Trabalho doméstico: seria bom se fosse verdade (3)
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- Henrique Júdice Magalhães
- 26/04/2013
5. O aumento do custo da força de trabalho, consequência da ampliação de direitos, levará à diminuição da quantidade de vagas no serviço doméstico e/ou à substituição de trabalhadoras mensalistas por diaristas.
Ainda que todos os direitos agora estendidos às trabalhadoras domésticas passassem a vigorar de imediato e sem nenhuma compensação econômica ao empregador, o aumento do custo de manutenção do emprego não passaria de 10% (8% correspondentes ao depósito mensal do FGTS, se é que não se adotará um percentual menor que o dos celetistas, mais 1 ou 2% ao seguro de acidentes [18]). O preço da demissão aumentaria um pouco mais, já que ela enseja uma multa rescisória de 40% do valor devido ao FGTS no curso da relação de trabalho – que, diluída ao longo desta, faria o acréscimo de despesa subir de 9 para 12,2 ou 13,2%, aos quais se pode somar o custo de equipamentos como luvas e calçados de proteção. Ante o dado de que a grande maioria das trabalhadoras em questão ganha salário mínimo ou algo próximo a ele, isso seria muito pouco para ensejar a mudança de perfil que vem sendo anunciada. No entanto, nem esse aumento ocorrerá, pois o acesso das empregadas de casas particulares aos direitos em questão virá acompanhado por facilidades fiscais aos empregadores.
O acréscimo de despesa destes últimos é menor que o incremento de garantias constitucionais das empregadas porque algumas delas (salário-família, seguro-desemprego) são pagas, como mencionado anteriormente, pela Seguridade Social. Outras (proibição explícita do trabalho infantil e da discriminação por sexo, idade ou cor da pele) só chegariam a ter alguma consequência econômica, e mesmo assim depois de anos, se infringidas. E outras tantas (teto de jornada, adicional noturno, adicional de horas extras) até teriam impacto, mas apenas se configurado seu fato gerador. Para não pagar horas extras, basta não usufruir do trabalho alheio por mais de 44 horas semanais, lembrando que a Constituição brasileira admite a compensação horária dentro da semana e que oito horas diárias de trabalho podem significar dez entre os horários de entrada e saída, já que se desconta o intervalo para refeição no cômputo da jornada. E para não arcar com o adicional noturno, basta não exigir que a empregada trabalhe após as 22 horas nem antes das 5 horas, se é que o parâmetro a ser adotado para as trabalhadoras domésticas não será pior que o dos celetistas. Para aqueles empregadores que necessitem ou creiam necessitar dos serviços de uma empregada doméstica por tal quantidade de tempo e em tais horários, a substituição de mensalistas por diaristas não é uma solução viável, pois a remuneração destas últimas é, em proporção ao tempo de trabalho, sabidamente maior [19].
Isto posto, e embora faltem dados quantitativos consistentes, existe, de fato, uma tendência empiricamente perceptível à substituição de empregadas mensalistas por diaristas, que decorre de uma transformação cultural: embora ainda longe de aceitar a ideia de cuidar da própria casa, as gerações mais jovens dos estratos médios têm uma noção de privacidade algo distinta da de seus pais e avós e não se sentem confortáveis com a presença de pessoas externas a seu núcleo em suas casas durante a totalidade do dia ou da semana, chegando mesmo a ter algum escrúpulo (ou medo) de recorrer à apropriação clandestina de menores. Isso é igual a dizer que a sociedade brasileira transita, hoje, de forma ainda incipiente, da família expandida – à qual, durante centenas de anos, as trabalhadoras domésticas integraram-se na condição servil de agregadas – à nuclear. Isso, e não o aumento do custo da força de trabalho, pode levar a um acréscimo do número de trabalhadoras contratadas por dia em detrimento da contratação por mês.
Seja como for, a constatação dessa tendência – ainda que sobredimensionada – deveria dar azo à equiparação das garantias das diaristas às das trabalhadoras remuneradas em base mensal, e não ao manejo da possibilidade de usá-las para elidir obrigações trabalhistas. No embalo da EC 72, a intempérie trabalhista e previdenciária a que se encontram relegadas as trabalhadoras domésticas remuneradas por dia deveria começar a ser encarada como o que é: uma infâmia perpetrada sem qualquer suporte conceitual ou normativo pelo braço judicial do Estado brasileiro.
