Ocaso da democracia em Israel
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- Luiz Eça
- 07/12/2022
Itamar Ben-Gvir e Betzalel Smotrich / Foto: Gili Yaari, Flash 90
A democracia está perto de cair em Israel e não será através de um golpe militar, mas de uma eleição perfeitamente democrática.
Sob a liderança de Bibi Netanyahu uma coalizão de partidos de direita e extrema-direita ganhou a maioria dos votos. E, depois do Likud de Bibi, o bloco Sionismo Religioso, formado pelos partidos Força de Israel e Sionismo Religioso, foi o mais votado e tem tudo para ajudar a empurrar o país em direção ao fascismo.
Quando ficou claro que o bloco de Netanyahu vencera, a comunidade internacional já se mostrava aterrorizada. O motivo era a inevitável influência no novo governo, ainda a ser formado, dos dois partidos ultraextremistas, particularmente dos seus líderes os notórios Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich.
Segundo o Canal 12, diversas nações, inclusive os EUA, informaram Israel que sua cooperação com um novo ministério, onde provavelmente brilhariam Ben-Gvir e Smogtrich, seria limitada, na melhor das hipóteses.
Até mesmo a quase unanimidade das organizações estadunidenses e inglesas pró-Israel manifestaram-se de modo altamente negativo. Citamos aqui a Liga Anti-Difamação. Ela afirmou que, como os dois chefes tinham suas trajetórias políticas marcadas pelo racismo, homofobia, desprezo pela democracia e ódio aos árabes, nomeá-los para o ministério contrariaria os princípios da fundação de Israel e os valores do judaísmo.
Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, tentou mostrar-se otimista: “esperamos que todas as autoridades de Israel continuem a compartilhar os valores de uma sociedade democrática, incluindo tolerância e respeito por todos em uma sociedade civil, particularmente em relação aos grupos minoritários”. O que pode ser considerado uma sutil advertência de que uma escorregada do novo governo deixaria os norte-americanos francamente desiludidos, o que não seria muito bom para Israel.
Já algumas autoridades de Washington foram ameaçadoras, garantiram que os EUA não iriam tratar com Ben-Gvir, caso ele fosse nomeado ministro (Axio, 2/11/2022).
Por cautela, alguns deputados democratas pró-Israel aconselharam Netanyahu a só revelar a legitimação dos dois supremacistas israelenses antes das eleições, mas o chefão do Likud mostrou-lhes uma banana, dizendo: “eu não vou curvar a cabeça diante dos americanos”.
O mentor
Ben-Givr, Smotrich e seus partidários são adeptos das ideias do falecido rabino Meir Kahane, repelidas até mesmo pela totalidade dos partidos de direita e centro-direita de Israel. Eles apoiam o apartheid, a ocupação militar da Cisjordânia, as demolições de casas e usurpação de propriedades rurais de palestinos, as brutalidades e torturas da polícia, a destruição de aldeias beduínas, os assentamentos judaicos na Cisjordânia e as violências dos assentados judeus contra a população árabe, entre outras barbaridades. Mas o fazem de maneira discreta, às vezes indireta, sempre com justificações.
Já Kahane sai das quatro linhas. E muito! Nascido nos EUA, ele era um rabino peculiar, um supremacista judeu para quem a Palestina poderia ser habitada somente por judeus, como únicos donos e senhores da Terra Prometida. Os árabes que lá viviam não passavam de intrusos nocivos, que só causavam perturbações. Teriam de se mudar para outro país, por bem ou por mal.
Por bem, ganhariam 40 mil dólares para sair. Por mal: seriam expulsos à força, caso teimassem em ficar. Meir Kahane sonhava com a expansão do território atual israelense com a inclusão de partes da Síria, do Iraque e do Líbano. Seria o chamado Eretz Israel dos bons tempos do Velho Testamento.
Como Kahane não excluía a violência (longe disso) para atingir seus propósitos, acreditava em uma guerra perpétua contra os árabes. E várias vezes não vacilou em participar de ações terroristas.
Natural que, nos EUA, onde morou parte de sua vida, foi preso várias vezes.
Sua folha corrida no país era muito pesada: conspirou para manufaturar explosivos; liderou um ataque contra a missão da União Soviética na ONU, ferindo dois funcionários graduados; planejou o rapto de um diplomata soviético; planejou a explosão de uma bomba na embaixada do Iraque em Washington.
Enfim, foi um terrorista de deixar muito jihadista invejoso.
