Correio da Cidadania

Esquerda e progressismo: a grande divergência

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Uma das maiores mudanças políticas vividas na América Latina nos últimos 20 anos foi o surgimento e consolidação dos governos da nova esquerda. Independentemente da diversidade dessas administrações e das bases que os apoiam, todas compartilham atributos que justificam nomeá-los como “progressistas”. São expressões vitais, próprias da América Latina, de certa forma bem-sucedidas, mas ancoradas na ideia de progresso. Sua força, e até mesmo o seu sucesso, tem gerado uma divergência entre esse progressismo e muitas das ideias e sonhos da esquerda latino-americana clássica.

 

Para analisar essas circunstâncias é necessário ter em mente a magnitude da mudança política na América Latina, iniciada em 1999 com a primeira presidência de Hugo Chávez, e que se consolidou nos anos seguintes em vários países vizinhos. Já vão longe os anos das reformas de mercado, e o Estado voltou a desempenhar papéis diferentes. Foram adotadas medidas de emergência para combater a pobreza extrema, com inegável sucesso na maioria dos países. Vastos setores, de movimentos indígenas a grupos populares urbanos, durante muito tempo excluídos, finalmente conseguiram alcançar o protagonismo político.

 

Também é verdade que a esquerda latino-americana é muito variada, com diferenças significativas entre Evo Morales na Bolívia e Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, ou entre Rafael Correa no Equador e a Frente Ampla do Uruguai. Essas diferentes expressões foram rotuladas como esquerda social-democrática ou revolucionária, vegetariana ou carnívora, nacional popular ou socialista do século XXI, e assim por diante. Mas esses governos e suas bases de apoio não só compartilham os atributos acima exemplificados, mas também a ideia de progresso como elemento central para organizar o desenvolvimento, a economia e a apropriação da Natureza.

 

A identidade própria do progressismo não se dá apenas em função dessas posições compartilhadas, mas também pelas diferenças cada vez maiores em relação aos caminhos traçados pela esquerda clássica da América Latina do final do século XX. É como se presenciássemos regimes políticos que nasceram no cerne da esquerda latino-americana, mas, à medida que adquiriram uma identidade distinta, passaram a construir caminhos cada vez mais diferentes. Pode-se apontar, a título de exemplo, alguns destaques no plano econômico, político, social e cultural.

 

A esquerda latino-americana das décadas de 1960 e 1970 era uma das mais profundas críticas do desenvolvimento convencional. Questionava suas ideias fundamentais, inclusive com um acento anticapitalista, e rejeitava expressões concretas, em particular o papel de meros fornecedores de matérias-primas, considerando-o uma situação de atraso. Também discordava de instrumentos e indicadores convencionais, tais como o PIB, e insistia que crescimento e desenvolvimento não eram sinônimos.

 

O progressismo atual, no entanto, não discute a essência conceitual do desenvolvimento. Pelo contrário, celebra o crescimento econômico e defende as exportações de matérias-primas como se fossem avanços no desenvolvimento. É verdade que, em alguns casos, há uma retórica de denúncia ao capitalismo, mas na verdade prevalecem economias inseridas nele, muitas vezes classificando a “seriedade macroeconômica” ou a queda do “risco-país” como realizações. A esquerda clássica entendia as imposições do imperialismo, mas o progressismo atual não usa essas ferramentas de análise diante das presentes desigualdades geopolíticas, como, por exemplo, o papel da China nas nossas economias. A discussão progressista indica como instrumentalizar o desenvolvimento e, especialmente, qual o papel do Estado, mas não aceita rever as ideias que sustentam o mito do progresso. Ao mesmo tempo, o progressismo reteve, daquela esquerda clássica, uma atitude refratária às questões ambientais, interpretando-as como obstáculos ao crescimento econômico.

