A falha na proteção ambiental: descaso e prevaricação em Ilha Comprida
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- Marcus Pontes Caduti
- 18/11/2024
Em um país como o Brasil, onde as questões ambientais frequentemente geram polêmicas e dividem opiniões, exemplos alarmantes se acumulam, evidenciando uma desconexão preocupante entre as políticas públicas e a preservação ambiental. Em meio a declarações polêmicas de ex-ministro do meio ambiente do desgoverno Bolsonaro, que defendeu a flexibilização das leis ambientais e a absolvição de empresas de mineração após catástrofes em Minas Gerais, o respeito à natureza muitas vezes é relegado a segundo plano.
Neste contexto, surge uma questão pertinente: é realista esperar que, em um pequeno município como Ilha Comprida, visitantes respeitem tanto a legislação local quanto a proteção ambiental? A resposta a essa pergunta reflete não apenas a realidade de uma região específica, mas também revela muito sobre a relação da sociedade brasileira com seus recursos naturais.
Carro na praia: não dá praia, mas pode dar acidente
Chegando o verão, os dias mais quentes, na hora nos dias de folga todo mundo corre para o litoral. As praias do estado de São Paulo recebem turistas de todas as partes, do próprio estado e de outros estados, até de outros países.
Os comerciantes gostam de ver as cidades movimentadas, hotéis e pousadas cheias, casas de aluguéis de temporada lotadas, muitos veículos abastecendo nos postos de gasolina. Movimenta a economia. Mas nem todos ficam contentes. Os estabelecimentos não aumentam o número de funcionários, filas longas no comércio... E não é só no comércio que aumenta o movimento. Unidades de saúde ficam lotadas e muitos veículos motorizados na praia.
Assim foi o fim de semana prolongado de 4 dias (algumas prefeituras governadas por partidos da direita, contrários ao Dia da Consciência Negra anteciparam o feriado do dia 20, para o dia 18, emendando com o 15 de novembro), em Ilha Comprida. Banhistas disputando espaço com tráfego de carros, motocicletas, quadriciclos (cujo tráfego é proibido nas vias pelo Código Nacional de Trânsito) e até carroças apareceram nas praias de Ilha Comprida neste fim de semana. Pelo menos 50 carroças estiveram num evento que antes acontecia em Peruíbe-SP, mas Ação Civil Pública o barrou e, assim, sua atividade que levara degradação ambiental à paradisíaca Praia do Tanaguá agora está em Ilha Comprida, “terra de ninguém”.
O que é prevaricação e por que importa?
O crime de prevaricação ocorre quando funcionários públicos, no exercício de suas funções, deixam de praticar um ato de ofício, retardam sua execução ou o realizam de forma contrária às normas legais para atender interesses ou sentimentos pessoais. A situação se agrava quando essa conduta é praticada por autoridades responsáveis pela proteção ambiental, como a prefeita de Ilha Comprida, gestores das unidades de conservação da Fundação Florestal e a Polícia Militar. Essas autoridades têm a missão de proteger o meio ambiente e o bem-estar da comunidade, e qualquer omissão ou desvio de conduta pode resultar em danos irreversíveis ao ecossistema e à confiança da população nas instituições. No feriado do dia 15 de novembro, ninguém multou e ou apreendeu os veículos dos infratores e essa impunidade incentiva ainda mais a prática de infrações dentro das Unidades de Conservação - Ilha Comprida encontra-se com 100% de seu território dentro delas.
O caso de Ilha Comprida: um retrato de negligência
No último final de semana, de feriado prolongado, a falta de fiscalização do tráfego de veículos na praia de Ilha Comprida evidenciou a descoordenação entre os órgãos responsáveis. Percebemos que não houve planejamento para receber o número de visitantes que chegaram na cidade e isso não foi surpresa, já que 95% das vagas da rede hoteleira e pousadas estavam ocupadas. Se houve surpresa, é devido a outro problema socioeconômico da cidade: o alto número de imóveis que ficam de março a novembro vazios; alugadas na temporada, algumas dessas casas chegam a ter 20 pessoas hospedadas num final de semana.