Sentindo que o clima não era bom para suas ações nada legais, Kahane mudou-se para Israel, onde logo pegou uma detenção de seis meses por planejar um ataque contra palestinos, em retaliação ao assassinato dos atletas israelenses nas Olímpiadas de Munique. Tendo fundado seu partido, o Kach, Kahane candidatou-se várias vezes ao Knesset (o parlamento de Israel), sendo sempre derrotado, até conseguir se eleger em 1984.
No Congresso, apresentou muitos projetos de lei (nenhum deles foi aprovado), como a separação entre as vizinhanças de árabes e de judeus, a proibição de relações sexuais de judeus com gentios (os não-judeus), a transferência de todos os árabes para fora de Israel, a revogação da cidadania dos gentios e a proibição do casamento entre judeus e árabes.
Os não-judeus que quisessem viver em Israel teriam três opções: continuar como estrangeiros-residentes (com direitos limitados), abandonar Israel, recebendo uma compensação financeira, ou serem expulsos à força, de mãos vazias.
Em 1988, o Kach foi banido das eleições em razão das práticas violentas dos seus membros. Mas continuou ativo, sob a liderança de Kahane. O que levou o rabino supremacista a ser preso 62 vezes.
Meir Kahane acabou assassinado, em New York, onde fora pregar suas odiosas posições antiárabes, por um egípcio, nascido nos EUA. Legou suas ideias e seu exemplo de vida aos seus seguidores, dos quais Ben-Gvir era um dos mais fiéis e ardorosos.
Os discípulos
Numa foto de 4/11/1995, aparece mostrando o emblema do carro do então primeiro-ministro Rabin, odiado pelos fanáticos por desejar paz com os palestinos. Consta que Gvir teria dito nesse momento: “Nós chegamos a seu carro, Rabin, breve chegaremos a você (Middle East Eye, 8/11/1995)”.
E chegaram. Duas semanas depois, um fanático de extrema-direita assassinou o primeiro-ministro. Não há evidências de que Gvir ou o partido Kach foram cúmplices ou publicamente favoráveis a esse crime.
Mas, em 1994, aplaudiram Baruch Goldstein por ter assassinado 29 palestinos que rezavam numa mesquita, em Hebron, um massacre tão brutal que chocou o mundo e levou o governo de Israel a declarar o Kach uma organização terrorista. Por sua vez, os EUA colocaram o partido na sua lista de entidades terroristas estrangeiras.
Esse nefando crime tornou Goldstein um herói para os judeus de ultra-extrema-direita. Seu túmulo ainda é objeto de veneração, reunindo em preces indivíduos desta categoria.
Dileto discípulo de Meir Kahane, Ben Gvir sempre viu em Goldstein um dos mais respeitados defensores do supremacismo judaico, tendo um retrato desse assassino numa das salas de sua casa. Manteve-o lá, só o retirando quando sentiu que poderia prejudicar sua ascensão política.
Mesmo depois do fechamento do Kach, Ben-Gvir continuou a atuar de forma agressiva e defender as ideias de Meir Kahane. Em 2007, foi condenado por incitação ao racismo, destruição de propriedades palestinas, posse de material de propaganda de organização terrorista e apoio a essa organização.
Recentemente, numa cerimônia em homenagem ao rabino Kahane, com a presença de centenas de israelenses, Bem-Gvir discursou e recebeu estrondosa ovação cada vez que repetia seu apelo para a deportação dos terroristas (referindo-se aos atiradores de pedras e aos deputados palestino-israelenses).
Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, protestou: “para mim é abominável considerar notável o legado de uma organização terrorista (Reuters,10/11/2022)”.
Na campanha de reeleição para deputado pelo partido Força Judaica, em coligação com o Sionismo Religioso, Ben-Gvir defendeu a aplicação da pena de morte aos terroristas palestinos, a expulsão dos árabes considerados desleais ao Estado judeu e a mudança das regras das forças de segurança em combate (rules of engagement) para poderem mais facilmente atirar e matar palestinos (Times of Israel, 10/11/2022).
O conceituado jornal francês Le Monde foi duro e sintético na descrição de Ben Gvir: “Ele é violento. Homofóbico, antiliberal e antidemocrático. Ele acredita na supremacia da lei divina e do povo judeu. Ele acredita na vingança, primeiro contra os árabes, depois contra os não-judeus (Le Monde, 4/11/2022)”.
Em outubro deste ano, participou pessoalmente dos conflitos em Sheik Jarrah, nas vizinhanças de Jerusalém Oriental, entre moradores palestinos locais e grupos de judeus. Foi visto brandindo uma arma e gritando para os policiais abrirem fogo contra os palestinos, que atiravam pedras em resposta à repressão.
