Horizontes de uma vitória parcial e incompleta
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- Sidnei J. Munhoz
- 31/01/2023
A ampla coalização de forças articulada contra o extremismo de direita no Brasil levou à vitória da Frente Ampla Democrática no processo eleitoral concluído ao final de outubro de 2022. No entanto, é necessário compreender as dimensões dessa vitória e os rescaldos provocados por uma renhida competição alimentadas em grande medida por Fake News que mobilizam as forças derrotadas com vistas à ruptura do Estado de Direito e a instituição de uma via autoritária no país.
Muitos, ao analisarem o processo eleitoral, consideraram uma vitória apertada. Eles não estavam errados, mas isso é apenas parte da história e esconde a extraordinária capacidade da candidatura democrática de enfrentar e de vencer toda a máquina pública ilegitimamente colocada à serviço da candidatura do inquilino do Planalto. Quando escrutinamos esse processo a partir dessa perspectiva a vitória ganha outra dimensão (sobre o tema, veja a minha análise em https://www.correiocidadania.com.br/politica/15273-o-contexto-e-a-dimensao-da-vitoria-democratica).
No entanto, para a coalização vencedora, não basta vencer, é preciso governar, consolidar e ampliar a legitimidade conferida pelas urnas. Nesse campo, apesar do célere reconhecimento internacional da legitimidade do novo governo, ele teve que enfrentar a tentativa de golpe de Estado com o envolvimento de amplos setores das Forças Armadas e das diferentes polícias, e com régio financiamento de setores ligados ao empresariado nacional. O evento golpista atacou os três pilares da República Democrática vigente no país: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Debelado o primeiro ato golpista, é necessário investigar, julgar e punir os responsáveis diretos e indiretos. Ao mesmo tempo, é necessário, buscar a reunificação de um país dividido, fraturado e alimentado por ressentimentos, que podem inclusive desembocar em conflitos civis abertos. Assim, é preciso consolidar a vitória, mas, ao mesmo tempo, é necessário compreender os significados das vozes dissonantes e pensar estratégias plausíveis para superar a atual crise política.
Em ocasiões pregressas, historiadores debruçaram-se sobre os complexos contextos em que forças dispares protagonizavam ações que conferiram singularidade àqueles processos históricos. Enfatize-se a brevidade da discussão desses processos, pois tal debate não é o foco deste artigo.
Edgar de Decca, em seu clássico “1930: o Silêncio dos Vencidos” (De DECCA, 1981), instigou-nos a fazer uma leitura a contrapelo, sob forte influência thompsoniana, da assim chamada “Revolução de 1930”. A obra clássica, apesar das suas controvérsias, cumpriu importante papel na renovação historiográfica brasileira contemporânea e, em especial, cobrou a atenção para a necessidade de ouvir as vozes dos vencidos que, regra geral, desapareciam da História.
Edward Palmer Thompson, na sua magistral “A Formação da Classe Operária Inglesa”, advertia os seus leitores sobre a importância de resgatar as vozes dos vencidos ao sublinhar, logo no prefácio do livro, que apenas os vitoriosos eram lembrados. Enfatizou, ainda, que “os becos sem saída, as causas perdidas, e os próprios perdedores são esquecidos”. Na sequência, Thompson enfatizou que, em seu livro, ele procurava resgatar dos ares de condescendência da posteridade a experiência de agentes reais que atuaram segundo as suas percepções e os seus valores. Ainda segundo o autor britânico, as aspirações desses atores eram válidas nos termos da sua própria experiência e ressaltou: “se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser, condenados em vida, vítimas acidentais” (THOMPSON, 1987, p.13).
Eric J. Hobsbawm, ainda no calor da hora da crise e do debacle dos regimes socialistas autoritários da Europa Oriental, ao analisar aquele processo emblemático e defini-lo como o crepúsculo de uma era, perguntou o que havia restado aos vitoriosos (HOBSBAWM, 1990). De modo instigante, o historiador antevia, lá em 1990, três grandes problemas para a humanidade do século 21: de início, ele ressaltava a crescente diferença entre mundo pobre e o rico e enfatizava que, no interior do mundo rico, também cresciam as diferenças entre os ricos e os pobres; destacava ainda a ascensão do racismo e da xenofobia; e, por fim, previa a emergência de uma crise ecológica. Com certeza, hoje naturalmente poderíamos agregar outros temas a esses antevistos pelo famoso historiador britânico e alguém poderia criticá-lo por não haver previsto outros temas hoje candentes. No entanto, como o próprio autor ressaltou em diferentes momentos da sua carreira, as ações humanas são produto de uma época e dos valores que a conformam. Feito isso, vamos ao que nos interessa.
