“Pacote da Destruição” avança mesmo depois da tragédia no Sul
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- Leanderson Lima
- 15/05/2024
Com alarde, os congressistas aprovaram, em 9 de maio, mudanças no Orçamento e na Lei de Diretrizes Orçamentárias para facilitar a liberação de recursos para ajudar o Estado gaúcho. Mas os estragos que mobilizam milhões de brasileiros numa corrente de solidariedade não sensibilizaram, em particular, a bancada ruralista e conservadora. Em resposta à maior tragédia ambiental do sul do país, esses parlamentares fizeram avançar o chamado “Pacote da Destruição”.
Na surdina, 8 de 25 projetos antiambientais tramitaram no Congresso nos dias em que o Brasil, atônito, via o Rio Grande do Sul ser devorado pelas águas. Em 21 de abril, a MetSul Metereologia emitiu os primeiros alertas de chuva intensa no Rio Grande do Sul. A previsão indicava acumulados de até 200 milímetros entre o fim de abril e o começo de maio. Dois dias antes, os deputados federais da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) aprovaram o PL 10.273/2018, de autoria do deputado Jerônimo Goergen (PP/RS). Esse projeto de lei, na prática, exclui o imposto de atividades poluidoras, como é o caso da mineração.
A Taxa de Controle e Fiscalização do Ibama (TCFA) existe desde 2000 e foi criada para destinar recursos para as equipes do Ibama que vão a campo. É, assim, uma pedra no sapato dos congressistas contrários às questões ambientais. A estimativa é que o Ibama perderá pelo menos 25% do seu orçamento caso o PL 10.273 seja aprovado. No ano passado, o governo arrecadou 700 milhões de reais com a TCFA. O deputado Nilton Tatto (PT-SP) e outros parlamentares apresentaram recurso, cujo prazo vencia dia 8 de maio. Cabe ao plenário da Câmara decidir se vai examinar a matéria.
Em 22 de abril, o PL 3087/2022 avançou para a Comissão de Meio Ambiente no Senado Federal. O projeto de lei reduz o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, uma unidade de conservação localizada nos estados do Amapá e Pará. O desmembramento previsto no projeto, que teve relatoria de um senador do União Brasil, o paranaense Sergio Moro (ad hoc, em substituição ao colega Plínio Valério, do PSDB do Amazonas), vai facilitar a vida dos garimpeiros ilegais, que já pressionam o território protegido.
No fim de março, o PL 364/2019, que elimina a proteção dos campos nativos da mata atlântica, foi aprovado na CCJC. Relatado pelo deputado Lucas Redecker (PSDB/RS), o PL teve seu prazo de recurso vencido no dia 23 de abril, já em meio à inundação do Rio do Grande do Sul. A deputada Erika Hilton (Psol/SP) apresentou recurso, que também depende da boa vontade da Mesa Diretora liderada pelo agropecuarista Arthur Lira (PP/AL). Caso avance no Congresso, esse texto deixa desprotegida toda vegetação “não florestal”, que poderá ser ocupada por atividades como agricultura, pastagem e mineração.
Esses são apenas alguns dos projetos antiambientais mais polêmicos que tramitaram nos últimos dias. “Todos os dias, em semanas de trabalho no Congresso, as comissões têm apresentado pautas com retrocesso [ambiental], seja na Câmara, seja no Senado”, comenta a coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo. Em particular, o PL 364 tramitava há anos e tratava apenas da mata atlântica, mas o texto aprovado sequer menciona o bioma. Ou seja, tira a proteção de todas as vegetações não caracterizadas como florestas, mesmo se não tiver ocorrido desmatamento.
“Se provar que os seus bois passearam lá, mesmo que você não tenha desmatado, vai passar a ser caracterizado como área rural consolidada. Em termos de ataque à vegetação nativa nos diferentes biomas, é um crime histórico”, destaca Suely. A coordenadora do Observatório do Clima alerta que, se o PL for aprovado, uma parte relevante do pantanal passaria a ser qualificada como área rural consolidada, portanto sujeita a menos proteção por parte da legislação. Caso aprovado, o PL 364 pode comprometer mais de 50 milhões de hectares de vegetação em todo o País.
Caos climático
Enquanto o Brasil assiste ao caos climático, que vai da seca histórica de 2023 na Amazônia à cheia recorde que afeta agora 428 das 497 cidades do Rio Grande do Sul, o Congresso antiambiental e contra povos indígenas segue “passando a boiada”. No ano passado, foram promulgadas as Leis 14.701, originada do PL do marco temporal e cria uma instabilidade jurídica sobre as demarcações de terras, e a 14.785, apelidada de PL do Veneno, que libera o uso dos agrotóxicos.
