a serem defendidas, que só serviram para demarcar terreno de exploração para o grande capital em nosso continente, fronteiras muito artificiais, de lutas das elites, de interesses do capitalismo global em predação dos bens comuns da natureza.

Precisamos pensar um projeto de sociedade para o Brasil que tome como ponto de partida a população e a natureza, não os interesses do capital. Esse é o ponto de partida, nós precisamos que as pessoas comam, tenham acesso à educação, à saúde, que a riqueza da produção da vida em nosso continente possa ser um elemento de bem-estar e não de miséria. Aproveito aqui para recuperar a fórmula do Alberto Acosta: a maldição da abundância. A riqueza natural de nosso continente tem sido fonte de miséria do povo, de constituição de zonas de sacrifício. O que vemos em Maceió, Mariana, Belo Monte, nos territórios yanomami?

Não podemos pensar a economia com os critérios quantitativos de riqueza da burguesia, a métrica do PIB, que a esquerda do século 20 assimilou. Marx fazia crítica da economia política como via para a desconstrução do capitalismo. Mas o que a esquerda pôs no lugar disso nos modelos socialistas foi a nacionalização das empresas industriais e planificação central tecnocrática, como se fez na experiência soviética. O que é o conceito de riqueza no século 21? Será que a produtividade primária bruta da natureza, a capacidade de um território produzir vida, não é uma riqueza mais importante do que a produção de mercadorias que ganham um caráter cada vez mais destrutivo, seja na forma de petróleo, na forma de papel para publicidade, de voos aéreos, de produtos descartáveis, de obsolescência planejada? Evidentemente, pensar uma economia sustentável é pensar um outro tipo de consumo. Não significa regressão a um mundo bucólico pré-capitalista, mas significa que nós teremos de conceber o que é riqueza e a tecnologia de maneira diferente, já que tudo isso demanda tecnologias mais sofisticadas. A agroecologia pressupõe saberes muito mais complexos e difundidos pelo tecido social do que a grande agricultura capitalista com grandes máquinas e drones, fertilizantes, pesticidas e sementes transgênicas. Temos que conceber o que é nação de maneira diferente, com a plurinacionalidade, com a interculturalidade, resgatando os objetivos emancipatórios do socialismo, do anarquismo, até o cosmopolitismo das revoluções burguesas do passado.

De toda forma, o importante aqui é assinalar que o Brasil é um país rico. Não somos pobres, mas profundamente desiguais. Assim como a Argentina não é pobre; era, há um século, o sétimo país mais rico do mundo. Para onde foi essa riqueza? As classes dominantes brasileiras são muito ricas, o problema é que nenhum governo progressista enfrenta efetivamente o problema da redistribuição dessas riquezas. A ideia de “primeiro crescer o bolo para depois repartir”, consagrada pelo Delfim Netto, acaba sendo mantida. “Vamos fazer um jogo de ganha-ganha”, como diz Lula. Mas não é assim. A economia do nosso país e do capitalismo contemporâneo é um jogo em que poucos ganham, e em excesso, e muitos perdem.

O processo de uberização é uma inevitabilidade tecnológica ou é uma escolha? A forma como lidamos com as plataformas digitais é uma expressão de colonialismo profundo. Nós estamos entregando toda a mediação entre as pessoas na sociedade brasileira, até nas esferas de poder, a empresas como Google, Meta e Microsoft. Tecnologia é escolha, concepção de riqueza é escolha, recortes e horizontes de nação são escolhas.

Eu penso que a esquerda, praticamente toda ela, trabalhou com o horizonte imaginativo de Outubro, da Revolução Russa. Depois foi adaptando-o a cenários cada vez mais desfavoráveis. Mas já atingimos uma situação de grande disfuncionalidade desse paradigma que só cresce. Nós precisamos pensar um futuro para o Brasil e de nosso continente - e o Brasil e os nossos vizinhos têm possibilidades de futuro diferente, por exemplo, de países do Oriente Médio - em outras bases sociais e ambientais, não a partir do que é possível fazer dentro do capitalismo. A esquerda, para ser capaz de fazer isso, tem de pensar a diversidade da classe trabalhadora e seu enraizamento na materialidade dos territórios, resgatar o internacionalismo e a radicalidade abandonados, tem de passar por uma revolução teórica e cultural, uma ruptura epistemológica.