Exaltado, Gvir rugia para seus adversários: “nós somos os senhores aqui. Somos os seus senhores”.
O parceiro, Besael Smotrich, líder do Sionismo Religioso, também aficionado do rabino Kahane, partilha das mesmas ideias de Ben-Gvir, porém, dedica-se com especial interesse à perseguição dos homossexuais. “Sou um homofóbico orgulhoso”, afirma sem constrangimento algum (The New York Times, 14/11/2022).
Fazendo jus à sua pregação, o pio líder do Sionismo Religioso participou em 2006 de protestos ruidosos contra a Parada do Orgulho Gay, por ele classificada como execrável.
Ele entrou na política em 2015, elegendo-se parlamentar. Entre as ideias que defendeu está fazer do Velho Testamento a fonte do sistema jurídico nacional. Supõe-se que não integralmente, pois esse documento, que tem uns 3 mil anos, defende que os adúlteros sejam apedrejados... Além de algumas outras proposições igualmente extemporâneas.
Racista convicto, Smotrich afirmou publicamente que as construtoras judaicas não deveriam vender apartamentos para árabes e que o casamento homoafetivo era inaceitável, ainda mais porque os LBGT seriam seres anormais.
Esses dois líderes ultradireitistas ambicionam ocupar posições das mais relevantes no novo governo de Coalizão que Bibi Netanyahu está montando.
Ben-Gvir já informou que seu partido pleiteia nada menos do que três ministérios: Educação, Serviços Religiosos e Segurança Interna, o qual supervisiona a força policial e as prisões e é o preferido por ele (The Cradle, 15/11/2022).
Deixou claro que, no exercício desse cargo, iria tornar muito mais severas as condições das prisões, o que é péssima notícia para os 4.7000 palestinos hospedados nas instalações prisionais israelenses, que, por sinal, não são exatamente das mais humanas do Oriente Médio.
Por sua vez, Bezaleal Smotrich está de olho no Ministério da Defesa, prometendo, caso nomeado para esse alto cargo, fortalecer ainda mais as forças armadas, especialmente para acabar de uma vez com todas com essas “abusivas” esperanças de criação de um Estado Palestino. Infelizmente, o número de manifestantes palestinos (até mesmo pacíficos) mortos pelo exército tenderia a aumentar significativamente.
Smotrich forma ao lado de Ben- Gvir na incitação de ataques contra os palestinos, como nos recentes conflitos em Jerusalém Oriental, e clama pela anexação ilegal por Israel de toda a Cisjordânia (The Cradle, 17/11/2022).
As possibilidades de Bibi Netanyahu atender aos pleitos desses perigosíssimos cidadãos são concretas. A aliança entre os partidos Força de Israel e Sionismo Religioso é poderosa. Afinal eles elegeram 14 parlamentares, constituindo-se no segundo bloco mais votado da coalizão vencedora. Netanyahu depende dos votos deles para poder governar e manter sua posição. Os observadores temem que a influência dos ultradireitistas seria determinante nas decisões do governo (Times of Israel, 3/11/2022).
Ponto de não retorno
Seria desastroso para a paz. Não acabaria com as chances de um acordo com os árabes, da criação de um Estado palestino, do fim da ocupação militar da Cisjordânia, das demolições de casas e roubo de terras palestinas, dos assentamentos, da violência do exército e dos policiais, do apartheid e das leis discriminatórias.
Não se pode acabar com algo que não existe. Porque os dois últimos governos, considerados democráticos de centro ou centro-direita, nada fizeram para acabar todas as injustiças sofridas pelos palestinos. E nunca deram sinal de que fariam algo assim.
O que poderia mudar num regime com viés fascista, além de um grau maior de violência, seria a revelação clara e expressa de objetivos que os partidos ditos democratas, que já governaram o país, escondiam: a anexação de toda a Cisjordânia, com a expulsão da população palestina ou a permanência de uma pequena parte como cidadãos de segunda classe, sem muitos direitos.
Talvez nem tudo esteja perdido. Embora direitista autocrático (mas não tão indigesto quanto os ultras), Netanyahu é um político pragmático.
Caso os EUA e a Europa exijam taxativamente, ele poderá encontrar um jeito de cortar ao menos parte das asas frenéticas dos continuadores do extinto rabino Kahane. Esse desenlace só acontecerá se Biden ousar resistir aos lobbies norte-americanos pró-Israel que, provavelmente, acabarão apoiando Jerusalém, com Ben-Gvir e tudo.
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Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.