A relação de assalariamento é concebida na legislação brasileira nos mesmos termos em que o é no mundo dos fatos: considera-se empregado quem, a troco de dinheiro ou remuneração in natura, trabalha com regularidade em condições de subordinação, não importando se a remuneração se dá em base mensal, semanal, diária ou atrelada ao desempenho. Mesmo quando ausente o segundo desses elementos (regularidade), a Constituição brasileira, como já visto, assegura aos trabalhadores que preencham os outros dois a mesma cobertura trabalhista e previdenciária dos assalariados em sentido estrito. Exemplos conhecidos são os portuários e alguns trabalhadores rurais contratados em época de safra: a inexistência de vínculo permanente com um empregador determinado não significa, para essas pessoas, ausência de subordinação, já que não se traduz no poder de determinar as condições de tempo, local e modo em que carregarão e descarregarão navios ou colherão cacau. Isso é que diferencia o status laboral/legal desses trabalhadores – chamados de avulsos – face ao dos profissionais liberais ou autônomos.
No caso das trabalhadoras de casas alheias, nada disso é tido em conta. As que prestam serviços esporádicos a contratantes diversos não estão cobertas pela legislação trabalhista e previdenciária porque a Constituição deixa e deixará, por obra e graça da senhora Benedita, de assegurar-lhes a igualdade de direitos face às trabalhadoras com vínculo empregatício. Mas mesmo as que trabalham em caráter regular para uma mesma pessoa ou família não têm, muitas vezes, nenhum direito reconhecido, ainda que sejam, a toda evidência, empregadas.
Isso acontece porque, enquanto a CLT determina que é empregado, com todas as garantias daí decorrentes, quem trabalha sob a direção alheia mediante remuneração em caráter não-eventual, a Lei 5.859, que rege o trabalho em casas particulares, dispõe que é empregada doméstica quem trabalha sob a direção alheia mediante remuneração em caráter contínuo. Apegando-se a essa diferença meramente vocabular, a justiça do Trabalho considera que só existe continuidade – e, portanto, relação de emprego doméstico – quando a trabalhadora presta serviços a seu patrão em todos os dias da semana ou, pelo menos, em dias consecutivos, isentando de qualquer obrigação trabalhista ou fiscal quem contrate uma trabalhadora para prestar serviços domésticos três vezes por semana, não importa quantos anos ou décadas dure esse liame. A consequência dessa cretinice hermenêutica é manter alguns milhões de brasileiras sem qualquer dos direitos elementares inscritos na Constituição, quer se trate dos agora estendidos à categoria ou dos que ela já detinha. A correção disso é algo tão premente quanto foi durante anos, e continua sendo, a equiparação das trabalhadoras de casas particulares ao restante dos assalariados.
Algumas conclusões
Longe de encontrar-se em extinção, o trabalho em casa alheia é, e não está num horizonte visível que deixe de ser, um elemento fundante da estrutura social brasileira – o que revela, de forma incontrastável, o caráter profunda e basalmente arcaico e desigual dessa estrutura, tanto pelo lado da oferta de trabalho (já que se trata de uma ocupação intrinsecamente precária), quanto pelo da demanda (que implica que alguns milhões de brasileiros são animicamente incapazes de limpar a própria casa, passar a própria roupa, fazer a própria comida ou cuidar dos próprios filhos).
A tentativa de fazer crer que isso esteja em vias de deixar de ser assim é uma manifestação oficial e coletiva do que Freud chamou de negação – um mecanismo de defesa do ego que consiste na “tentativa de não aceitar na consciência algum fato que perturba” e “na tendência de fantasiar que certos acontecimentos não são, de fato, do jeito que são, ou que na verdade nunca aconteceram” [20]. Com efeito, é difícil para um governo e uma sociedade autocomplacentes, triunfalistas e dependentes da opinião externa, como se tornou o Brasil na última década, explicar ao mundo o fato de que existe aqui um contingente de trabalhadoras com status constitucional de subcidadãs comparável ao da Índia. É certo, por outro lado, que o próprio fato de que isso cause desconforto já é um progresso numa sociedade que convivia de forma naturalizada com a semiescravidão doméstica havia centenas de anos. O aforismo implicado aqui é o de que a hipocrisia é, como dizia o duque La Rochefoucauld, uma homenagem que o vício presta à virtude.