 

A esquerda latino-americana dos anos 1970 e 1980 incorporou a defesa dos direitos humanos, especialmente em relação à luta contra as ditaduras nos países do Cone Sul. Esse programa político amadureceu, entendendo que qualquer ideal de igualdade deve andar de mãos dadas com a garantia dos direitos das pessoas. Esse alento se estendeu e mostra a contribuição decisiva das esquerdas na ampliação e aprofundamento do quadro de direitos em vários países. Do seu lado, porém, o progressismo não expressa a mesma atitude, já que, quando ocorrem denúncias sobre violações de direitos em seus países, reage defensivamente, questionando os atores sociais querelantes, as instâncias jurídicas que as aplicam, incluindo, em alguns casos, o sistema interamericano de direitos humanos e até a própria ideia em relação a alguns direitos.

 

Essa mesma esquerda também se apropriou da ideia de democracia, dando prioridade ao que chamou de aprofundamento ou radicalização da mesma. Seu objetivo era ir além das simples eleições nacionais, realizando consultas cidadãs diretas, mais simples e em vários níveis, com mecanismos de participação constantes. Surgiram inovações, como os orçamentos participativos ou os plebiscitos nacionais. No entanto, em muitos lugares o progressismo está se afastando desse espírito, enfocando os mecanismos eleitorais clássicos. Entende que eleições presidenciais são suficientes para garantir a democracia e celebra a continuidade do hiper-presidencialismo ao invés de horizontalizar o poder, e argumenta que os vencedores desfrutam o privilégio de levar a cabo os planos que quiserem, sem o contrapeso dos cidadãos. Enquanto isso, restringem a participação ao exigir que os que tenham interesses divergentes se organizem em partidos políticos e esperem as próximas eleições para avaliar o seu poder eleitoral.

 

A esquerda clássica do final do século XX foi um das mais duras combatentes contra a corrupção. Esse era um dos flancos mais frágeis dos governos neoliberais, e a esquerda seguidamente se aproveitou disso (“Podemos estar errados, mas não roubamos”, foi um dos slogans daquela época.). No entanto, o progressismo atual não consegue repetir esse mesmo ímpeto, e há vários exemplos onde não lidaram adequadamente com os casos de corrupção de políticos-chave dentro de seus governos, mostrando uma atitude de certa resignação e tolerância.

 

Outra divergência iminente é que a esquerda latino-americana lutou muito para assegurar o protagonismo político de grupos subordinados e marginalizados. O progressismo inicial seguiu nessa mesma linha, conquistando governos graças aos indígenas, aos camponeses, a movimentos populares urbanos e a muitos outros atores. Forneceram-lhes não apenas votos, mas os líderes e profissionais que lhes permitiram renovar os quadros das empresas estatais. Mas, nos últimos anos, o progressismo parece afastar-se de muitos destes movimentos populares, deixando de entender suas demandas, em alguns casos com uma postura defensiva, enquanto em outros tratando de dividir e intimidar. O progressismo gasta muito mais energia classificando, a partir do seu lugar no palácio do governo, quem seria e quem não seria revolucionário, distanciando-se das organizações indígenas, ambientalistas, feministas, dos direitos humanos etc. Alimenta-se assim a frustração de muitos dentro dos movimentos sociais, que, sob os governos conservadores, eram denunciados como pertencendo à esquerda radical, e agora, sob o progressismo, são criticados como estando a serviço do neoliberalismo.

 

A esquerda clássica concebia a justiça social como um amplo leque temático que vai da educação à alimentação, da habitação aos direitos trabalhistas e assim por diante. O progressismo está se afastando dessa posição, enfatizando que a justiça é uma questão de redistribuição econômica, especialmente através de uma compensação monetária para os setores mais pobres e do acesso ao consumo para os demais. Isto não implica desconsiderar o papel da ajuda mensal em dinheiro para tirar milhões de famílias da pobreza extrema. Mas a justiça é mais do que isso, e não pode ser reduzida a um economicismo compensatório.

