A não tributação de grandes fortunas
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- Guilherme Klein Martins, João Pedro de Freitas Gomes e Guilherme Arthen
- 07/11/2024
Como publicado em reportagem da Folha no dia 9 de outubro, o governo estuda a criação de um imposto mínimo sobre milionários como forma de compensar a ampliação da faixa de isenção de IRPF para R$ 5 mil, promessa de campanha do presidente Lula. Como indicado em estudo da Warren Investimentos divulgado pela Folha de São Paulo, a proposta tem potencial arrecadatório não desprezível; contudo, sua capacidade de compensar a ampliação da isenção e seus efeitos na desigualdade não são evidentes.
Utilizando dados da tabela de centis da Declaração do Imposto de Renda de Pessoa Física (DIRPF) e da PNADc, estimamos o efeito das medidas propostas, tanto do ponto de vista arrecadatório, quanto distributivo. A razão pela qual optamos pela combinação das bases é que a DIRPF possui informações somente quanto à população declarante de imposto de renda, assim, impedindo que se faça análises distributivas que considerem toda a população, enquanto a PNADc tende a não conseguir capturar a renda do topo. Assim, combinando as duas, é possível tanto obter um retrato mais preciso do topo da distribuição de renda, quanto realizar exercícios que envolvam toda a população.
Dois exercícios relacionados são apresentados a seguir. Em primeiro lugar, analisamos o impacto fiscal e distributivo da ampliação da faixa de isenção do IRPF para R$ 5 mil. Em seguida, estimamos o efeito de uma alíquota mínima (de 12% ou de 15%) sobre a renda total daqueles brasileiros que possuem renda anual maior do que R$ 1 milhão. Como veremos, os resultados mostram que é possível combinar as medidas de forma que elas tenham efeito arrecadatório neutro, tal como defendido pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e, além disso, que promovam uma redução da desigualdade de renda.
Um parâmetro fundamental para estimar a dimensão fiscal e o efeito distributivo dessas mudanças é o desenho da reforma do IRPF, sobretudo as faixas e alíquotas de contribuição acima de R$ 5 mil. Como não há ainda uma sinalização por parte do governo sobre esses aspectos da reforma, simulamos duas possibilidades. A que chamamos proposta 1 segue a proposta inicial do PL 2.140/22 e prevê uma faixa de isenção de R$5.200 (Tabela 1). Alternativamente, sugerimos uma proposta 2, que tem como objetivo gerar o mínimo de perda arrecadatória. Ela prevê a definição de uma faixa única acima de R$ 5 mil, mantendo a alíquota atual de 27,5% para essa faixa.
Nossas estimativas indicam que a perda de arrecadação com a proposta 1 de ampliação de isenção é da ordem de R$ 135,8 bilhões, enquanto a queda de arrecadação com proposta 2 é de R$ 90,9 bilhões.
Partindo dessas diferentes bases de cálculo, estimamos o efeito de um imposto mínimo sobre os milionários entre 12% e 15% de sua renda total. O ganho de arrecadação com uma alíquota de 12% fica entre R$ 65,9 bilhões e R$ 64,4 bilhões (caso a isenção siga, respectivamente, a proposta 1 e 2), e para uma alíquota de 15%, chega a R$ 90 bilhões ou R$ 88,5 bilhões (novamente, caso a isenção siga, respectivamente, a proposta 1 e 2); isto é, um valor muito próximo ao da perda de arrecadação com a proposta 2. Ou seja, uma primeira conclusão é que, a depender dos parâmetros específicos da tabela com isenção até R$ 5 mil, é sim possível que um imposto mínimo sobre os milionários seja capaz de gerar efeito fiscal neutro.
Para além da questão arrecadatória, vale avaliar o impacto do ponto de vista distributivo, identificando o potencial dessas propostas de aumentar a progressividade do sistema tributário brasileiro e, assim, reduzir a desigualdade de renda. A Figura 1 ilustra a regressividade do sistema tributário atual, mostrando que a alíquota efetiva – isto é, o valor de IRPF pago como proporção da renda – despenca quando se chega no 1% mais rico da distribuição, dentre os quais encontram-se os indivíduos milionários. Em razão disto, segregamos aqueles cuja renda não atinge tal patamar daqueles que são compreendidos como milionários, de modo a isolar os efeitos das propostas de política sobre este último grupo. Se, por exemplo, no decil 99 tem-se uma alíquota efetiva de cerca de 12%, quando se atenta apenas para os milionários, a alíquota efetiva atual não ultrapassa 5%.
As linhas verde e azul da Figura 1, por sua vez, demonstram como a implementação de um imposto mínimo sobre milionários é capaz de reverter essa regressividade, isto é, eliminar a queda abrupta dos impostos efetivamente pagos pelas rendas do topo, sobretudo para alíquotas maiores do que 12%. Além disso, a Figura também ilustra que, com a expansão da faixa de isenção das propostas 1 e 2, indivíduos entre os decis 78 e 91, que antes tinham alíquota efetiva positiva – isto é, pagavam IRPF -, passam a ser isentos. Nota-se, entretanto, que, em ambas as propostas, ainda há uma pequena queda nas alíquotas efetivas referentes ao grupo do 1% mais rico que exclui os milionários. Isto se deve ao fato de este grupo não estar contemplado nas propostas, uma vez que elas miram apenas os indivíduos milionários, o que enseja uma possível correção de alíquota para este grupo específico com vistas a reduzir os incentivos dos milionários em realizar planejamento tributário para recair neste grupo e, portanto, serem menos taxados.
Como pode ser visto na figura 1, a aplicação combinada dessas políticas favorece os brasileiros cuja renda está entre os decis 78 e 99 mais ricos, uma vez que estes estarão sujeitos a uma alíquota efetiva menor. Como esses grupos ocupam a parte superior da distribuição, não é claro seu efeito sobre a desigualdade de renda de forma mais ampla. A Tabela 2 resume o efeito das propostas sobre o Índice de Gini, importante indicativo da desigualdade de renda, e sobre a apropriação da renda nacional por diferentes estratos econômicos. Como vemos, é importante notar que é possível, novamente a depender do desenho das faixas acima de R$ 5 mil, que a combinação de medidas gere redução da desigualdade. Por exemplo, a combinação da proposta 2 (isenção até R$ 5 mil e faixa única acima com alíquota de 27,5%) com o imposto mínimo de 15% sobre milionários pode reduzir o índice de Gini em 0.3%. Olhando para o efeito sobre diferentes grupos, confirma-se que essas medidas beneficiam aqueles entre os decis 50 e 90 – brasileiros com renda mensal entre R$ 1.490 e R$ 5.830 -, e, sobretudo, aqueles entre os decis 90 e 99 – indivíduos de renda mensal entre R$ 5.830 e R$ 29.900. Esse benefício resulta do desenho da política, que penaliza os milionários presentes no 1% mais rico.
Portanto, verifica-se que a imposição de alíquota mínima sobre os milionários é capaz de neutralizar os efeitos arrecadatórios de uma ampliação da isenção do IRPF, além de gerar ganhos de progressividade tributária.
Guilherme Klein Martins, João Pedro de Freitas Gomes e Guilherme Arthen são economistas e pesquisadores do Centro de Pesquisas Macroeconomia das Desigualdades da Faculdade de Economia Aplicada da USP (MADE-USP).
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