Correio da Cidadania: Mas ainda assim, dentro deste atual arranjo de política e economia possíveis, o governo Lula e sua pactuação de poder conseguem apresentar resultados geradores de maior confiabilidade, tanto dentro como fora do país. Ao mesmo tempo, há uma extrema direita que segue à espreita e oferece possibilidades de desestabilização institucional. Essa estabilização, ao menos na superfície, é suficiente para superar os dilemas aqui expostos, ao menos no curto prazo, ou seguimos numa corda-bamba perigosa?

José Correa Leite: É uma situação em que vale dizer “nem tanto ao céu, nem tanto a terra”. Nem estamos numa instabilidade tremenda nem conseguimos nos desvencilhar totalmente das ameaças. Lula quer gerir a economia do modo como está montada hoje, ampliar o crescimento e reforçar a base social de apoio à esquerda, daqueles que votam contra a direita por vários motivos. Nisso, não vejo Lula em uma situação catastrófica, embora ele esteja pagando um pedágio cada vez mais caro para o centrão. Não é um crescimento como na época do boom das commodities, pois o capitalismo contemporâneo não permite aquele nível de crescimento. Nós vivemos um horizonte de expectativas decrescentes, mas a economia está melhor do que no período Bolsonaro, inclusive porque o período anterior foi o da crise pandêmica. Há espaço para o Lula trabalhar por sua reeleição, embora não exista nenhuma figura minimamente progressista na cena política nacional que possa substituí-lo.

Mas ainda há riscos da extrema-direita retornar, particularmente com figuras um pouco mais flexíveis, sem os traços caricatos de Bolsonaro. Isso se dá inclusive pelo espaço que Lula abre para o conservadorismo social (no imaginário do boi, da Bíblia e da bala, por exemplo). Na Argentina, Milei ganhou porque a situação sob o último governo peronista estava muito degradada. Mas Lula sabe como integrar as classes dominantes, sabe como governar garantindo a estabilidade do regime, como já provou duas vezes. Ele é mais cuidadoso do que a Dilma na gestão dos interesses estratégicos de setores-chaves das classes dominantes; Lula pactua os setores conservadores e ao mesmo tempo quer fazer a economia crescer dentro do modelo dado. O melhor exemplo disso é a discussão do petróleo. É totalmente irracional do ponto de vista da humanidade o Brasil explorar petróleo, mas não é irracional para o governo e os interesses capitalistas envolvidos transformar o país de oitavo em quarto maior exportador de petróleo. Eu acho lamentável que o Lula tenha ido à COP 28 dizer que o Brasil vai entrar na OPEP+, é uma mensagem fossilista, em especial para um governante que diz querer preservar a Amazônia. Mas é a lógica do pragmatismo e tem resultados de curto prazo.

É evidente que o impacto a longo prazo é desastroso. O Brasil já é o quinto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, principalmente por conta do desmatamento. O crescimento da exploração do petróleo vai aumentar essas emissões. O Brasil não é mocinho, não é vítima na questão ambiental; há, sobre isso, uma visão de “anti-imperialismo dos tolos”. O Brasil sempre foi vilão ambiental, historicamente e no presente, porque impulsionou o maior processo de desmatamento da história, a destruição da Mata Atlântica, a ferro e fogo, como descrevia Warren Dean. Depois dos EUA, China, Rússia/URSS e do Império Britânico, o Brasil é o quinto maior emissor de gases de efeito estufa desde 1850. Isso porque a agricultura brasileira é de predação, tem um impacto sobre a emissão de carbono tão grande quanto a indústria e isso é normalmente “esquecido”. Mas o Brasil tem um gigantesco potencial de bioeconomia não capitalista, de ser o território mais sustentável do planeta - se romper com o ruralismo, a exportação de commodities e a pecuária (temos mais bois do que gente hoje no país).

