Correio da Cidadania

Trabalho Doméstico: seria bom se fosse verdade (1)

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O Congresso Nacional promulgou, em 2 de abril de 2013, a mais importante reforma social verificada no Brasil desde 1988: a Emenda Constitucional 72, que altera o regime normativo do serviço doméstico e, embora sem nivelá-lo ao padrão geral, estende a quem o exerce garantias tão elementares quanto os limites de duração do trabalho e a proteção contra acidentes.

 

A maioria dessas conquistas – casos do FGTS, do seguro acidentário, do adicional noturno e do seguro-desemprego, entre outras – não terá consequências práticas antes da edição de uma lei regulamentadora. Na maioria dos casos, nem depois, já que mais de 70% das potenciais beneficiárias trabalham sem registro (PNAD 2011). Ainda assim, a elevação do status constitucional dessas trabalhadoras (usa-se aqui o feminino como plural porque as mulheres são mais de 90% da categoria), às quais antes se reconheciam somente nove dos 34 direitos trabalhistas declarados na própria Constituição brasileira como fundamentais e que agora passam a ser detentoras de 25, tem um significado social que só não é maior porque faltou ao parlamento e ao governo coragem para impulsionar a equiparação plena.

 

A dimensão do que se conquistou – ou, melhor dizendo, do que se começou a conquistar – mede-se, assim como a do que falta, pelo contingente humano envolvido: segundo dados oficiais provavelmente subdimensionados (PNAD 2011), o Brasil tem 6,6 milhões de trabalhadoras domésticas, número só inferior, em termos absolutos, ao da Índia, cuja população é seis vezes maior (1). Em termos relativos, não há país no mundo com tamanho peso dessa atividade sobre o conjunto da população ocupada: elas são, segundo o mesmo indicador, nada menos que um sexto (15,5%) das brasileiras que trabalham.

 

A EC 72 teve, ainda durante sua tramitação, o efeito de despertar o interesse da imprensa e de algumas agências oficiais pela situação das trabalhadoras de casas particulares. São exemplos disso sucessivas publicações da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), único órgão do governo a bater-se pela ampliação desses direitos; alguns releases da presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); e o Comunicado 90 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, intitulado Situação atual das trabalhadoras domésticas no país. A conjugação entre a precariedade dos indicadores disponíveis sobre o assunto – diretamente proporcional à desatenção que ele recebeu do Estado e da intelligentsia durante séculos, não obstante sua importância quantitativa e qualitativa – e certos interesses partidários produziu, contudo, uma série de inferências equivocadas que vão sendo repetidas sem maior exame e que terminam por prejudicar o efetivo enfrentamento do problema. Essas suposições – analisadas a seguir – partem do mesmo ponto a que chegam: a crença de que existe, no Brasil, um progresso social que as evidências, se não desmentem de todo, reduzem à devida dimensão.

 

Este artigo destina-se, portanto, a três fins: problematizar essas afirmativas, desfazendo equívocos; oferecer um balanço das conquistas advindas da Emenda 72 e das lacunas remanescentes; e dizer algo sobre a estrutura social brasileira, que tem no peso e no tratamento legal e fático do serviço doméstico um dos mais precisos e negligenciados indicadores de seu caráter.

 

Passemos, pois, à análise dos mitos propagados sobre o serviço doméstico profissional.

 

1. A quantidade de empregadas domésticas está em queda livre, contínua e irreversível

 

Essa afirmativa baseia-se unicamente na comparação entre as pesquisas nacionais por amostra de domicílio (PNADs) de 2009 e 2011 (2). Uma análise de um intervalo maior não permite concluir isso e muito menos que o emprego doméstico tende a ser extinto, como vêm dizendo alguns afoitos (www.ihu.unisinos.br/noticias/506743-trabalho-domestico-passa-por-um-lento-processo-de-transformacao-). O que de fato há é uma oscilação do número de trabalhadoras domésticas ocupadas, perceptível quando se comparam os últimos cinco ou dez anos.

 

Ano Trabalhadores ocupados no serviço doméstico remunerado na semana de referência (em milhões)
Total Mulheres
2002 6,04 5,6
2003 6,08 5,68
2004 6,47 6,04
2005 6,66 6,2
2006 6,78 6,3
2007 6,7 6,25
2008 6,63 6,2
2009 7,22 6,7
2011 6,65 6,16

Fonte: PNAD. Elaboração própria. Em 1994, 2000 e 2010, não houve PNAD.

