Avanços e deficiências da cobertura policial
- Detalhes
- Luiz Antonio Magalhães
- 17/06/2009
Tentou contra a existência num humilde barracão
Joana de tal por causa de um tal João
Depois de medicada retirou-se pro seu lar
Aí, a notícia carece de exatidão
O lar não mais existe, ninguém volta ao que acabou
Joana é mais uma mulata triste que errou
Errou na dose, errou no amor
Joana errou de João
Ninguém notou, ninguém morou
Na dor que era o seu mal
A dor da gente não sai no jornal
(Notícia de Jornal - Haroldo Barbosa e Luiz Reis)
Homem branco, 35 a 40 anos, morador da zona sul do Rio de Janeiro ou dos Jardins da capital paulista. É este o perfil de vítima de homicídios que sai nas páginas dos grandes jornais brasileiros ou aparece na escalada dos telejornais das principais emissoras de televisão, em geral alvejado no caminho do trabalho ou na volta para casa. A vítima preferencial da violência, porém, tem outra cor, outra idade e mora em locais bem diferentes. São jovens negros, habitantes das periferias, favelas ou morros das grandes cidades brasileiras.
Contra números, diz o ditado popular, não há argumentos. As estatísticas revelam que a taxa de homicídios no Brasil, considerando apenas vítimas do sexo masculino, se concentra entre os jovens negros: na faixa que vai dos 20 a 30 anos, a taxa supera 150 mortos por 100 mil habitantes, beirando os 200 aos 23-24 anos. Entre os brancos, esta mesma taxa não alcança 100 mortos por 100 mil habitantes.
A média nacional já é assustadora, ainda mais quando se considera que os negros são minoria na população brasileira, mas os números de estados como o Rio de Janeiro e Pernambuco impressionam ainda mais. No Rio e em Pernambuco, a taxa de homicídios entre jovens brancos bate em 150 por 100 mil habitantes, ao passo que na mesma faixa etária chega a 400 por 100 mil habitantes entre os negros.
"Disputa de mercado"
E por que, afinal, o perfil da vítima dos assassinatos que sai nos jornais é tão diferente do que se verifica na vida real que as estatísticas revelam? Este foi apenas um dos temas debatidos no seminário Mídia e Segurança Pública, realizado no final de maio no Ministério da Justiça, em Brasília. Promovido pela comissão que organiza a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, o seminário contou com a participação do ministro Tarso Genro, do secretário Nacional de Segurança Pública Ricardo Balestreri, da presidente da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação) Tereza Cruvinel, além de representantes da imprensa, pesquisadores acadêmicos, policiais e militantes de organizações não governamentais que atuam com a questão da segurança e/ou violência.
Ricardo Balestreri explicou que a mídia pode e precisa ser "parceira e aliada" do Estado na questão da segurança. Segundo o secretário, há uma "dimensão pedagógica" no combate à violência que deve ser colocada em prática nas escolas, pelos professores, e no jornalismo, que teria até maior potencial do que os educadores, em função de seu alcance. "A mídia tem a capacidade de convencer a sociedade. É preciso um pacto entre ela e as autoridades para darmos solidez ao projeto democrático no país", complementou o ministro Tarso Genro.
Uma das questões que mais provocaram polêmica durante o seminário foi a do sensacionalismo da imprensa na cobertura policial. "Há uma disputa de mercado pela espetaculosidade e não pela qualidade da informação", provocou o ministro. Tereza Cruvinel defendeu que as editorias de polícia sejam substituídas por editorias de Segurança Pública. "Em países da Europa não se emite opinião sobre coisa não julgada, e isto ajuda no combate à banalização e à espetaculosidade do conteúdo", afirmou a jornalista. Segundo a presidente da EBC, "é necessário questionar a diferença entre interesse público e interesse do público".
Fora da pauta
Apesar das críticas à imprensa, praticamente todos os participantes do seminário concordaram que já houve uma evolução sensível na cobertura policial no país. No passado, os setoristas de polícia eram quase uma extensão da própria polícia – acompanhavam diligências junto com os agentes, assistiam aos interrogatórios (e muitas vezes participavam deles, inclusive "colaborando" na violência contra os suspeitos) e em geral andavam armados. Este perfil do jornalista e da cobertura policial mudou muito, embora até hoje alguns aceitem "carona" nas viaturas policiais, atitude promíscua que denuncia o excesso de intimidade com as fontes e que infelizmente ainda não foi debelada.
A jornalista Angelina Nunes, editora-assistente do jornal O Globo e representante da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) no seminário, delimitou a morte do jornalista Tim Lopes como um marco divisor na reflexão dos colegas envolvidos com a cobertura policial. Segundo ela, desde então a qualificação desses profissionais aumentou e o foco mudou. "Houve investimento no capital humano. A formação nos anos 1980 era de polícia e hoje é em segurança pública", afirmou. Ela também condenou a intimidade de jornalistas, especialmente dos veículos populares, com as suas fontes na polícia. "Não é ético andar no ‘Caveirão’ ou se vestir de policial. Na apresentação de um preso, se o repórter deixa o policial puxar o cabelo do preso para mostrar seu rosto, está compactuando", afirmou.
Já Aziz Filho, gerente executivo de jornalismo da TV Brasil, defendeu a imprensa. Afirmou que a mídia brasileira não dá a "centralidade" ao debate da segurança pública porque os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário também não dão. Ele questionou quais são os projetos de lei sobre o tema na pauta do Congresso Nacional ou que ações efetivas o Executivo tem tomado para enfrentar a questão. E arrematou: a questão da segurança não está na pauta da mídia porque também não é central na pauta dos três poderes da República.
Direito de saber
A pesquisadora Sílvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, no Rio, foi quem apresentou os dados do início deste texto, sobre o perfil das vítimas de homicídio no Brasil. Segundo ela, existe claramente um viés de classe na cobertura policial. "Uma bala perdida que não acertou ninguém no Leme [bairro nobre do Rio de Janeiro] tem mais espaço nos jornais do que a morte de um jovem negro e favelado", explicou.
De acordo com os dados apresentados por Silvia Ramos, o Brasil é atualmente o sexto país do mundo em número de homicídios e o quinto em homicídios de jovens, sempre concentrados nos bairros pobres da periferia. "Esse é o fenômeno que a gente tem que responder e estamos respondendo pouco. Temos que falar sobre isso obsessivamente", defendeu a acadêmica.
Outra pesquisa apresentada durante o evento foi a da jornalista Suzana Varjão, sobre a violência na mídia baiana, que acabou se transformando em um livro – Micropoderes, macroviolências – Mídia impressa, aparato policial. A jornalista pesquisou a cobertura de fatos violentos na Bahia em três jornais locais e o resultado do levantamento corrobora a tese de Silvia Ramos. Segundo a análise de Suzana Varjão, é mínimo o espaço dedicado às vítimas pobres nos jornais baianos.
O ministro Tarso Genro também palpitou sobre o trabalho dos jornalistas que cobrem o setor de polícia. Disse achar a cobertura boa, mas muito fragmentada. "São reportados os fatos violentos, que a população tem o direito de saber, mas não existem matérias paralelas sobre como solucioná-los", disse. Para o ministro, é necessário um debate mais concreto, ouvindo especialistas e as comunidades que sofrem com a violência. Ele naturalmente também reclamou da falta de atenção que os jornalistas dão aos atos do governo: "Não vejo um tratamento com profundidade sobre o que estados, municípios e União têm feito em defesa do cidadão", disse o ministro.
Luiz Antonio Magalhães é jornalista e editor Executivo do Observatório da Imprensa, onde este texto foi originalmente publicado.
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