Correio da Cidadania

Tiraileurs senégalaises

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O Senegal é um país localizado na Costa Ocidental da África. Colonizado pela França, conseguiu sua independência em 1960.

É considerado um exemplo de democracia no continente, um dos raros países com eleições livres e respeito pelos direitos civis. Lá não acontecem golpes militares, massacres tribais, prisões de oposicionistas, ditaduras e outros eventos similares em que é fértil a África.

O Senegal mantém boas relações com seu antigo colonizador, a França, apesar de cidadãos do país terem sido objeto de um crime brutal cometido pela sua antiga metrópole. Por sinal, ainda não reparados adequadamente pelo governo dos Champs Elýsées

Nas vésperas do ataque nazista que iniciou a 2ª. Grande Guerra, a França recrutou naturais de suas colônias para lutar em sua defesa. Os senegaleses estavam entre eles. Cerca de 200 mil, os chamados tiraileurs senégalaises (fuzileiros senegaleses) lutaram em defesa da liberdade, que ainda não abrira as asas sobree eles, pobres negros de uma colônia. Participaram da maioria de muitas batalhas e, como qualquer soldado do exército francês, mataram, feriram, aprisionaram inimigos e foram mortos, feridos e aprisionados por eles.

Finda a guerra, na sua política de branqueamento do exército, o general de Gaulle decidiu mandar os africanos para casa, convocando membros da resistência em seu lugar. Na execução dessa ideia, em novembro de 1944, 1.200 fuzileiros senegalenses foram reunidos num acampamento militar em Thiaroey, perto de Dakar, onde aguardavam a ordem de embarque para suas cidades.

A maioria estivera aprisionada em campos de concentração alemães durante quatro anos. Sofreram o diabo, os militares nazistas racistas desprezavam os negros como raça inferior e os submetiam a condições infames.

Depois de saírem da custódia nazista, os trailers passaram algum tempo em acampamentos militares franceses. Lá pouco mudou: o campo era cercado por arame farpado, havia pouca comida e água, eram tratados rudemente pelos oficiais e soldados franceses.

A discriminação fica clara em cartas escritas por eles, mais tarde reveladas ao público.
Numa delas, um soldado senegalês diz: o sofrimento que tiveram de suportar nos campos de concentração alemães continuou nos campos franceses. Eles teriam se tornado “prisioneiros de guerra novamente”.

Mas havia um motivo ainda mais grave para os fuzileiros de Thiaroey se sentirem indignados. O governo francês não estava pagando a remuneração que lhes prometera conceder após a desmobilização. Cartas do Ministério da Defesa garantiam explicitamente que o dinheiro devido seria pago às tropas senegalesas na França metropolitana, antes de embarcarem para o Senegal (The New Arab, 13/1/2023). O que não acontecera.

Os senegaleses protestaram ruidosamente, gritavam que não sairiam do acampamento enquanto a França não cumprisse seu compromisso. O exército francês recusou-se a aceitar o protesto e ordenou aos senegaleses que embarcassem sem demora.

Diante da desobediência continuar, o general Marcel Dagnam resolveu ir verificar in loco o que estava acontecendo. E foi.

Teve seu carro cercado pelos senegaleses, que bloquearam sua passagem, exigindo aos brados o que lhes era devido. O general ouviu e os tranquilizou, prometeu que iria rediscutir a questão com seus superiores.

Os manifestantes acreditaram, jamais duvidariam da palavra de um general da França, e se afastaram, permitindo que o carro seguisse viagem.

Chegando ao quartel, Dagnam declarou que o movimento de protesto era um motim aberto e decidiu dar um show de força para obrigar esses bárbaros insurretos a se submeterem a sua autoridade.

Assim, em 1 de dezembro de 1944, chegaram no campo dos desmobilizados uma unidade de tropas francesas, três carros blindados, equipados com metralhadoras e até um tanque de guerra norte-americano.

Não perderam tempo, abriram fogo, matando a sangue frio muitos daqueles companheiros na guerra contra os nazistas. Oficialmente, foram mortos 35 tiraileurs, sendo posteriormente anunciado mais 35 vítimas fatais, por ferimentos causados pelos tiros.
Relatório do general Dagnan fala em 70 mortos.

Bem mais tarde, em 2000, a historiadora Armalle Mabon suspeita que foram entre 300 e 400, baseada na diferença entre o número de soldados que embarcaram para o Senegal e os que deixaram o acampamento.

O Ministério da Defesa afirmou que o incidente fora um motim, reprimido duramente como fora necessário, depois dos rebeldes negarem-se a obedecer a seus superiores e abrirem fogo contra as tropas francesas.

E a atitude dos africanos teria sido sem sentido, já que o Ministério garantiu que os senegaleses já haviam recebido a pensão prometida antes de partir para o Senegal. Não passavam, portanto, de rebeldes sem causa.

