Correio da Cidadania

O dividendo do decrescimento populacional e a ampulheta vulnerável

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O decrescimento demográfico já é uma realidade em dezenas de países do mundo. Na Europa são muitos países que estão encolhendo, inclusive grandes nações como a Espanha e a Itália. A população russa diminui desde 1993. Na América Latina e Caribe já apresentam redução do número de habitantes a Jamaica, Porto Rico e Cuba. A China que era o país mais populoso do planeta – com 1,42 bilhão de habitantes – iniciou uma fase de decrescimento da sua população em 2022 e deve chegar em 2100 com cerca da metade do número atual de chineses.

Pelas projeções da Divisão de População da ONU, o pico da população global deve ocorrer no início da década de 2080 e o decrescimento populacional mundial vai prevalecer nas duas últimas décadas do atual século. Portanto, o decrescimento demográfico já está presente em muitos países e vai se generalizar para todo o globo ao longo do século 21.

Neste quadro, o candidato a vice-presidente na chapa de Donald Trump nos Estados Unidos, JD Vance, criticou as mulheres sem filho (“Childless Cat Lady”) e tem dito repetidamente que os americanos não estão tendo os filhos suficientes para a grandeza do país. Outras figuras da direita concordam com ele e dizem que a queda da fecundidade é uma ameaça à economia dos EUA. O bilionário Elon Musk, dono da rede social X, ampliando a reclamação, disse que “o colapso populacional devido às baixas taxas de natalidade é um risco muito maior para a civilização do que o aquecimento global”.

O conservadorismo moral e o fundamentalismo religioso, além das pessoas que cultuam o desenvolvimentismo a qualquer custo, interpretam o envelhecimento populacional conjugado com o decrescimento demográfico como “suicídio populacional” ou “inverno demográfico”, como se fosse uma recessão demoeconômica catastrófica.

Contudo, a queda da fecundidade tem sido um pré-requisito para a redução da pobreza e da fome. Não existem países ricos e com alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) com estrutura etária jovem. A transição demográfica gera uma mudança na estrutura etária que abre uma janela de oportunidade para a prosperidade social. Enriquecer e envelhecer são fenômenos sincrônicos.

A inversão da pirâmide populacional deve ser vista de forma positiva, pois, de modo geral, a redução do contingente de pessoas na base da pirâmide favorece a ampliação das matrículas escolares, a melhoria da qualidade do ensino, os cuidados com a saúde e a inserção produtiva no mercado de trabalho.

Gerações menores devem facilitar a adaptação às consequências da crise climática e ambiental que vai se agravar nas próximas décadas e séculos.

Mulheres com menos filhos podem dedicar menos tempo às tarefas reprodutivas e mais tempo às tarefas produtivas. O empoderamento feminino contribui para a mobilidade social ascendente de todos os membros da família e para a prosperidade das comunidades e das nações.

Desta forma, o envelhecimento populacional, mesmo sendo inexorável, não implica necessariamente em retrocesso nos indicadores sociais, como pensam os analistas mais pessimistas. A prosperidade social pode ser alcançada aproveitando o 2º bônus demográfico (bônus da produtividade) e o 3º bônus demográfico (bônus da economia prateada), mesmo na situação de decrescimento do número de habitantes.

Como mostramos no artigo “Urbanization and fertility decline: Cashing in on Structural Change” (Martine, Alves, Cavenaghi, 2013): “Podemos considerar, então, que a cidadania é o melhor contraceptivo e que o aprofundamento das transições urbana e demográfica, onde ocorreram, foram fundamentais para a redução da pobreza e para a ampliação do desenvolvimento humano. Este processo é sinérgico e holístico, pois uma transição reforça a outra e ambas, adequadamente administradas, podem contribuir para a sustentabilidade ambiental”.

O artigo “Ageing and population shrinking: implications for sustainability in the urban century” (Jarzebski, et al, 2021) mostra que a mudança da estrutura etária gera um “dividendo demográfico do decrescimento”, tanto na área social, quanto na área ambiental.

Os autores mostram que o envelhecimento populacional e o decrescimento do número de habitantes são totalmente compatíveis com a Agenda 2030 da ONU e as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Mas, em especial, é uma situação que favorece a redução da Pegada Ecológica e a defesa do meio ambiente. Eles chamam de “dividendo do despovoamento” a situação favorável à restauração ecológica.

Adicionalmente, os autores mostram que uma política pronatalista para se contrapor ao decrescimento populacional pode dificultar o enfrentamento das questões sociais e ambientais. O lado esquerdo da figura abaixo, representa o “dividendo do despovoamento”, enquanto o lado direito representa a “ampulheta vulnerável”, que é uma situação de aumento da razão de dependência demográfica, com baixa proporção de pessoas em idade ativa e alta proporção de dependentes, jovens e idosos.



De fato, existe muito alarde sobre a baixa fecundidade e o decrescimento populacional. Mas o artigo “Fertility in High-Income Countries: Trends, Patterns, Determinants, and Consequences” (David Bloom et al, 17/04/2024) considera que melhor educação das crianças, maior participação na força de trabalho (particularmente das mulheres), maiores investimentos em tecnologias que economizam mão de obra e aposentadoria mais tardia compensarão algumas consequências econômicas potencialmente negativas.

Eles dizem: “Os formuladores de políticas têm escopo para reagir ao declínio da fecundidade com políticas econômicas cuidadosamente projetadas que utilizam complementaridades e sinergias, incluindo políticas que permitem que as famílias conciliem as responsabilidades relacionadas à família com as responsabilidades relacionadas ao trabalho; políticas que garantem níveis socialmente ótimos de imigração (com salvaguardas para proteger contra fuga indevida de cérebros); maior investimento na educação e saúde da próxima geração, que estará na força de trabalho nas próximas décadas e cuja produtividade é vital para garantir prosperidade econômica; investimentos em áreas de aumento de produtividade, como infraestrutura e pesquisa básica e aplicada; e fomento à participação na força de trabalho de trabalhadores mais velhos, investindo na saúde da população e modificando as políticas de aposentadoria para incentivar a aposentadoria mais tardia”.

Ou seja, o cenário do “dividendo do despovoamento” ou “dividendo do decrescimento populacional” é uma situação muito melhor do que o cenário da “ampulheta vulnerável”.

O fato é que será melhor ter uma população com menor número de habitantes, mas com melhor qualidade de vida humana e ambiental, do que ter uma população numerosa, mas com prevalência dos problemas econômicos e ampliação da pobreza social e ambiental.

 

Referências:

George Martine, Jose Eustaquio Alves, Suzana Cavenaghi. Urbanization and fertility decline: Cashing in on Structural Change, IIED Working Paper. IIED, London, December 2013. ISBN 978-1-84369-995-8
http://pubs.iied.org/10653IIED.html?k=Martine%20et%20al 

Jarzebski, M.P., Elmqvist, T., Gasparatos, A. et al. Ageing and population shrinking: implications for sustainability in the urban century. npj Urban Sustain 1, 17 (2021). https://doi.org/10.1038/s42949-021-00023-z 

David E. Bloom, Michael Kuhn and Klaus Prettner. Fertility in High-Income Countries: Trends, Patterns, Determinants, and Consequences. Annual Review of Economics Volume Vol. 16:159-184, April 17, 2024
https://doi.org/10.1146/annurev-economics-081523-013750 

José Eustáquio Diniz Alves é doutor em demografia
Publicado originalmente em EcoDebate.

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