Neste ano, o Congresso continua avançando com o “Pacote da Destruição”. O Observatório do Clima levantou a existência de 25 projetos de leis e 3 propostas de emendas à Constituição atualmente em tramitação. Alguns estão parados desde legislaturas passadas, enquanto outros seguem sendo discutidos. Todos têm alta probabilidade de avanço imediato, já que a pauta ambiental se tornou uma espécie de moeda de troca entre a bancada ruralista e conservadora com o Executivo.
O PL 3.334/2023, que autoriza que imóveis rurais localizados em áreas de floresta na Amazônia Legal possam reduzir a cobertura mínima de vegetação de 80% para 50%, deveria ser votado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado nesta semana, mas acabou saindo da pauta por conta da licença médica do relator do projeto, o senador ruralista pelo Acre, Márcio Bittar (União Brasil). A previsão é que o PL retorne à pauta na próxima semana.
De acordo com Suely Araújo, o PL 3.334 faz parte de um conjunto de propostas que alteram o Código Florestal. “Sempre tem projeto alterando o Código Florestal. Ele reduz a reserva legal nos municípios que têm áreas protegidas. Isso é uma demanda frequente da bancada ruralista”, revela.
“Tapa na cara”
Para o geógrafo e ecólogo Carlos Durigan, todo o “Pacote da Destruição” traz elementos de extrema gravidade para a preservação ambiental. Porém, ele considera os PLs 3.334 e o 364 como os que devem gerar um grande impacto nos esforços de contenção do desmatamento. Isso porque reduzir reservas legais na Amazônia acenderá um sinal verde para o avanço do desmatamento.
“Irá elevar o grau de ameaças a ambientes únicos de vegetação de campos e savanas naturais, lares de espécies endêmicas e que também possuem papel relevante na manutenção de serviços ecossistêmicos”, ressalta. Em ambos os casos, com a aprovação desses PLs, lembra Durigan, o Brasil estaria ignorando seus compromissos em acordos internacionais e atuando na contramão dos esforços globais para contenção de emissões de gases de efeito estufa.
O geógrafo e ecólogo classifica o “Pacote da Destruição” como um tapa na cara da sociedade brasileira. “Inacreditável que diante de um cenário de grandes desafios relacionados à manutenção da qualidade de vida e ainda da proteção do nosso patrimônio natural nacional frente a tanta degradação, ainda tenhamos que enfrentar tantos atos institucionalizados pelo Congresso que certamente aumentam expressivamente problemas que já vivemos”, pontua.
Efeitos na prática
Para o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Henrique Pereira, os projetos do “Pacote da Destruição” estão diretamente associados às políticas ambientais de comando e controle, especialmente àquelas associadas à Lei de Proteção da Vegetação Nativa (LPVN) de 2012, resultante da revisão do Código Florestal de 1965, como a reserva legal e com instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente de 1981 como o Zoneamento Econômico Ecológico e o Licenciamento.
“Pautas que vêm sendo perseguidas pela bancada ruralista, principalmente, e buscam a maior ‘flexibilização’ desses instrumentos. A atual geração de PLs antiambientalistas procura emplacar propostas menos radicais como a extinção desses instrumentos por completo, propondo como alternativa, sua ampla flexibilização”, descreve.
Henrique Pereira aponta também os impactos que esses projetos podem trazer ao meio ambiente e aos ecossistemas, caso aprovados. “Cada uma dessas propostas resulta em impactos específicos. O PL 3.223 é uma ‘radicalização’ de previsão semelhante presente no artigo 12 da LPVN e provocaria um desmatamento legal extra já que a redução da área de reserva legal para 50%, na Amazônia Legal deixaria de ser aplicada apenas para os casos de recomposição, ou seja, quando as áreas de reserva legal já tenham sido desmatadas”, explica.
Já o PL 10.273, aponta o diretor do Inpa, trata de tema antigo e de disputa entre os Estados e a União (leia-se Ibama) que é o caso da cobrança da TCFA que financia todo o sistema ambiental. “O certo seria aproveitar essa reforma para atualizar, tornar mais justa do ponto de vista distributivo e aperfeiçoar a gestão e a governança desse instrumento, para que deixe de ser uma mera cobrança e passe a gerar dados para o sistema nacional de informações ambientais que, embora previsto em lei, nunca chegou a ser implementado”, analisa.
Para Henrique Pereira, a proposta do conjunto do “Pacote da Destruição” com maior impacto negativo é o PL 364. “É a que fere de modo mais grave diversos princípios ecológicos ao desobrigar o proprietário ou o possuidor rural de manter a reserva legal e as áreas de preservação permanente em fitofisionomias não florestais, em diferentes biomas”, adverte. O diretor do Inpa lembra que ao negar a proteção a esse tipo de vegetação nativa, o legislador está condenando à extinção incontáveis espécies endêmicas da flora, com efeito de extinção em cascata e à destruição de todos os serviços ecossistêmicos providos por esses sistemas. Na prática, causarão o efeito oposto aos dos que querem frear o aquecimento global.