 

Esses dados mostram que 2009 foi um ano atípico, com um crescimento sem paralelo nem explicação aparente do total de pessoas ocupadas no setor. O resultado de 2011 representa uma queda significativa apenas em comparação com esse ponto fora da curva, sendo, porém, superior aos de 2002 a 2004 e situando-se no mesmo patamar verificado em 2003 e entre 2005 e 2008.

 

2. O peso relativo do serviço doméstico também despencou. Pela primeira vez, ele deixa de ser a principal ocupação das brasileiras que trabalham, caindo para a terceira posição.

 

Nos 20 anos que vão de 1992 a 2011, a proporção de trabalhadoras de casas particulares sobre o total da população feminina ocupada oscilou entre os 15,6% (2011) e 18% (2001). Mas também aqui não há uma redução constante, muito menos linear, e sim um sobe e desce. Tampouco é verdadeiro que, antes de 2011, o serviço doméstico tenha sempre ocupado a primeira posição entre os grupos ocupacionais da PNAD, como afirma a SPM em um recente comunicado institucional (www.mulheres.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2012/09/26-09-spm-aponta-mudanca-no-ranking-das-categorias-de-trabalhadores-na-pnad-2011). E, principalmente, é falso que ele tenha deixado de ser a atividade que mais trabalhadoras ocupa.

 

Ano Proporção de empregadas domésticas sobre o total de mulheres ocupadas (%) Posição do serviço doméstico na distribuição da população feminina entre os grupos de ocupação da PNAD
1992 16,2
1993 16,6
1995 17,2
1996 17,5
1997 17,8
1998 16,9
1999 17,2
2001 18
2002 17,4
2003 17,3
2004 17,3
2005 17,1
2006 16,8
2007 16,6
2008 15,8
2009 17
2011 15,6

Fonte: PNAD. Elaboração própria.

 

Nas 17 edições da PNAD abrangidas na tabela acima, o serviço doméstico ocupou sete vezes a primeira posição, sete a segunda e três a terceira. Descontada a anomalia de 2009, só esteve em primeiro lugar entre os grupos em que o IBGE divide a população trabalhadora de 2001 a 2006 – ou seja, logo após um processo de supressão contínua de postos de trabalho em outros setores, propiciado pela ação prolongada do coquetel de abertura comercial, juros altos e dólar baixo do governo FHC em combinação com os efeitos da crise de 1999. Até o advento desta última, a atividade que mais mulheres ocupava era a agricultura; a partir de 2007, e com exceção de 2009, os primeiros lugares passaram a caber às atividades de “comércio e reparação” e “educação, saúde e serviços sociais” – nessa ordem em 2007 e 2011, na inversa em 2008.

 

O peso do trabalho doméstico sobre a ocupação feminina mantém, nesses 20 anos, uma relativa estabilidade. Não é o caso de ignorar que, em 2008 e 2011, ele atinge seu vale histórico. Porém, a oscilação ainda é pequena se comparada à da agricultura, cuja participação despencou (3), ou à do setor de comércio e reparação, que cresceu significativamente. Basta notar que, conforme a mesma PNAD, uma em cada seis brasileiras que trabalham ainda o fazem em casas de terceiros.

 

É certo, no entanto, que a proporção real de pessoas – sobretudo mulheres – empregadas nessa atividade é um tanto maior que a retratada na tabela. Afinal, quando se trata de uma ocupação com um predomínio avassalador do trabalho sem registro (4), a margem de imprecisão dos dados oficiais, mesmo baseados na autodeclaração, como a PNAD, aumenta notavelmente. Sem ir muito longe, basta lembrar o costume, bastante difundido entre os estratos médios e altos da sociedade brasileira, de tirar meninas de suas famílias – sobretudo em áreas rurais – e levá-las para a cidade onde, a troco de comida e vestimenta, passam a lavar, passar, varrer, cozinhar etc. para seus captores. Até 2008, isso era autorizado pelo art. 248 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (5); com a expedição do Decreto 6.481, que regulamenta a Convenção 182 da OIT (6), proibiu-se o trabalho de menores em casa alheia. Antes de 2008, não seria de se esperar que o(a)s chefes desses domicílios declarassem ao IBGE tal modalidade de exploração porque o próprio ECA atribuía a ela caráter familiar, e não trabalhista, conferindo ao apropriador a guarda da adolescente subtraída (7) e, consequentemente, a pátria potestade sobre ela (!!!). Menos ainda é de se supor que o façam agora que isso passou a ser catalogado oficialmente como o que de fato é: crimes de subtração de incapaz e redução a condição análoga à de escravo.

