Os números implacáveis da economia mileísta
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- Rolando Astarita
- 18/11/2024
Em duas notas anteriores (aquí y aquí) analisamos a política econômica do governo da legenda política La Libertad Avanza (LLA). Neste artigo, atualizamos alguns números da economia argentina até 2024. Com isso, não temos nenhuma pretensão de originalidade. Simplesmente queremos contribuir para a crítica que se eleva de muitos outros focos de resistência contra uma política brutalmente dirigida contra os trabalhadores e as massas despojadas e empobrecidas. Começamos com os números de pobreza e indigência fornecidos pelo INDEC (Instituto Nacional de Desenvolvimento Econômico).
Pobreza: 52,9% da população. São 24,8 milhões de pessoas. No final de 2023, a pobreza era de 42%. Hoje, há 5,4 milhões de pobres a mais do que no segundo trimestre de 2023. A pobreza infantil atinge 66%.
Indigência: 18,1%; são 8,5 milhões de pessoas; 3 milhões a mais do que no segundo trimestre de 2023; 27% das crianças menores de 14 anos estão em situação de indigência. No final de 2023, a indigência era de 11%. Além disso, 23% das crianças entre 3 e 5 anos não frequentam estabelecimentos educativos formais; 35% dos jovens não concluíram o ensino médio.
De acordo com o Observatório da Dívida Social Argentina, da Universidade Católica Argentina, em uma pesquisa conjunta com o Banco Hipotecário, 56% dos menores de idade em centros urbanos não têm acesso a esgoto, pavimentação e calçadas; 53% não têm acesso ao gás; 38% carecem de sistemas de esgoto; 19% estão em situação de precariedade habitacional e 18% sofrem com superlotação. É nesse corpo social, de carne viva, que o governo de LLA aplica o “ajuste” dos gastos públicos.
Queda dos salários
Desde que Milei assumiu, houve uma queda acentuada dos salários reais, devido à erosão causada pela inflação. Em julho de 2024, o aumento médio, interanual, dos salários foi de 206%. Nesse mês, os salários dos funcionários públicos aumentaram, interanualmente, 170%; os do setor privado não registrado, 178%; e os do setor privado registrado cresceram 235,1%, também de forma interanual.
Por outro lado, a inflação, em julho, interanual, foi de 263,4%. Portanto, os salários dos funcionários públicos caíram, em termos reais, 25,7%; os do setor privado não registrado diminuíram 23,2%; e os do setor privado registrado caíram, em termos reais, 7,8%.
Manobra discursiva
Para dissimular a contundência desses dados, o governo recorre à comparação trimestral ou mensal. No caso da pobreza, os 52,9% do semestre informado pelo INDEC surgem da média dos dados dos dois primeiros trimestres: a pobreza no 1º trimestre foi de 55%; no 2º trimestre caiu para 51%. Milei utiliza essa queda para afirmar que “a pobreza está diminuindo”. Algo semelhante ocorre com a evolução dos salários. Dado que nos últimos 4 meses os aumentos salariais foram um pouco superiores à inflação, novamente, o discurso oficial é “os salários estão subindo”. Dessa forma, dissimula a forte queda de longo prazo dos salários e o aumento, também de longo prazo, da pobreza e da indigência. Os repiques são apenas isso, repiques, que não modificam a tendência de fundo.
Mais geralmente, é uma regra no capitalismo que, quando ocorrem grandes crises e depressões, chega um ponto em que a queda dos salários atinge um limite e os rendimentos têm alguma recuperação, ao mesmo tempo que a atividade econômica se recupera. Mas isso não apaga que: a) a crise é paga pelos trabalhadores e setores populares; b) os salários terminam em níveis inferiores aos do início da crise; c) a pobreza e a indigência permanecem em níveis mais elevados do que antes da crise.
Como bem advertia Marx, quando se fala de salários, o que importa é o longo prazo, acima das alterações conjunturais. E o que se impõe hoje, na Argentina, é uma queda profunda dos salários reais (ou seja, da cesta de bens que reproduzem a força de trabalho) de milhões de trabalhadores.
A economia no fundo
O Produto Interno Bruto (PIB) no 2º trimestre caiu 1,7% interanual; e 1,7% em relação ao 1º trimestre. No primeiro semestre, a queda foi de 3,4%. No 2º trimestre pode ter atingido um fundo, mas não há sinal de que esteja ocorrendo uma recuperação importante e sustentada. Por enquanto, apenas se registram leves repiques, sem que a economia saia do buraco. Segundo o Relevamento de Expectativas de Mercado (REM), a pesquisa realizada pelo Banco Central, a atividade econômica no 3º trimestre aumentou apenas entre 1,1% e 1,6% em relação ao 2º trimestre. E espera-se um crescimento menor, entre 0,6% e 0,9%, no 4º trimestre em relação ao 3º trimestre. O resultado é que a economia fecharia o ano com uma queda entre 3,8% e 3,9%.
