Correio da Cidadania

A Previdência e o Caracazo

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Em sua mais recente incursão pela seara da Previdência, o economista Fabio Giambiagi (Valor Econômico, 19/11) defende a ampliação do número de contribuições necessárias para a aposentadoria por idade. A carência atual, de 180 contribuições para os trabalhadores enquadrados na regra permanente e 156 na transitória, é, para ele, muito baixa, devendo ser elevada para 300.

 

O motivo é o de sempre: “o gasto do INSS é a maior fonte de despesas do setor público e, na raiz do problema, estão regras que, em relação ao resto do mundo, são extremamente benevolentes”. Como exemplo, menciona o fato de que “em 2007, a exigência contributiva é de 13 anos”, após o que o trabalhador “se aposenta para receber aposentadoria integral”.

 

Ou Giambiagi mente, ou desconhece a legislação previdenciária. Para aposentadoria integral por idade, são necessárias 360 contribuições, o que equivale a, no mínimo, 30 anos. Quem contribuir por um número de meses equivalente a 13 anos se aposentará (e apenas se o fizer até o fim de 2007, pois em 2008 isto já não será possível) com 83% do valor integral.

 

Mas a pedra angular da falácia é que nem o problema, nem o suposto remédio estão formulados nos devidos termos. Ao longo do artigo, Giambiagi não fala uma única vez em “contribuições”, mas em “anos”, defendendo a ampliação do “período contributivo” para 25. Dito assim, parece até suave. Afinal, se a idade de aposentadoria em área urbana é 65 anos (homem) e 60 (mulher), falar em “25 anos” de contribuição levaria a crer que bastaria, nos termos da modificação proposta, que os homens começassem a contribuir aos 40 anos e as mulheres aos 35 para que garantissem o acesso ao benefício na idade mínima. É o que Giambiagi insinua ao dizer que, pela antiga regra de 60 contribuições, “uma mulher podia ficar sem contribuir até os 55 anos”.

 

Nada mais distante da realidade. Primeiro, contribuir para o INSS não é, em regra, uma opção: o fato de alguém ter um emprego com carteira é que enseja, automaticamente, o desconto previdenciário. Segundo, é de se imaginar com que dinheiro alguém que chegue aos 55 anos (ou aos 40, ou aos 35) sem nunca ter tido um contrato formal de trabalho irá verter contribuições à Previdência.

 

Terceiro – e principalmente – , a legislação previdenciária define carência como “o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício”. Se um ano tem 12 meses, 15 anos é o intervalo mínimo em que alguém pode verter 180 contribuições e 180 é o número máximo de contribuições que alguém pode efetuar em 15 anos. Isto é muito diferente de falar em “período contributivo”, como faz Giambiagi. Se alguém começa a contribuir para a Previdência em janeiro de 1992 e o faz pela última vez em dezembro de 2007, seu período contributivo é de 15 anos. Mas esta pessoa só terá atingido as 180 contribuições – condição necessária à aposentadoria – caso não tenha deixado de contribuir uma única vez durante todo este período.

 

Os números da Previdência indicam que são poucos os trabalhadores em condições de fazê-lo. Os motivos para isto são basicamente dois. Primeiro, a absurda rotatividade que caracteriza o mercado brasileiro de mão-de-obra faz com que a maioria dos trabalhadores permaneça no emprego (e contribua) durante poucos meses; segundo, o aumento da duração média do desemprego (que quase dobrou em todas as regiões metropolitanas pesquisadas pelo Dieese entre 1996 e 2004) faz com que, até encontrar um novo emprego, eles permaneçam, em média, mais de um ano sem poder contribuir. Assim, de 46,7 milhões de pessoas que contribuíram ao INSS em 2006, apenas 18,9 milhões o haviam feito nos 12 meses do ano. Os 27,8 milhões restantes haviam contribuído, em média, durante 6 meses. Isto equivale a dizer que precisariam de 30 anos de atividade para cumprir 15 de contribuição.

 

O que se conlui daí é que verter 156 contribuições não custa 13 anos, mas 26. E que Giambiagi não quer ampliar o “período contributivo” para 25, mas para 50 anos – vale dizer, quer tirar da maior parte dos trabalhadores a última possibilidade de aposentadoria, já que aposenta-se por idade quem, por suas precárias condições de inserção no mercado formal de trabalho, não consegue se aposentar por tempo de contribuição.