 

Finalmente, numa dimensão que poderíamos qualificar como cultural, o progressismo elabora diferentes discursos de justificação política, cada vez mais distantes das práticas do governo. Proclama-se o Bem-Estar, mas este é desmontado na vida cotidiana; procura-se industrializar o país, mas liberaliza-se o extrativismo primário exportador; critica-se o consumismo, mas a inauguração de novos shoppings centers é celebrada; conclamam-se os movimentos sociais, mas ONGs têm suas portas cerradas; os indígenas são bem acolhidos, mas invadem suas terras, e assim por diante.

 

Estes e outros casos mostram que o progressismo atual está se afastando cada vez mais da esquerda clássica. Esse novo caminho tem sido bem sucedido em muitos aspectos, graças aos altos preços das commodities e ao consumo interno. Mas em relação às contradições e impactos negativos gerados por esses estilos de desenvolvimento, esses mesmos governos não aceitam mudar suas posições e, em vez disso, reafirmam o mito do progresso perpétuo. Por sua vez, contribuem para mercantilizar a política e a sociedade, com a sua obsessão pela compensação financeira e seu escasso radicalismo democrático.

 

O progressismo como expressão política distintiva torna-se ainda mais evidente em época de eleições. Nestas circunstâncias, parece que vários governos abandonam as tentativas de explorar alternativas para além do progresso, prevalecendo a obsessão por ganhar as próximas eleições. Isso os leva a aceitar alianças com os conservadores, a criticar ainda mais os movimentos sociais independentes e a assegurar o papel do capital na produção e no comércio.

 

O progressismo é, a seu modo, uma nova expressão da esquerda, com traços típicos da conjuntura cultural latino-americana, e que se tornou possível no âmbito de um contexto econômico global muito particular. Ele não pode ser qualificado como uma postura conservadora, menos ainda como um neoliberalismo disfarçado. Mas não segue exatamente o mesmo caminho que a esquerda construía no final do século XX. Na verdade, ela está se afastando cada vez mais desse caminho, à medida que sua própria identidade se consolida.

 

Esta grande divergência está acontecendo diante de nós. Em alguns casos, é possível que o progressismo corrija o seu curso, retomando alguns dos valores da esquerda clássica para buscar outras sínteses alternativas que incorporem de uma maneira mais adequada temas como o Bem-Estar ou a justiça num sentido mais amplo, o que em todo caso passa pelo afastamento em relação ao mito do progresso.

 

Trata-se de deixar de o “progressismo” para voltar a construir a esquerda. Em outros casos, talvez decida reafirmar-se, aprofundando ainda mais sua crença no progresso, caindo em regimes hiper-presidenciais, extrativistas e cada vez mais distantes dos movimentos sociais. Este é um caminho que se afasta definitivamente da esquerda.

 

Originalmente publicado na Agencia Latinoamericana de Información - Tradução de Ricardo Cabral.


Eduardo Gudynas é analista do CLAES (Centro Latino Americano de Ecologia Social), Montevidéu. Twitter: @Egudynas

Comentários   

0 #2 RE: Esquerda e progressismo: a grande divergência José Marques 15-11-2014 14:51
o problema decorre que a América Latina está voltada para si. Desenvolvimento, progresso são conceitos que precisam ser democratizados, mas em união com outros continentes. Quem sabe o BRICS vá adiante, mas será preciso pressão popular, um comércio democrático, e não patrimonialista de uns poucos.
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0 #1 Esquerda? Que esquerda?Umberto Bertone 07-01-2014 01:02
Esse aparente paradoxo só espanta quem acredita que esses governos populistas e/ou sindicalistas são de esquerda. Aliás, o que é ser "de esquerda" hoje em dia? Eu acho que é ter perfeita consciência de que o capitalismo e seus "recursos" são insustentáveis. Pode ser de esquerda um governo que libera a adulteração genética dos alimentos, como fez o Lula?
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