Falar em trabalho escravo ou semiescravo não é uma licença retórica. A própria ministra-chefe da SPM, Eleonora Menicucci, recorreu a esse termo quando declarou a O Globo que “estamos definitivamente retirando as mulheres trabalhadoras domésticas do sistema de escravidão no nosso país" [21]. Que alguém com sua posição reconheça publicamente a existência e a gravidade desse quadro é algo meritório e provavelmente inédito na história do Brasil. E é, principalmente, uma elogiável mudança de postura face ao veto de Lula em 2006, por sugestão dos ministérios da Previdência e do Trabalho e Emprego, à extensão do salário-família, FGTS, multa por demissão e seguro-desemprego às trabalhadoras domésticas, que o Congresso aprovara já naquele ano [22].
O diagnóstico de Menicucci só não é ainda mais exato e valioso porque ela se deixa contaminar pelo triunfalismo e cede à tentação de sobredimensionar os méritos do governo que integra ao usar a palavra "definitivamente" quando, como demonstrado, para isso ainda falta muito, a começar pela efetivação das disposições da Emenda 72 pendentes de regulamentação. O que se aprovou está para a situação das trabalhadoras domésticas como algumas leis anteriores à Abolição (ventre livre, sexagenários, Eusébio de Queirós) estão para ela: importantes, embora contraditórias e pouco efetivas; positivas, mas insuficientes.
É difícil entender por que não se chegou à equiparação plena entre as garantias das trabalhadoras domésticas e as do restante dos trabalhadores. Afinal, não houve contra ela mais que uma resistência difusa, no mais das vezes envergonhada, de alguns estratos médios reacionários. A oposição parlamentar e a imprensa monopolista – que, como se diz na Argentina, não comem vidro – mostraram-se, ao menos em público, simpáticas ou neutras. Até a revista Veja, que assumiu desde a eleição de Lula o papel de porta-voz dos setores fascistas das classes médias, deixou de lado o habitual discurso raivoso e, embora se permitindo alguma conjectura sobre os efeitos da ampliação de garantias sobre o nível de emprego, saudou-a como um progresso civilizatório.
O recuo verificado face ao teor inicial da proposta tampouco pode ser explicado pela heterogeneidade ideológica do bloco parlamentar oficialista. Muito ao contrário, tanto o projeto inicial de equiparação plena quanto a redação alternativa que a preservaria face ao obstáculo imposto por setores do Judiciário partiram de integrantes da ala direita desse bloco (PMDB e PR). O parcial esvaziamento da iniciativa original foi obra da relatora do projeto, Benedita da Silva, ex-empregada doméstica e figura emblemática do PT. Mesmo a entidade corporativa dos juízes do Trabalho (Anamatra) já defendeu, em mais de uma ocasião, a equiparação plena. O fato de a EC 72 ter sido aprovada por unanimidade no Senado e por 347 votos contra 2 na Câmara também indica que não era necessário qualquer recuo: o Congresso teria votado, sem maiores resistências, a equiparação. Que ela não tenha sido conquistada é algo que, portanto, se deve debitar principalmente à pusilanimidade do governo e do PT.
Não é útil, porém, à compreensão do problema restringir o foco da análise ao PT. A postura adotada pela oposição parlamentar e extraparlamentar de direita e de esquerda torna facilmente compreensível que o mesmo governo que, por covardia atávica, frustrou parcialmente o que seria uma conquista de dimensões incalculáveis para a classe trabalhadora colha todos os benefícios políticos da extensão limitada de garantias que se acabou por aprovar.