 

Dados do Ministério da Previdência ilustram bem o que está em jogo. Em 1991, a Lei 8.213 determinou a elevação da carência da aposentadoria por idade de 60 para 180 contribuições. Quem passasse a contribuir após sua promulgação teria que cumprir necessariamente a nova regra; para quem já estivesse inscrito no INSS, a elevação seria progressiva (6 meses a cada ano), até que se atingissem as 180 contribuições em 2011. O resultado foi que, entre 1993 e 2001, quando a carência praticamente dobrou (de 66 contribuições para 120), o número de aposentadorias por idade concedidas em área urbana caiu pela metade (de 148 mil para 75 mil). Mais: ao provocar o adiamento da aposentadoria, a ampliação da carência acarreta a diminuição de seu valor, já que a capacidade contributiva e a possibilidade de conseguir trabalho reduzem-se com os anos. O valor médio inicial da aposentadoria por idade paga aos homens que se aposentaram, em 2005, entre 65 e 69 anos foi de R$ 520; na faixa dos 70-74 anos, cai para R$ 466. Para as mulheres, o valor médio inicial da aposentadoria feminina foi de R$ 464 (60-64 anos), caindo para R$ 395  entre os 65 e os 69.

 

O que esses números indicam é que a carência deste benefício não deveria ser ampliada, mas reduzida (em especial para as mulheres) ou mesmo eliminada, exigindo-se apenas a comprovação do trabalho, como ocorre no campo. As peculiares características do mercado brasileiro de trabalho justificariam, por si sós, esse abrandamento. Mas os atuais critérios merecem ser revistos também por outro motivo: destoam completamente dos parâmetros internacionais. Levantamento realizado pelos economistas Milko Matijascic, José Olavo Leite Ribeiro e Stephen Kay a partir de dados da Assosiação Internacional de Seguridade Social demonstra que nossos requisitos contributivos, ao contrário do que diz Giambiagi, são mais rígidos que os dos EUA, Canadá, Alemanha, Suécia, Austrália, Coréia do Sul, Inglaterra e Itália.

 

O que mais chama a atenção nas comparações internacionais feitas por Giambiagi, porém, não é tanto a má fé, e sim o caráter tétrico. Como termo de comparação para a suposta irracionalidade da resistência dos trabalhadores brasileiros à destruição de seu sistema previdenciário, ele cita a reação dos venezuelanos às medidas de choque impostas a seu país pelos organismos financeiros internacionais em 1989. Membro da equipe do BID que assessorava o governo de Andrés Pérez, fala da “perplexidade” que ele e seus colegas “sentiram na Venezuela vendo como as ruas reagiam diante daquilo que no resto do mundo pertencia ao terreno da obviedade”. Não chega a esclarecer se ficou perplexo também com o banho de sangue ocorrido quando a polícia e o exército reprimiram o levante ou se assassinatos, prisões arbitrárias, torturas e desaparecimentos são, de seu ponto de vista, formas legítimas de se fazer frente à “dificuldade que o cidadão comum tem de aceitar o que no resto do mundo é algo normal”.

 

A história recente da América do Sul e a índole dos setores que o remuneram indicam que a menção não é inocente. Seria bom, no entanto, que estes setores, antes de buscar impor o “óbvio”, refletissem sobre o que ocorreu na Venezuela durante os anos seguintes. O descontentamento que levou ao Caracazo foi ampliado pela repressão e contagiou de forma incontrolável as próprias forças armadas, que levantaram-se contra o domínio oligárquico três anos depois. A Venezuela vive hoje, sob a condução de um tenente-coronel chamado Hugo Chávez, o desenrolar do processo iniciado naquele 27 de fevereiro de 1989, quando, nas palavras do general e historiador Jacinto Pérez Arcay, os venezuelanos saíram às ruas e ainda não retornaram.

 

 

Henrique Júdice Magalhães é jornalista, ex-servidor do INSS e pesquisador independente em Seguridade Social. Porto Alegre (RS).

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