Nada disso se provou. Pressurosos em agradar seus chefes, alguns oficiais inventaram mais alguns contos da carochinha para justificar a escandalosa chuva de balas.

Numa dessas narrativas fake, os nazistas teriam feito a cabeça de fuzileiros senegaleses presos nos campos de concentração, incutindo neles o ódio à França, que explorava o Senegal.

Houve quem espalhasse que os manifestantes possuíam armas fornecidas por militares alemães e com elas deram os primeiros tiros no conflito com as tropas da metrópole.

Em 1945, pouco depois do assassinato em massa, a justiça francesa levou a julgamento 34 soldados considerados líderes e os condenou a sentenças que variaram de 1 a 10 anos de prisão.

Em 1947, condoído da sorte dos mortos e de suas famílias, o presidente social-democrata Vincent Auriol perdoou-os, mas não os ilibou.

Sua piedade não foi suficientemente grande para revogar o corte das pensões das viúvas dos soldados mortos, o que é normalmente concedida a viúvas nessa qualidade.

Provavelmente, os chefes do Exército duvidavam ou mesmo tinham consciência da culpa dos seus representantes em Dacar. Mas não queriam que a população francesa ficasse ao par do massacre. E houvesse embaraçosos questionamentos.

Poderia causar danos à imagem do país, berço da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Impunha-se manter tudo completamente oculto da opinião pública. E o caso Thiaroey foi abafado.

Durante dezenas de anos não foi sequer mencionado nos livros escolares de história. Em vão. Em 1988, um cineasta do Senegal, Ousmane Sembène, lançou o filme Camp de Thiaroye , que documentava o incidente e os eventos que o precederam. Foi um grande sucesso de crítica, ganhando o Prêmio Especial do Juri do Festival de Veneza.

Tinha um bom potencial de atingir a opinião pública francesa com forte impacto. As autoridades evitaram esse risco e proibiram sua exibição nos cinemas. Ninguém na França jamais poderia assistir ao filme.

Cerca de 10 anos depois, a verdade começou a aparecer graças à historiadora Armalle Mabon. Ela passou anos pesquisando arquivos militares e civis da França e do Senegal e pôde reconstituir o que se passara em Thiaorey e seus antecedentes, desmanchando as mentiras oficiais.

Outros pesquisadores se juntaram a ela nos primeiros anos do século 21. Nos arquivos foram encontradas gravações dos fuzileiros iludidos, expressando apenas raiva e decepção, não havia nada que sugerisse uma reação violenta organizada, nem alusões emocionais a motins fantasiosos.

Ficou claro que o crime fora premeditado. O exército viera pesadamente armado para dar uma lição nos “amotinados” que servisse de exemplo a aqueles que pensassem em violar a ordem.

Artigos, livros e debates sucederam-se, abordando a questão. Criou-se uma consciência nacional da injustiça. Porém, as autoridades constituídas custaram a admitir uma realidade que lhes desagradava.

Em 2007, o presidente Sarkozy, depois de afirmar que a África não tinha história (“um insulto à África”, Huffpost, 29/12/2022), também informou que “não lamentava nada” o fuzilamento dos senegaleses inocentes.

A luz começou a se fazer presente quando o presidente Hollande, em 2014, prestou
homenagens oficiais as vítimas do massacre. Ainda foi pouco. O débito da França continuava grande.

Mesmo depois de 70 anos do fim da 2ª Guerra Mundial, até 2014 era dificultada a concessão de plena cidadania francesa aos tirailleurs, prometida em reconhecimento a seus serviços na guerra.

No começo deste ano, no dia 4, o drama de Thairoye foi objeto de um novo filme: “Les Tirailleurs”, dirigido por Mathieu Vadepied. Com uma história de forte conteúdo emocional, mostrava os efeitos cruéis da vileza do exército francês sobre pai e filho, ambos fuzileiros senegaleses.

Diz o pesquisador moçambicano Regio Conrado que o filme vinha “rediscutir uma parte da memória francesa, que não quer ser discutida, que é o problema do racismo estrutural que estava presente tanto da parte do Estado francês, assim como dos próprios oficiais superiores das Forças Armadas francesas”.

Talvez por coincidência, no mesmo dia do lançamento do filme, o governo de Paris anunciou que os ex-combatentes senegaleses não precisariam mais viver metade do ano na França para poder receber suas pensões de guerra, como era obrigatório.

Foi um grande benefício. Infelizmente, poucos poderão aproveitá-lo. Dos 1.200 tiralleurs alvejados a sangue-frio por seus antigos camaradas no acampamento de Thiaroey, só cerca de 40 ainda estão vivos. E todos já passaram dos 90 anos.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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