De que modo esses insights alinhavados por Thompson, Hobsbawm e De Decca podem nos ajudar a interpretar ou a desvendar as encruzilhadas postas pela ascensão da extrema-direita em diferentes regiões do planeta e, em especial, no Brasil?
Como sabemos, a História não é uma ciência exata, mas por intermédio do emprego de uma metodologia apropriada, por meio da adoção de procedimentos adequados, consolidados, testados e validados pelos pares, é possível buscar a compreensão de processos históricos extremamente complexos. Assim, com o rigor do conhecimento acumulado e validado, é possível, por intermédio da análise histórica, armar o nosso olhar com uma lente que possibilite a percepção do conjunto da obra, dos detalhes, das dimensões e das relações estabelecidas entre eles, de tal modo que possamos decodificar o que não é visível a olho nu, ou, em outras palavras, aquilo que não é perceptível fora de uma perspectiva histórica.
Não considero a expansão da extrema direita e, em especial, dos movimentos fascistas como o advento de uma tragédia a se abater sobre a sociedade contemporânea. De fato, ela é parte indissociável da engrenagem e dos mecanismos predominantemente rentistas da atual fase de um neoliberalismo senil e, cada vez mais, desumano e insustentável sem o emprego explícito da violência e da coerção. É aí que entram em cena os movimentos fascistas contemporâneos.
Desse ponto de vista, os seguidores da extrema-direita são os filhos e as filhas do processo de expansão do neoliberalismo globalizado de fins do século 20 e início do 21. Esses agrupamentos são formados por pessoas insatisfeitas com as suas condições de vida e sem perspectivas de melhoras futuras, que se enredam nas tramas falaciosas dos falsos profetas do mercado autorregulador. Eles são incapazes de conectarem-se às demandas de um mercado de trabalho cada vez mais exigente e seletivo, que requer cada vez menos braços e aspira a intensificação do emprego de máquinas robotizadas para ampliar os lucros dos investidores.
Nesse contexto, esses agrupamentos são levados a buscar culpados fantasiosos para a sua situação. Assim, adotam posturas mascaradas por um pseudonacionalismo, endossam as teses xenófobas e retomam lemas fascistas como “Deus, pátria e família”. No entanto, como as raízes dos problemas que os afetam são muito mais complexas e de difícil solução, conforme o contexto piora, esses agrupamentos tendem a radicalizar as suas ações contra os supostos responsáveis pelas mazelas que os afetam. O que está distante dos seus horizontes é que as suas ações possuem o efeito perverso de agudizar os seus níveis de exploração e, desse modo, contribui à piora das condições que, em tese, eles pretendem superar.
Por fim, a questão climática coloca em risco não apenas a sobrevivência da espécie humana, mas de toda a vida no planeta, uma vez que a destruição da natureza atingiu patamares a partir dos quais ou estamos muito próximos do ponto de não-retorno, ou, conforme afirmam alguns cientistas, já o ultrapassamos.
Os problemas multifacetados e complexos anteriormente expostos foram agravados drasticamente em consequência da expansão incomensurável das redes sociais. Nelas, os efeitos perversos dos algoritmos privilegiam e dão maior visibilidade à violência e ao ódio, pois eles chamam mais a atenção e, desse modo, atingem um público maior, conquistam mais anunciantes e geram mais lucros a essas gigantes digitais. Em síntese, a prevalecer o atual contexto, a perspectiva futura é de crescimento da ignorância, de expansão da violência contra inimigos fantasiosos, muitas vezes criados para atender a objetivos espúrios e de propagação de saídas miraculosas para uma crise sem solução nos marcos da atual fase do capitalismo liberal. Não há alternativas milagrosas, ou deciframos e regulamos o monstro ou ele nos devorará.