À parte a atuação do senador Paulo Bauer em defesa da licença-maternidade, o PSDB não teve, durante a tramitação do projeto que resultou na EC 72, ideia melhor do que tentar impor à reivindicação judicial dos direitos das trabalhadoras domésticas um prazo curto de prescrição – proposta rejeitada e que, a rigor, pouco ou nada mudaria, posto que o Judiciário já o aplica mesmo sem respaldo na lei [23]. Após a aprovação da emenda, já anuncia que procurará, na regulamentação, isentar os empregadores domésticos da multa rescisória calculada sobre o saldo do FGTS [24]. Considerando, em todo caso, a índole e a vida pregressa da oposição de direita, já é bastante que ela não tenha se oposto pura e simplesmente à ampliação de garantias.
Muito pior que isso é constatar que, durante toda a fase de discussão do que veio a se tornar a Emenda 72, os esforços da bancada do Partido do Socialismo e da Liberdade (PSoL), única organização não oficialista de esquerda com representação parlamentar, estavam postos, de forma excludente, no reparte das presidências das comissões temáticas da Câmara. Nem seu senador, nem seus três deputados levantaram em qualquer momento a voz contra as alterações emplacadas por Benedita e pelos demais membros da comissão especial. Da parte do PSTU e outras seitas autorreferentes menores, que se propõem fazer passar por oposição de esquerda ao governo petista, o assunto tampouco recebeu – como por ocasião dos vetos de 2006 – maior atenção, embora envolvesse questões de interesse da maior das categorias profissionais existentes no Brasil. Como cereja do bolo, um dos melhores intelectuais dessa esquerda (Ricardo Antunes) escreve em O Estado de São Paulo, quatro dias antes da aprovação da emenda, um artigo em que, a par de repetir com certo toque de erudição algumas simplificações oficialistas ora problematizadas (equiparação plena, "primeira abolição", tendência à substituição de empregadas mensalistas por diaristas), ainda aponta para as potenciais consequências negativas do suposto fim do trabalho doméstico (ao menos em sua configuração mais arcaica) sobre a divisão sexual do trabalho nos estratos médios da sociedade brasileira [25].
A EC 72, portanto, merece ser saudada como a mais importante reforma social verificada no Brasil desde o advento da Constituição de 1988. Mas deve ser posta, ao mesmo tempo, sob exame crítico e, sobretudo, sob observação atenta no que toca à sua regulamentação e, o que não é menos importante, ao tratamento judicial que receberá. Sua existência é, talvez, o primeiro sinal seguro de que o Brasil vive algum progresso sociocultural. Suas falhas, a história de sua tramitação e a postura dos diversos setores do espectro político perante ela indicam, entretanto, o caráter ainda incipiente desse progresso.
Notas:
[18] As alíquotas de contribuição ao seguro de acidentes de trabalho são de 1, 2 ou 3%, conforme o grau de risco da atividade. É improvável que o governo venha a considerar o serviço doméstico como atividade de risco alto (alíquota de 3%) ou mesmo médio (2%).
[19] A renda das trabalhadoras computadas como diaristas pelo critério do Comunicado 90 do IPEA é superior, em todas as edições da PNAD, à das classificadas como mensalistas; mesmo tendo presente a crítica formulada aqui ao uso da renda, e não do salário, como parâmetro, não há por que pensar que essa diferença não corresponda, ao menos em parte, à remuneração pelo trabalho. A isto se acresça que as diaristas, frequentemente, são contratadas para limpeza ou para lidar com roupas, não estando obrigadas, por exemplo, a cozinhar.
[20] http://www.psiqweb.med.br/site/DefaultLimpo.aspx?area=ES/VerDicionario&idZDicionario=447
[22] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/Msg/Vep/VEP-577-06.htm.
[23] http://legis.senado.gov.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/123669.pdf.
[25] http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,a-revolta-da-sala-de-jantar,1015042,0.htm
Leia também:
Trabalho Doméstico: seria bom se fosse verdade (1)
Trabalho doméstico: seria bom se fosse verdade (2)
Henrique Júdice Magalhães é pesquisador em temas de Trabalho e Seguridade Social. Atuou como consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério do Desenvolvimento Social do Brasil (MDS) contratado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Foi também pesquisador-bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no âmbito do Programa Nacional de Pesquisa para o Desenvolvimento (PNPD).