Correio da Cidadania

Distopias bolsonaristas

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Justiça exige retirada de garimpeiros da terra Yanomami
Chico Batata/Greenpeace

O que é o Brasil distópico de 2016 a 2022?

No livro Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, o bem humorado escritor baiano mostra os fantasmas das almas de degradados filhos de Portugal e de colonizadores mestiços formando o exército brasileiro com as mesmas (e não podia ser diferente) mentalidades predadoras. Desde então, somos carentes de princípios éticos, políticos e culturais.

Até 1700, Portugal não permitiu escolas para a população. Era proibido nesse século mais que três pessoas em uma esquina de um vilarejo a conversar. Enquanto os países espanhóis tinham universidade desde o século 17, o Brasil só teve sua primeira universidade em 1810.

Não à toa, as elites brasileiras, que precariamente escrevem e falam, odeiam as universidades públicas. Elas odeiam de morte qualquer rastro de cultura e de emancipação social que não seja a dos seus. Talvez um dos mais contundentes livros sobre o futuro que ensejam alguns homens na terra brasilis seja o de Graciliano Ramos, São Bernardo. É a história de um homem de poucos recursos que ascende economicamente e se casa com Madalena, professora, mulher delicada e culta.

Paulo Honório, o antes pobre senhor, agora fazendeiro, rico torna-se um espoliador de seus empregados e um grosseiro marido. Nega a mulher que usa como escudo de suas conquistas materiais. Não é sem desdém que esse ser rude diz: - (…) Isso de ensinar bê-á-bá é tolice. Perdoe a indiscrição, quanto ganha sua sobrinha ensinando bê-á-bá? - (…) Vou indicar um meio de sua sobrinha e a senhora ganharem dinheiro a rodo. Criem galinhas. (…) Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis. (…) Madalena, propriamente, não era uma intelectual, mas descuidava-se da religião, lia os telegramas estrangeiros. (…) Eu tinha razão para confiar em semelhante mulher? Mulher intelectual.

A vida atormentada pelo marido levou-a ao suicídio. Paulo Honório é violento e recebe em troca a perda da única pessoa que não o enganou nos negócios e na existência. Perde ela para uma morte programada para quem vivia num país roto, de homens cínicos.

Pois não é que vivemos essa distopia de modo violento outra vez? As almas colonialistas ainda vivem entre nós. Os fantasmas do moralismo raso, da violência contra mulheres, contra os povos primitivos, negros, pobres, crianças voltou com todo aparato. O destino da nação foi atacado mais uma vez pela peste da ignorância, da grosseria, do patrimonialismo do exército, do deboche da vida.

Vejam a falta ética de generais que chamaram o presidente de covarde. Vejam os vídeos do candidato general a vice falando aos aquartelados em Brasília: Daqui uns dias isso vai mudar. Vejam o tenente coronel, ajudante do ex-presidente, que usou cartões corporativos. Um tenente coronel, jovem rapaz de uma fidelidade canina ao ex-presidente. Deu material para a psicologia tratar de sua incapacidade de tornar-se ele próprio. Vejam as famílias desses senhores. As almas que ainda descem sobre as elites. São elas.

O genocídio dos Yanomami mostra essa distopia da nação brasileira. Matamos os diferentes desde 1500. Não perdemos essa mania, essa violência. É atávica. Faz parte da genealogia das elites.

Hanna Limulja, antropóloga, trabalha com os Yanomami desde 2008. Ela escreveu o livro O desejo dos Outros. Uma etnografia dos sonhos Yanomami. Mostra o papel dos sonhos com a origem da noite para esse povo, que é a origem da entrada deles com um mundo de imagens, animais, plantas e coisas, cuja imagem vital, utupê, permite uma paisagem de afetos e experiências. Desse modo, as imagens dão capacidade para os corpos ganharem habilidades, irem a lugares distantes e conhecer outras coisas. Assim, resistem aos afetos dos mortos que não querem deixá-los sossegados na floresta.

Já imaginamos em nossa quase vã filosofia cristã, uma escola de sonhos? Não. Nossas escolas são quase prisões de lições velhas.

Os sonhos dos Yanomami também mexem com a relação espaço-tempo: o longe fica perto, o futuro e o passado desembocam no presente, diz Limulja. Uma poética que os herdeiros de Paulo Honório, dos primeiros colonizadores, não gostam. São homens da morte.

Marta Bellini é professora doutora aposentada da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Fundamentos da Educação. Foi presidente da Seção Sindical dos Docentes. Publica textos, artigos sobre ensino, educação e distopias impostas à população brasileira.

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