Correio da Cidadania

Brasil e Argentina: feitos para casar?

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Depois de testemunhar algumas derrotas no futebol para os argentinos, resolvi exercer o conselho número 1 que Robert McNamara dá em relação aos negócios belicosos do Estado: empatizar com o inimigo.

 

Como resultado, desenvolvi uma profunda admiração pelo futebol dos nossos vizinhos. Revelou-se me uma complementariedade entre os estilos, que me parece extensível a outras esferas da vida. Em minha opinião, Brasil e Argentina foram feitos para casar.

 

No futebol, o estilo dos argentinos é marcado pela garra e a inteligência, sem nenhum desprezo pela técnica. Apesar da difamação usual, a realidade é que o jogar argentino é muito disputado, mas é limpo.

 

A coragem individual ganha força de conjunto em um futebol que privilegia o jogo coletivo, onde a dedicação tática exige do jogador a atenção permanente de um dançarino de tango. É impensável acontecer a um defensor argentino o gol que Roberto Carlos levou pelas costas.

 

Esta aliança entre a garra, a concentração e a coragem fazem a imagem de força do futebol argentino. E, no entanto, a marcação voluptuosa que exercem, a firmeza com que dividem cada jogada, não tem nada a ver com a retranca do futebol europeu ou o voluntarismo dos africanos.

 

O futebol argentino é marcado pela técnica, inclusive defensiva. E é daí que advém a dificuldade dos atacantes brasileiros em superá-los. Daí a beleza ímpar do encontro.

 

E o ataque argentino tampouco é ordinário. Produzem quantidades de meias que sabem dar tratos à bola. Jogadores com visão de conjunto, raciocínio rápido, drible curto e seco, passes açucarados. A tabela rápida, o contra-ataque mortal, a enfiada de bola: o argentino é um dos poucos ataques que falam a nossa língua.

 

E no entanto são tinhosos. O jogador argentino tem a catimba, que é o outro lado da garra. E o brasileiro perde a cabeça. Perde o jogo. É indiscutível: a inteligência emocional do futebol argentino é muito superior à nossa. E isso, às vezes, é decisivo.

 

Em suma, o estilo argentino parece possuir os antídotos ao nosso: o virtuosismo individual encontra uma defesa técnica, implacável e limpa; o talentoso meio-campo enfrenta uma oposição que não dá trégua, é inteligente e habilidosa; e nossas erráticas defesas são acossadas por jogadores rápidos, manhosos e impiedosos.

 

São diferenças de tal ordem que, confrontadas, geram uma terceira coisa: Brasil contra Argentina nunca é uma soma aritmética, mas sempre uma multiplicação no futebol.

 

Desnecessário dizer que um combinado dos dois estilos seria imbatível.

 

Ouso dizer que a relação complementar se estende à música. O tango em geral, e sua expressão mais genial e moderna que foi Piazzolla, pode recorrer a uma variedade de instrumentos de corda da música erudita: violino, cello, contrabaixo. Tem obrigatoriamente acordeom e pode contar com um bom piano. E, no entanto, dispensa a percussão, que é a marca do samba. O ponto de contato entre o tango e o chorinho só pode ser o sopro sublime de um clarinete.

 

A Argentina tem uma forte tradição literária, que se plasma nos elaborados roteiros do seu cinema. A força brasileira é antes musical, e a dança dos seus ritmos conforma uma arte e uma sociabilidade próprias: forró, samba, gafieira. Contrastam com o tango, onde não se roda a dama, nem é comum sorrir. E, no entanto, difícil dizer o que resulta mais sensual.

 

Se a Argentina é forte em psicanálise, no Brasil abunda a religiosidade popular, da umbanda à teologia da libertação. Aqui há lindas praias, lá estão os Andes; aqui a Amazônia, lá a Patagônia; temos deliciosas frutas e eles um excelente vinho.

 

Na política, os argentinos fizeram o que houve de mais próximo a um partido da reforma no continente, enquanto o Brasil formou o grande partido dos trabalhadores. Nossa ditadura foi extensa e difusa, a deles concentrada e genocida.

 

Reacordamos politicamente em ritmos diversos. No Brasil, acumulou-se enorme força social no final do século. Sem-terra tomaram os campos, e, só depois, piqueteros cortaram as vias. A Argentina despertou do silêncio imposto em 2001. E se estava mais atrás enquanto organização popular então, largou mais cedo na direção do novo - que no Brasil ainda precisa desvencilhar-se do velho, que é governo.

 

Podem nos afastar, não importa: um dia, a gente ainda vai comemorar juntos.

 

 

Fábio Luís é jornalista.

 

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