Outros dados: o Estimador Mensal de Atividade Econômica (EMAE) foi negativo em 3,5% nos primeiros 7 meses do ano. Segundo a FIEL (Fundación de Investigaciones Económicas Latinoamericanas), em agosto a indústria caiu 0,7% em relação a julho. O acumulado dos primeiros oito meses do ano é negativo em 10,5%. De acordo com a consultoria Orlando Ferreres, o Índice Geral de Atividade, após registrar um avanço de 1% em julho em comparação com junho, voltou a retroceder 0,6% em agosto. Na comparação anual, o índice foi negativo em 5,6%.
Também na comparação interanual, houve melhora na agricultura e pecuária, mas a indústria, construção e comércio experimentaram uma forte queda (Ámbito Financiero, 28/09/2024). Um relatório da Superintendência de Riscos do Trabalho indica que nos primeiros seis meses do ano encerraram suas atividades 9092 microempresas (microempresas são aquelas com menos de cinco trabalhadores). E fecharam 2634 empresas de maior porte (M. Zalazar, Infobae, 25/09/2024).
Em relação ao consumo privado, no 2º trimestre de 2024 foi 9,8% menor do que no 2º trimestre de 2023. O consumo público, também na comparação interanual, foi 6% menor. Em relação ao 1º trimestre de 2024, no 2º trimestre ambos foram negativos em 4,1% e 1,1%, respectivamente (INDEC). Segundo a Câmara Argentina de Comércio (CAC), em agosto o consumo caiu 7,8% interanual e 1,8% em relação a julho; em julho, havia aumentado 1,8% em relação a junho. Nos primeiros oito meses do ano, a queda do consumo privado foi de 6,4%. Alguns setores são particularmente afetados: recreação e cultura caíram, em agosto, interanualmente, 21,7%. O setor de vestuário teve uma queda de 17%, interanual. De acordo com a consultoria Scentia, especializada em consumo de massa, em julho o consumo caiu, em termos interanuais, 16,1%. Em agosto, a queda interanual chegou a 20%. No segmento de eletrodomésticos, a queda chega a 33%.
Os números fornecidos pela Confederação Argentina da Média Empresa (CAME) em relação a setembro são coincidentes: as vendas no varejo caíram 5,2% em relação ao mesmo mês de 2023; nos primeiros 9 meses de 2024 acumulam uma queda interanual de 15% (La Nación, 07/10/2024). A porcentagem de queda diminui – de 21,9% em junho para 5,2% em setembro – mas não há indícios de que se tenha entrado em uma fase de recuperação da recessão. Em agosto, a construção caiu 2,9% em relação a julho, e no acumulado do ano teve uma queda de 30,3%.
A indústria cresceu 1,5% intermensal, mas no acumulado do ano caiu 13,6%. Outro exemplo ilustrativo é a venda de automóveis zero quilômetro (o consumo de bens duráveis tende a crescer fortemente nas recuperações). Em setembro, as vendas aumentaram 5% em relação a agosto, mas entre janeiro e setembro caíram 11,7% em comparação com o mesmo período de 2023.
No que se refere ao investimento, ele também está em queda acentuada (veja mais abaixo). Tudo muito distante da recuperação em “V” que, segundo Milei e Caputo, ocorreria a partir de março ou abril.
Trabalho informal e o decreto 847/2024
De acordo com o INDEC, no segundo semestre de 2024, 36,4% dos assalariados não tiveram contribuições previdenciárias. Isso significa que esses trabalhadores não possuem benefícios básicos, como plano de saúde, férias remuneradas ou direito à indenização em caso de demissão. Algumas áreas são especialmente afetadas. Na construção civil, 70% dos trabalhadores não estão registrados. Entre as mulheres que trabalham como domésticas, 76% estão na informalidade. Essa elevada informalidade explica o fato de que a taxa de desemprego tenha subido apenas dois pontos percentuais (no 1º trimestre foi de 7,7%, no 2º trimestre de 7,6%, contra 5,7% no 4º trimestre de 2023), apesar da forte queda da economia.
Nesse contexto, o decreto 847/2024 consolida e legitima a informalidade trabalhista. Entre outras medidas, cria a categoria de “colaboradores”: será possível contratar até três “colaboradores” sem que isso gere vínculo empregatício. Além disso, sob o pretexto de “Promoção do emprego registrado”, o empregador fica isento de multas, sanções ou contribuições por ter empregados não registrados. O Registro de Sanções Trabalhistas é eliminado, e as dívidas pendentes devido à falta de pagamento de contribuições ou encargos patronais são perdoadas. Ademais, abre-se a possibilidade de modificar as indenizações por demissão, com os trabalhadores “negociando livremente” com as empresas, em uma posição claramente desfavorável.