Congresso inimigo do clima
O secretário-executivo do Observatório do Clima, Márcio Astrini, relembra os últimos quatro anos da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) como um período de destruição da agenda ambiental. “Não que essa agenda não fosse atacada antes, mas no governo Bolsonaro ela sofreu de forma planejada. Toda a tentativa de enfraquecimento da legislação, como o das agências de fiscalização, de tudo aquilo que protege o meio ambiente no Brasil, foi feito de forma planejada”, afirma.
Astrini disse acreditar que, ao fim do governo Bolsonaro, as coisas caminhariam para um “eixo de normalidade”, o que não está acontecendo. “O que nós temos é um governo Bolsonaro que se foi, mas está sendo substituído pelo Congresso. É uma verdadeira máquina de destruição ambiental. Se a gente tivesse que nomear o principal inimigo do meio ambiente e da agenda de clima, sem dúvida seria o Congresso Nacional”, dispara.
O ambientalista sustenta o seu ponto de vista com base na série de PLs em pauta que acaba com qualquer espécie de proteção ao meio ambiente, à fauna, à flora, e às florestas. “Parece que a função do Congresso hoje é destruir o meio ambiente. São assim, dezenas, infelizmente, essa é a contagem, dezenas de projetos de lei. E se você pegar nessa lista, se tem algum bom para o meio ambiente, algo que proteja mais, mesmo sendo um pedaço de mata, algum local, algum rio, você não encontra. A gente só encontra problema, a gente só encontra retrocessos”, lamenta.
Segundo Astrini, o “Pacote da Destruição” vai na contramão do mundo, e ele lembra que o país vai hospedar a Conferência do Clima. “Nós vamos ser o centro do mundo daqui um ano e alguns meses, em novembro de 2025. É aqui no Brasil que mais de 190 países vão se reunir para colocar seus acordos em cima da mesa, suas promessas, para debater a agenda de clima. O Brasil se coloca como protagonista, mas nós temos um Congresso que está dizendo não para tudo isso. É um Congresso que trabalha pela destruição, é um Congresso que trabalha pela poluição, é um Congresso que trabalha para aumentar o problema da crise climática”, diz.
Vozes contrárias no Congresso
Deter os avanços das pautas antiambientais na Câmara e no Senado é uma tarefa hercúlea para 179 deputados e 14 senadores, a parcela que se opõe à bancada ruralista. No Congresso, quem coordena a Frente Parlamentar Ambientalista é o deputado Nilto Tatto (PT-SP), que ressalta a preocupação governamental com a agenda ambiental. O parlamentar lembra o trabalho de restabelecimento de órgãos como Ministério do Meio Ambiente, Ibama e ICMBio, Serviço Florestal, a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério dos Povos Indígenas, o programa de Transformação Ecológica coordenado pelo Ministério da Fazenda, como parte das ações governamentais para levar a agenda ambiental para o centro das decisões políticas.
Para Tatto, o que há hoje no Congresso, em especial na Câmara dos Deputados, é uma tentativa de “enquadrar” o próprio Executivo para não tocar adiante a agenda ambiental: “Que é o compromisso do Brasil em especial no acordo do clima, de redução do desmatamento, uma vez que o desmatamento representa boa parte das emissões que o Brasil emite de gás de efeito estufa que provoca o aquecimento global, e aí a gente vem assistindo o avanço de determinadas propostas que representam o retrocesso do ponto de vista da legislação ambiental, das conquistas do ponto de vista da legislação ambiental e da própria Constituição, por isso que a gente viu a ser aprovado o marco temporal e o projeto dos agrotóxicos”, lembra Tatto.
O coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista aponta o perigo do PL 510/2021, já aprovado na Câmara e que está no Senado, que trata sobre a questão do licenciamento ambiental e da regularização fundiária. “Vai legalizar terras públicas ocupadas pelo latifúndio, em especial na Amazônia”, alerta. Para Tatto, o Congresso, em especial o Centrão, quer que o governo federal não leve à frente os compromissos tanto nos acordos internacionais, os quais o Brasil é signatário, bem como aquilo previsto na própria Constituição, e o “Pacote da Destruição” tem essa finalidade.
“O povo brasileiro tem na memória o significado que foi o desmonte de todo o sistema nacional de meio ambiente no governo anterior, que provocou o aumento de desmatamento. Ficou muito ruim para a imagem do país. Neste ano, o Brasil preside o G20 e no ano que vem vai organizar a Conferência do Clima em Belém. O Brasil precisa mostrar para o mundo todo que também vai fazer a sua lição de casa e por isso não tem sentido avançar e aprovar projetos de leis que vão contra esta agenda que é ruim para o Brasil e a agenda que eu digo para vocês novamente é inconstitucional, inclusive”, finaliza.
Leanderson Lima é jornalista do Amazônia Real, onde esta matéria foi originalmente publicada.
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