A prática de locar os imóveis para temporada traz prejuízos à economia do município, já que não há um ordenamento e esses proprietários lucram sem pagar imposto algum dessa atividade. Algumas pessoas têm muitas casas para alugar na temporada. Lota a cidade, aumenta muito o consumo de energia elétrica, água, gera-se lixo e aumentam o fluxo de esgoto, a poluição sonora de alta intensidade e a aglomeração. Ilha Comprida é um paraíso natural que abriga berçários de diversas espécies, algumas em risco de extinção, como o papagaio-da-cara-roxa, a maria-da-restinga e o curió (canto praia).
Pesquisadores têm dedicado esforços à observação de aves em vulnerabilidade, como os piru-pirus, que encontram nesse litoral um dos poucos locais propícios para reprodução. E o piru-piru é uma ave limícola residente, está ameaçada de extinção. Recentemente, a Câmara Municipal aprovou um projeto de lei de autoria do vereador Rogério Revitti, recém-eleito vice-prefeito, que foi sancionado pelo ex-prefeito cassado, resultando na Lei nº 2.191, de 28 de junho de 2024. Essa lei declara a população nativa de aves limícolas e aves migratórias como Patrimônio Natural de Ilha Comprida e reconhecendo a importância dessas espécies para o equilíbrio ecológico da região.
Um grupo de 4x4, organizado, uniformizado, invadiu as Dunas do Araça, entre a praia e a estrada e chegou a ir até a praia para exibição de manobras na areia, conforme pudemos constar nos vídeos feitos pelos defensores ambientais, que viralizaram pelas redes sociais no sábado. Os infratores estavam do lado de um dos ninhos espalhados por toda a orla de Ilha Comprida. Perturbando os animais com som alto e os ruídos ensurdecedores dos potentes motores, além do risco de atropelarem mãe chocando e seu ovo. Ilha Comprida não precisa de turistas desse tipo. Dispensaria detalhes, se não chamasse tanto nossa atenção. No vídeo a gente visualiza, nitidamente, que o veículo fazendo “zerinho” tem crianças sem cinto de segurança, com metade do corpo para fora da janela, sob risco de alguma fatalidade. E todos motoristas consumiram bebidas alcoólicas no local.
Mesmo com a presença de um arcabouço legal robusto – incluindo o decreto estadual 30.817/1989, a lei municipal 423/2002, o decreto estadual 65.774/2021, a lei federal 9.605/1998, a resolução SIMA 05/2021 e o Código de Trânsito Brasileiro –, o episódio recente expôs falhas significativas na aplicação dessas normas. Durante uma tentativa de denúncia feita por defensores ambientais, a fiscalização se transformou em um jogo de empurra-empurra. Acionada pelo telefone 190, a chamada foi encerrada ao ser informada a localização. Um carro do Departamento de Trânsito Municipal foi enviado, mas o único servidor presente se recusou a agir devido ao risco potencial, alegando que o grupo de infratores já estava alcoolizado e poderia estar armado. Os ambientalistas, pesquisadores e observadores de aves que estavam no local, protegendo o patrimônio natural de Ilha Comprida, arriscaram sua integridade física e até a própria vida, como alertou o agente público que esteve presente.
A situação frustrou os ambientalistas, que tentaram sem sucesso acionar os gestores da APA Marinha e da APA Ilha Comprida, falaram pelo whatsapp, diretamente com um vereador, com dois militares, um deles responsável pelo policiamento de Ilha Comprida e com a prefeita. A chegada de uma viatura da PM, minutos após a saída dos infratores, levantou suspeitas de um possível vazamento de informações. A questão permanece: qual órgão falhou em sua responsabilidade? A falta de coordenação e o receio de agir deixam uma área vulnerável e expõem a fragilidade de um sistema que deveria proteger essa região.
A ausência de ações eficazes e de cooperação entre as autoridades revela um cenário preocupante de negligência que exige uma resposta urgente. A proteção ambiental não pode ser tratada como uma responsabilidade secundária, especialmente em áreas tão ricas em biodiversidade e importância ecológica. A Operação Delegada, serve justamente para que o município se prepare para situações como essa, em fim de semanas prolongados e alta temporada, já que o número de turistas na cidade aumenta exponencialmente. É questão de planejamento administrativo, de todos os órgãos: Fundação Florestal, Polícia Militar e Prefeitura.
A dúvida de toda população é: de quem é a responsabilidade?
Marcus Pontes Caduti é membro da associação de pescadores da ponta norte de Ilha Comprida.
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