Aumento da participação dos lucros no PIB
Se os salários caem mais do que o PIB, necessariamente a relação lucro/salário aumenta, ou seja, a participação dos lucros no produto cresce. “Lucros” compreendem os benefícios das empresas, as rendas (agrícola, mineral, imobiliária) e os juros. Em termos marxistas, isso indica um aumento na taxa de mais-valia.
Essa é uma relação fundamental a ser observada. Ela evidencia que o conflito social chave é, em termos de classes sociais, a transferência do valor agregado (gerado pelo trabalho) aos proprietários dos meios de produção e do capital. Esse é o objetivo final da política econômica da LLA.
Essa transferência se manifesta no aumento do coeficiente de Gini, um indicador de desigualdade de renda. No 2º trimestre de 2024, foi de 0,436 (1 indica desigualdade absoluta, 0 igualdade absoluta de renda). “No mesmo trimestre de 2023, o valor foi de 0,417, o que mostra um aumento significativo da desigualdade na comparação anual” (“Evolução da distribuição da renda”, INDEC, 2T 2024).
Outro dado significativo: no 2º trimestre de 2024, o 10% mais rico recebeu 32,5% da renda, enquanto os 50% mais pobres receberam 19,9% (INDEC, 31 aglomerados urbanos; rendas individuais). A renda média dos quatro primeiros decis da população, classificada conforme a renda de sua ocupação principal, foi de $153.323 (US$138 com a taxa de câmbio de $1300/US$).
Investimento
O investimento é fundamental para o desenvolvimento das forças produtivas (primeiramente, o desenvolvimento tecnológico e o crescimento do trabalho produtivo). Segundo o INDEC, a formação bruta de capital fixo (incluindo edifícios, equipamentos de transporte, máquinas industriais, equipamentos de informática e software) no 2º trimestre foi 29,4% menor em relação ao mesmo período de 2023. Em relação ao 1º trimestre de 2024, foi 9,1% menor.
De acordo com a consultoria Orlando Ferreres y Asociados, o investimento real em agosto caiu 25,8% em termos anuais. O acumulado dos primeiros oito meses do ano é de -21,5%. No setor de máquinas e equipamentos, o estudo registrou uma queda anual de 23,7%. A importação de equipamentos duráveis para produção caiu 42,8%. No setor de construção, o investimento caiu 27,6% em termos anuais. Quanto ao investimento público, este praticamente desapareceu. Uma situação insustentável no médio prazo, pois a reprodução do capital é impossível sem investimento em infraestrutura, que muitas vezes só pode ser realizado pelo Estado.
Neste sentido, é também preocupante a redução do investimento estatal em pesquisa e desenvolvimento (com cortes no financiamento do CONICET, das universidades e de outros órgãos como o INTI). O investimento em P&D na Argentina já era muito baixo, representando apenas 0,52% do PIB (menos que a média da América Latina; muito abaixo de países como os EUA ou Coreia do Sul). Milei e seu grupo querem reduzi-lo ainda mais. Trata-se, simplesmente, de barbárie, mesmo considerando a questão do ponto de vista do desenvolvimento capitalista.
Outro dado significativo é que, de dezembro de 2023 a agosto de 2024, oito multinacionais deixaram a Argentina: HSBC, Xerox, Clorox, Prudential, Nutrien, ENAP, Fresenius Medical Care e Procter & Gamble. Parece que não basta apenas o equilíbrio fiscal para garantir o investimento.
Investimento direto, de portfólio e moratória
Em repetidas oportunidades, o Governo afirmou que capitais internacionais estão considerando investir na Argentina. Mas a realidade é que, por enquanto, o investimento estrangeiro direto de não residentes é muito fraco: o acumulado até agosto foi de apenas US$ 531 milhões. O acumulado do investimento de portfólio de não residentes, entre janeiro e agosto, foi até negativo, com US$ 10 milhões (Balanço cambial).
Por outro lado, nesse mesmo período, o acumulado de “Formação de ativos externos do setor privado não financeiro” foi de US$ 1.2 bilhão (em agosto, US$ 456 milhões; Balanço Cambial). Lembremos que os ativos de argentinos no exterior somam US$ 450,7 bilhões (investimentos diretos, investimentos de portfólio, depósitos em dólares, mais reservas do BCRA). Isso demonstra que a falta de desenvolvimento não se deve a uma escassez de poupança, mas sim à falta de investimento (em termos marxistas, reinvestimento da mais-valia em trabalho produtivo).