No Brasil, a situação não é muito diferente e, em grande medida, é correlacional ao contexto global. Contudo, aqui a reverberação da conjuntura mundial ganha contornos mais deletérios, ocasionados pela emergência de uma liderança sem escrúpulos ou freios morais. Em nosso país, o líder da extrema-direita fascista manipulou os seus seguidores, em um primeiro momento, para conquistar o poder de Estado, depois para subordinar as instituições democrático-republicanas, com vistas à sua perpetuação no poder e, por fim, quando derrotado em um democrático e inquestionável processo eleitoral, insuflou os seus seguidores na tentativa de destruir as instituições democráticas vigentes no país.
Nesse contexto, o programa mínimo definido por uma Frente Ampla com o objetivo de reconstrução nacional implica sustentar as instituições democráticas e o Estado de Direito, sob feroz e permanente ataque. Aqui os deserdados também são filhas e filhos do neoliberalismo voraz que traga tudo ao seu redor e devora até as entranhas dos rincões mais afastados das nossas terras, como vemos acontecer, com os povos originários e, em especial, com a tragédia anunciada que se abate sobre os Ianomamis.
Convém ressaltar que na contextura brasileira, durante o processo de democratização, de um lado, houve o estrangulamento do catolicismo da Teologia da Libertação, na ocasião, sob forte pressão de um vaticano retrógrado e míope. De outro, sobreveio o abandono da estratégia de organização em núcleos de base pelo emergente Partido dos Trabalhadores. Essas interrupções deixaram espaços livres para o crescimento avassalador de outro ator que atuava nas periferias e áreas pobres das cidades brasileiras: os evangélicos, então irrigados inclusive com recursos provenientes do exterior.
Como apontado, o contexto da época era bastante complexo, no entanto, intuo que o vácuo gerado pela retração na atuação de setores progressistas facilitou as condições para o crescimento de um conservadorismo que, cada vez mais, passou a ser visto por certos setores da população, em especial os mais pobres e também parcelas de uma classe média remediada, como uma manifestação do seu modo de ser e uma expressão dos seus valores.
Agora, retorno ao tema levantado ao início deste artigo. Apesar de apertada, conforme já apontei em artigos anteriores, a vitória contra as forças da extrema-direita foi colossal. Foi uma vitória da civilização contra a barbárie. Foi o triunfo da democracia contra o autoritarismo. No entanto, a consolidação dessas conquistas dependerá da capacidade das forças progressistas darem respostas à altura da situação.
Ao final do pleito eleitoral e, em especial, após a tentativa de golpe, restou um país dividido, fraturado, refém de Forças Armadas defensoras dos seus privilégios à revelia dos interesses da nação. Restou uma elite capitalista descompromissada com um projeto de país. Em seus devaneios autoritários, muitas das suas lideranças optaram por desempenhar um papel de coadjuvante dos especuladores internacionais, desde que garantidos os seus próprios interesses. Nessa seara, soberania e interesses nacionais foram para as cucuias.
Por fim, restaram os mais de trinta milhões de famintos; restaram milhões de desempregados e de subempregados; restaram centenas de milhares de pessoas incultas, violentas e armadas; restaram as milícias e as associações entre elas, certas igrejas e o tráfico; restou um Congresso clientelista e pervertido; restou um judiciário que, agora, tenta domar a crise com a mão de ferro, mas que tolerou e mesmo contribuiu para que a situação chegasse aonde chegou. O novo governo tem que manter o equilíbrio das forças que o sustentam em meio a esse contexto bastante adverso. É óbvio que o governo procura aproveitar a força da sua vitória eleitoral e o apoio internacional rapidamente demonstrado pelas principais lideranças globais. No entanto, esse balanço é muito delicado, pode em breve tornar-se muito perigoso e não temos tempo para dar ao tempo e esperar para ver o que vai acontecer.
Referências:
De DECCA, Edgar. 1930: o silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981.
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
HOBSBAWM, Eric. 1989: to the victor the spoils. The Independent, 2/10/1990, p. 19.
Este texto é uma versão modificada e ampliada de “O que restou para os vitoriosos” publicado em 27/01/2023 no portal TPD.
Sidnei Munhoz é historiador e autor de Guerra Fria, Historia e Historiografia.
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