Com Putin, Rússia afasta-se da democracia
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- Mateus Alves
- 15/10/2007
Para os desavisados, o fato de moradores em um condomínio residencial localizado na bela cidade de São Petersburgo planejarem a construção de uma estátua de uma cadela labrador em uma praça arborizada pode não levantar nenhuma suspeita. Seria algo até mesmo adequado, diriam os entusiastas da imponente raça canina.
No entanto, não se trata de uma ode ao melhor amigo do homem, tampouco de uma escolha puramente estética: a cadela em questão chama-se Koni e seu dono é Vladimir Putin, atual presidente russo.
Para os moradores do condomínio, a construção da estátua deverá livrar o local das garras de burocratas do governo que, eventualmente, poderiam dar um fim à praça devido ao crescimento da especulação imobiliária que assola a Rússia nos dias atuais. A capital Moscou tornou-se a cidade mais cara do mundo recentemente, e São Petersburgo segue a passos largos o mesmo rumo.
A intenção de criar a homenagem à inocente cadela é a prova cabal de que a bajulação às autoridades, comum e corriqueira na busca de favores característica do período soviético, acompanha o crescimento dos custos de vida na Rússia, uma vez que é a forma encontrada pela população do país para manter intactos os seus direitos.
Recorrendo a tais ferramentas, os peterburguenses escancaram a inoperabilidade e fragilidade das vias democráticas no país. Minguantes dia após dia, os eternamente débeis fundamentos da democracia na Rússia têm em Vladimir Putin e no nacionalismo extremista, corrente de pensamento com inúmeros adeptos no país, os seus piores inimigos.
Incapaz de olvidar os ensinamentos recebidos durante seus anos de KGB, o presidente tem recorrido a práticas violentas e criminosas no combate à oposição a suas idéias e a seu projeto. A repressão proveniente do Kremlin transcende o campo intelectual e político, flertando com a violência típica de ditaduras.
Nos jornalistas, Putin enxerga a encarnação de todas as ameaças a seu círculo de poder. A prática de um jornalismo independente na Rússia se tornou um serviço perigoso - desde a queda do regime comunista, no início da década de 1990, mais de 40 jornalistas foram assassinados e centenas presos, na maioria das vezes quando investigavam denúncias da corrupção que tomou conta do país com o desmonte do Estado comunista e a subseqüente divisão do espólio estatal entre os novos oligarcas russos.
O mais alarmante dos ataques à liberdade de expressão na Rússia foi o assassinato de Anna Politkovskaya, em 2006. Até hoje, não há indiciados pelo crime. Antes de morrer, Alexander Litvinenko, ex-espião da KGB assassinado por envenenamento no ano passado, relatou que a morte da jornalista havia sido sancionada por Putin.
As reportagens de Politkovskaya - também autora do livro "A Rússia de Putin", no qual denunciava os regressos ao stalinismo durante a gestão do presidente - a partir da Tchetchênia podem ser as prováveis causas de sua morte, dada a violenta posição do Kremlin em relação aos separatistas na região.
A Tchetchênia, hoje, é uma terra sem lei, onde os militares a mando de Putin impõem à população pela força o que Moscou deseja. É a face concreta e o front principal do nacionalismo russo. Enquanto estiver no poder, Putin fará de tudo para que a pequena república continue subjugada à Rússia, custe o que custar – e são preços caros, uma vez lembrados o massacre do teatro Dubrovka, ocorrido no ano de 2002 em Moscou, e a tragédia em uma escola de Beslan, em 2004.
Líderes da oposição e intelectuais tampouco escapam das garras repressivas do governo russo. O enxadrista Garry Kasparov, líder da coalizão "Uma Outra Rússia", de tendências liberais e pró-direitos humanos, foi preso no aeroporto de Moscou e impedido de comparecer a um encontro entre representantes russos e líderes da União Européia.
Cientistas sociais denunciam a volta da prática do "esquecimento de nomes" por instâncias oficiais russas, algo comum no auge do governo de Josef Stalin. Como na época, acadêmicos têm sido colocados em uma lista negra e impedidos de terem seus nomes sequer mencionados em publicações oficiais e universitárias somente pelo fato de estarem ligados a idéias pró-cosmopolitas e contrárias ao nacionalismo russo.
Atacando formadores de opinião e ideólogos, Vladimir Putin traça a maneira de garantir o andamento de seus projetos. À moda antiga, utiliza a violência e ações clandestinas e criminosas como instrumentos, amparando-se nos pilares sociais que a conjuntura da Rússia pós-soviética lhe proporcionou e no vasto arsenal de armas atômicas que possui.
Se antes a foice e o martelo tornaram-se a razão pela qual as ações criminosas de Stalin se justificavam, hoje a necessidade de levar a "Mãe Rússia" - construída pelos russos, para os russos - ao futuro torna-se a desculpa perfeita para que o presidente elimine a oposição de qualquer maneira possível e mantenha os privilégios das oligarquias.
O anseio por liberdade na Rússia está sendo enterrado, lentamente, pelo Kremlin. A construção de monumentos a cadelas pode garantir direitos temporários, mas será necessária a edificação de instituições e idéias muito mais sólidas e combativas, apoiadas por toda a comunidade internacional, para mudar a situação no país.
Mateus Alves é jornalista.
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