 

Por fim, "comércio e reparação” engloba, como é fácil perceber, atividades distintas. O mesmo vale, em muito maior medida, para “educação, saúde e serviços sociais”, que, claramente, não é uma categoria profissional ou ramo de atividade, mas a soma de três, todas majoritariamente femininas. Que esse grupo tenha superado o serviço doméstico em número de mulheres ocupadas significa apenas que a soma de todas as professoras, pedagogas, enfermeiras, auxiliares e técnicas de enfermagem, médicas, dentistas, psicólogas, fonoaudiólogas, fisioterapeutas e assistentes sociais do país, mais as secretárias, telefonistas, recepcionistas e restante pessoal administrativo feminino das respectivas empresas ou instituições (8), supera ligeiramente o número de trabalhadoras em casa alheia detectadas na PNAD.

 

O serviço doméstico continua sendo, portanto, como desde 2001, a atividade que, de longe, mais força de trabalho feminina absorve.

 

Notas

 

1) Comparação entre a PNAD 2011 e o Report on Employment & Unemployment Survey 2009-10.

 

2) Em 2010, a PNAD não foi realizada por ser ano de censo.

 

3) A causa principal disso, é bom que se diga, não é a urbanização: a comparação entre as PNADs de 1992 e 2001 aponta uma queda de 34% no peso da atividade agrícola sobre o total da ocupação feminina (de 24,7 para 16,2%), sendo que os censos dos anos imediatamente anteriores (1991 e 2000) indicam redução de apenas 23% na relação entre a população do campo e o total de habitantes do país (de 24,5% para 18,7%). Já a comparação entre os censos de 2000 e 2010 mostra uma queda de 16,6% na relação entre a população rural e o total de pessoas que vivem no território brasileiro (de 18,7 para 15,6%), enquanto a redução do peso da atividade agrícola sobre a ocupação feminina no mesmo período (PNADs de 2001 e 2011) foi de 30,8% (de 16,2 para 11,2%).

 

4) Segundo a PNAD 2011, 71% das trabalhadoras domésticas não estão registradas.

 

5) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Tal artigo tipificava como simples infração, punível com multa administrativa, “deixar de apresentar à autoridade judiciária de seu domicílio, no prazo de cinco dias, com o fim de regularizar a guarda, adolescente trazido de outra comarca para a prestação de serviço doméstico”.

 

6) A Convenção 182 versa sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil e obriga os Estados aderentes a elaborar uma relação de atividades tidas como particularmente nocivas para crianças e adolescentes e a comprometer-se com sua abolição em caráter prioritário.

 

7) Nos termos do ECA, “a guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais” (art. 33), e “destina-se a regularizar a posse de fato”, isto é, o rapto (§ 1º). Em termos práticos, sua concessão a pessoas estranhas à família de origem do menor diferencia-se da adoção por apenas um elemento: o direito à herança, que existe para a criança ou adolescente adotado, mas não para aquela que está apenas sob a guarda de terceiro. Que isso se mescle com uma relação de trabalho é um típico exemplo da presença de elementos feudais na estrutura socioeconômica brasileira.

 

8) Os grupos ocupacionais da PNAD são estabelecidos com base na Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE), que toma por base a atividade-fim do empregador, e não na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), referenciada ao trabalho efetivamente exercido pelo trabalhador. Assim, quem exerce tarefas burocrático-administrativas numa escola ou num hospital é computado como trabalhador em educação ou em saúde.

 

 

Henrique Júdice Magalhães é pesquisador em temas de Trabalho e Seguridade Social. Atuou como consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério do Desenvolvimento Social do Brasil (MDS) contratado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Foi também pesquisador-bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no âmbito do Programa Nacional de Pesquisa para o Desenvolvimento (PNPD).

 

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