Eu não acho que a curto prazo a situação do Lula seja terrível de um ponto de vista pragmático, como um governante das classes dominantes. O problema está no médio e longo prazos, se não tivermos o fortalecimento de uma esquerda socialista e emancipatória, com perspectivas de uma ruptura sistêmica. Porque aí o descontentamento que virá será catalisado pela extrema-direita. Nesse sentido acho que tem uma disputa forte a ser feita. Contra a direita fascista precisamos de uma esquerda socialista democrática e ecossocial, que combata o modelo de desenvolvimento e forneça um horizonte de futuro não só social, mas ambiental; que forneça um horizonte de uma economia desglobalizada, ou menos globalizada, e ao mesmo tempo mais integrada com os parceiros regionais.

Correio da Cidadania: Pensar numa ideia de “terceira via”, para usar o jargão de liberais que sonham em eliminar os contrastes ideológicos da elaboração política e econômica, só poderia ser, dessa forma, uma alternativa fora dos dois modelos de capitalismo hoje em colisão.

José Correa Leite: Sim. Quando revemos os clássicos do marxismo e o debate que Marx fazia sobre a Alemanha no século 19 ou o Lênin fazia sobre a Rússia no início do século 20, percebemos que eles falavam das “vantagens do atraso”. Eu não acho que exista mais possibilidade de pensar o futuro a partir da ideia de atraso ou da polaridade subdesenvolvimento/desenvolvimento. Pensar o mundo dessa maneira é um beco sem saída. Mas pensar o Brasil significa pensar um dos países mais viáveis do mundo para que uma alternativa sistêmica ao capitalismo possa se constituir. E uma alternativa não se constitui só no marco nacional, por isso insisto na integração regional.

O mundo está de tal maneira interdependente, interconectado, que constituir um sistema de tal modo complexo e integrado começou a surgir deseconomias de escala na economia globalizada. A economia tem, nos últimos anos, crescido menos do que o comércio internacional, há um processo objetivo de desglobalização em curso. Agora nós temos também um processo de desconexão crescente entres os dois grandes polos econômicos, os EUA e China, que sustentaram no passado a globalização. O Brasil pode continuar como exportador de matérias-primas para esses dois polos ou, de alguma maneira, experimentar algo novo, uma ruptura com o globalização vigente, uma desconexão relativa em função dos interesses sociais e ambientais de sua população.

No seu ensaio O ornitorrinco, Chico de Oliveira discutia quando é possível fazer transformações sistêmicas na periferia. A resposta era quando se junta uma crise global com uma força política nacional com o projeto, vontade e capacidade de promover rupturas e inserir o país no mundo de outra maneira. A crise global está escalando e precisamos de forças políticas internas que tenham um diagnóstico dessa crise global e saibam propor para o Brasil, o continente e o mundo uma alternativa.

Correio da Cidadania: Nesta visão, o governo Lula, mesmo diante de uma crise sistêmica que vai além de suas forças, tem uma janela de oportunidades a ser aberta no sentido de se criar este outro projeto político e social. Mas haveria a chance de avançar por esta via ao longo deste segundo ano de mandato, ano também de eleições municipais e geralmente estratégico para a afirmação de projetos de governos?

José Correa Leite: Acho que abstratamente teria, mas não creio que Lula vá avançar para outro projeto a menos que tenhamos um colapso internacional como em 1929, que desorganize também as classes dominantes nacionais. Podemos pensar que Getúlio Vargas era um político oligárquico tradicional, o ministro da Fazenda de Washington Luís e depois o governador do Rio Grande do Sul. Ninguém em 1928 o imaginaria como o animador de um nacional-desenvolvimentismo centralista e industrializante; mas seu papel histórico foi fruto do encontro de uma sagacidade política excepcional com as circunstâncias com que se confrontava. Não podemos negar que Lula é um político sagaz, mas Getúlio tinha 48 anos em 1930, em um mundo onde a Revolução Russa tinha apenas 13 anos, e 72 anos em 1954, quando se suicidou para impedir um golpe militar conservador, em plena Guerra Fria.

