31 de março? Não basta o 8 de janeiro de 2023?
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- Marta Bellini
- 06/02/2023
Esta semana o ministro da Defesa do governo federal veio, a público, dizer que está trabalhando para a pacificação do governo e militares. Afirma que o dia 31 de março poderá ser comemorado se o diálogo prosperar entre as partes.
Que pacificação, senhor ministro? O governo não atacou os militares. Não se trata de pacificação, mas de tornar ainda mais cristalinos os limites às ações dos militares que acabaram de participar, ao que todos os fatos indicam, de um golpe contra o governo democraticamente eleito, do presidente Lula, que culminou em 8 de janeiro de 2023.
Depois de 1988, com o fim da ditadura militar, o Brasil não se livrou das ameaças de golpes. Vivemos numa gangorra na qual a democracia sempre é jogada para baixo em nome do mercado, de privatização da educação, da moral e, desde 2016, de escolas militarizadas, de escola sem partido e da famigerada aprovação da Base Nacional Comum Curricular, a BNCC, efetivada com as mãos do empresariado ligado ao Instituto Lemann, o mesmo empresário que está envolvido com o fim das Lojas Americanas e, também, ao que tudo indica, da Ambev, por fraude na contabilidade.
Alguns militares acreditam, ou querem nos fazer acreditar, que lutam contra o comunismo. Muitos sabem que não é isso. São arguciosos demais para fazer dessa tese sua verdade. Não há a mínima possibilidade de termos comunismo no Brasil. Não é preciso ser muito inteligente para entender isso.
A verdade é que o Brasil nasceu de uma imensa desigualdade social. Indígenas foram dizimados e suas terras roubadas. Africanos foram escravizados. O Brasil foi o último país da América a abolir a escravidão. Essa desigualdade não apenas permaneceu como, em muitos momentos históricos, foi acirrada. Qualquer mudança social, por mínima que seja, não é comunismo, é algo próximo à socialdemocracia.
Pode se chamar o Brasil de o país das patologias sociais ou de mal-estar da civilização, um lugar do racismo estrutural entranhado nas relações do dia-a-dia misturado ao orgulho e à arrogância das elites. Nas palavras de Joel Birman, renomado psicanalista brasileiro, o que sempre tivemos no país foi um estatuto da criminalidade, da agressividade e da violência contra os negros, os pobres, os indígenas e as mulheres. Quantos colegas negros, nós, brancos, os tivemos nas escolas em que estudamos? Quantas piadas ouvimos sobre a “preguiça” indígena? Quantas famílias escondem os seus parentes negros e indígenas quando “embranquecem”?
Com o governo golpista de Temer abrimos a fenda para a nova devoração dessas populações. Temer encheu o seu governo de militares e, curiosamente, no governo dele tivemos o desaparecimento das fronteiras para impedir a rota de escravos humanos no Brasil. Onde estavam os militares para a defesa dessas fronteiras desde 2016?
A desigualdade social foi promovida a um primeiro plano, pauperização dos mais pobres, enriquecimento dos mais ricos. Temer fez a reforma da previdência, descartou a carteira de trabalho e aplicou o teto de gastos. O Brasil é o único país do mundo com teto de gastos por duas décadas e com cortes em áreas como a saúde, educação e segurança. A Holanda e a Finlândia o adotaram, por 4 anos na década de 1990. No Brasil, isso significou até agora um brutal esvaziamento de servidores dos serviços públicos. Nada de concurso. A recomendação era a privatização de escolas ou a sua militarização. O teto foi e é a vida para a total destruição dos serviços públicos.
O teto de gastos deixou à vontade um antigo projeto, o de belicizar a precária escola pública. A militarização ocorreu para alguns militares obterem soldos a mais e criar um fundamentalismo militar religioso com diretores fardados e armados na escola. A senha era domesticar os filhos dos pobres, talvez torná-los também militares.
O ex-inquilino do Planalto aprofundou essa estratégia fundamentalista militar religiosa. É claro que não se explica o ex-presidente sem um processo histórico de longa duração. Mas ele foi além. Aboliu as ciências, as tecnologias, a cultura, as bibliotecas e deixou as escolas e instituições científicas à míngua.
A pandemia da Covid-19 foi tratada por agentes mercadores e até cloroquina foi feita pelo exército. Os desmatamentos das florestas e matas, especialmente as da Amazônia capitaneada pela cobiça do ouro, impuseram a matança aos Yanomami. Um general disse que os Yanomami não sabem lavar panelas e moram em ocas. Ora, um general que ganha um dos maiores salários da alta patente precisa saber que os povos yanomami não usam as panelas que ele, provavelmente, usa, feita por uma indústria cara e onerosa à natureza.
Um general que fez um curso universitário sabe que as ocas têm um sistema de ventilação melhor do que um apartamento que usa ar condicionado que provoca efeito estufa. Suas referências desqualificadas aos povos originários não são feitas à toa. Elas produzem efeito na turba fascista que odeia as populações que vivem de maneira diferente dos embranquecidos.
Fazer a comemoração do dia 31 de março em referência ao golpe de 1964 é idolatrar a ditadura e também é parte de uma tentativa de instituir um outro tipo de ditadura, inclusive uma ditadura do pensamento inteligente, criativo e afetuoso.
As frentes nos quartéis, as manifestações fascistas nas ruas com senhores idosos pintados de verde, amarelo e azul, a recusa em aceitar o resultado democrático das eleições teve cobertura de muitos militares. A bomba fabricada por três homens que estiveram no Planalto com senadores e uma ministra foi vista por pessoas que estiveram diante do quartel em Brasília. O dia 8 de janeiro teve senha distribuída por pessoas de dentro do Planalto. Vimos pela televisão a omissão do Exército, da Policia Militar e da Policia Civil.
Por que, agora, insistir em comemorar o 31 de março trazendo à tona o dia 8 de janeiro?
Não será a pacificação proposta pelo ministro da Defesa uma estratégia de guerra desses generais contra um governo democrático? Não seriam esses atos parte de uma bem elaborada estratégia lenta e gradual de articulação de outros novos golpes, até que um deles possa vingar? Lembremo-nos do Chile.
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