Lula tem hoje 78 anos. Constatar isso não é etarismo, mas um dado condicionante da realidade. Toda a trajetória de Lula, depois dos anos 1990, inclusive no passado imediato, quando o STF o libertou da prisão, foi apostar na inércia da política institucional e na conciliação e não na mobilização de massas e em qualquer perspectiva de ruptura. Lula firmou um pacto estrutural com o Legislativo e o Judiciário e vem cumprindo sua parte, embora o apetite do centrão seja infinito. As emendas parlamentares correspondem a R$ 54 bilhões do novo orçamento aprovado no dia 22 de dezembro pelo Congresso Nacional (fora R$ 4,9 bilhões do fundo eleitoral). De outro lado, as indicações de Lula para o STF e para Procurador-geral da República - Zanin, Dino e Gonet - apontam para um perfil de conservadorismo social e trânsito junto às oligarquias do Judiciário. Não são indicações de quem quer sacudir o sistema em qualquer tema.

Porém, acho que ainda mais significativo é o valor do Plano Safra 2023/2024 que ofereceu um financiamento ao agronegócio de R$ 363 bilhões, 27% maior que o anterior de Bolsonaro! Para quê? Continuar a exportar soja e carne, minério de ferro e agora petróleo? O que isso pode oferecer para a sociedade brasileira? Não acho que devamos ter ilusões de que Lula possa oferecer mais do que ele já está entregando ao Brasil com a derrota de Bolsonaro.

Analisando as movimentações objetivas, avalio que Lula está procurando ampliar, no terreno eleitoral, a sua base de apoio nas capitais mais estratégicas. A direita se fortaleceu nos principais estados nas eleições para governador de 2022 (São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro…) e Lula precisa, no tipo de política que está fazendo, reforçar seu sistema de alianças para 2026. Boulos e Paes são parte desse dispositivo. Lula também aposta em uma melhoria do desempenho convencional da economia, como vemos na dinâmica entre a sinalização de responsabilidade fiscal, redução dos juros pelo Banco Central e favorecimento das exportações de commodities. Mas não devemos absolutizar as eleições municipais. Elas são importantes mas, dada a globalização da ação política contemporânea, tanto o desempenho do governo Milei na Argentina como a eleição presidencial norte-americana de novembro de 2024 serão decisivos para a movimentação das forças políticas aqui.

O Brasil é estratégico no mundo, um dos poucos países que têm população, riqueza, estrutura de Estado e um certo patamar de desenvolvimento econômico que lhe permitiria aproveitar a janela de uma crise sistêmica no capitalismo mundial. A globalização já está refluindo porque a estrutura do mercado mundial se tornou difícil demais de gerir; e podemos conhecer uma debandada geral (lembremos a covid-19). O Brasil sob o governo Lula é um lugar muito melhor para se fazer essa disputa política do que sob Bolsonaro, que estava corroendo o tecido social de maneira acelerada. Mas a construção do futuro passa, na minha opinião, por um caminho bem mais à esquerda do que o governo atual comporta. É, para retomarmos a colocação de Chico de Oliveira, a aposta em combinarmos elementos externos e internos como fatores para a ruptura sistêmica e uma transformação socialista.

Devemos aproveitar o cenário político atual do Brasil para relançarmos um horizonte de futuro alternativo à polarização entre o capitalismo liberal/neoliberal e os capitalismos nacionalistas que crescem com a crise global, uma proposta de saída para a crise da civilização em que estamos mergulhados. Faz falta no mundo de hoje o elemento que foi central na derrota do fascismo no passado, a existência de um projeto antissistêmico socialista. O desafio central da esquerda brasileira (e mundial) é construir um horizonte democrático e internacionalista de superação do capitalismo, combinando tanto a atuação das forças políticas socialistas como dos movimentos ecológicos e sociais mais radicais.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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