Nesse quadro, insere-se a recente entrada de dólares pela ocultação. Até 24 de setembro, os depósitos em dólares nos bancos experimentaram um aumento de US$ 11.9 bilhões. Uma parte desses capitais comprou títulos públicos e bônus corporativos (obrigações negociáveis). Assim, os preços dos bônus do Tesouro subiram, o risco país caiu abaixo de 1.200 pontos, o dólar blue e os dólares financeiros caíram; e a taxa à qual grandes empresas se endividaram diminuiu. O aumento dos depósitos em dólares também permitiu uma certa recuperação dos créditos em dólares, principalmente destinados a pré-financiar exportações. Daí o “veranito financeiro”. Mas nada indica que esteja em andamento uma recuperação sustentada da acumulação de capital. Menos ainda que se superem os níveis historicamente baixos de investimento na Argentina: há décadas, nos melhores anos, não ultrapassam 20% do PIB.
Superávit fiscal com mais fome e miséria
O superávit nos oito primeiros meses foi de 0,35% do PIB. Esse resultado foi obtido principalmente por meio de “ajustes” nos salários dos servidores públicos, nas aposentadorias, na redução de subsídios e no colapso da obra pública. Segundo “Profit Consultores”, e reproduzido no programa de Maxi Montenegro, nos primeiros oito meses a redução das despesas públicas foi:
• Gastos de capital: -79,4%
• Transferências correntes para províncias: -69,1%
• Outros gastos correntes: -46,5%
• Subsídios à energia: -36,8%
• Subsídios econômicos: -34,9%
• Subsídios às universidades: -34,2%
• Outros gastos de funcionamento: -32,8%
• Subsídios ao transporte: -27,5%
• Programas sociais: -26,4%
• Gastos correntes primários: -24,7%
• Aposentadorias e pensões contributivas: -22,6%
• Gastos de funcionamento e outros: -22,3%
• Atribuições familiares, ativos, passivos e outros: -21,5%
• Pensões não contributivas: -20,6%
• Salários: -19,5%
• Prestação social: -19,5%
A participação no ajuste do gasto público nos primeiros oito meses de 2024 (mesma fonte):
• Aposentadorias e pensões não contributivas: 25,3%
• Gastos de capital: 23,2%
• Subsídios econômicos: 14,5%
• Outros programas sociais: 8,8%
• Salários: 8,6%
• Transferências correntes para províncias: 7%
• Transferências para universidades: 3,9%
• Resto: 8,8%
Além disso, e devido à queda da economia, a arrecadação fiscal diminui. No primeiro semestre, caiu em termos reais, 7% em relação ao ano anterior. Em agosto, a receita, em termos reais, diminuiu 14% em relação ao ano anterior. Em setembro, caiu “apenas” 3,4% devido a um fator circunstancial, os adiantamentos do imposto sobre bens pessoais. A arrecadação relacionada à evolução do produto diminuiu fortemente. A do IVA foi negativa, em relação ao ano anterior, em 16,3%, e os impostos sobre ganhos, -13%. Isso poderia levar a novas reduções do gasto público e novas quedas na arrecadação.
Controle da inflação é suficiente para o desenvolvimento?
Milei e seus apoiadores apresentam como se fosse um grande feito ter reduzido a inflação de 25% em dezembro – potencializada pela desvalorização que o próprio governo provocou – para, aproximadamente, 4% ou (previsto) 3,8%, aproximadamente (mas a “inflação núcleo” parece continuar em 4,2%). Um “feito” obtido com base em uma profunda recessão; a queda dos rendimentos salariais e aposentadorias; o aumento, por milhões, dos pobres e indigentes; e o colapso da obra pública; o desfinanciamento da educação pública e de entidades culturais, científicas e técnicas.
Esse desastre social é justificado em alguns círculos com o argumento de que “se reduzirmos a inflação, haverá desenvolvimento”. Mas isso não é verdade. A redução de uma taxa de inflação elevada para uma mais baixa não é uma condição suficiente para que haja desenvolvimento ou para melhorar a vida das massas. Afinal, o sistema capitalista passou por crises e depressões não apenas sem inflação, mas com pressões deflacionárias. Por exemplo, a crise de 1929-1933 nos EUA; e a crise e depressão pós-1992 no Japão. Ou a crise argentina de 2001.
Mas mais significativo é um caso como o do Peru. A partir de um duríssimo plano de ajuste, que começou a ser implementado por Fujimori, desde 1997, o Peru tem uma inflação anual de um dígito. No entanto, a situação das massas trabalhadoras não melhorou de forma substancial. A pobreza caiu em relação aos altos níveis alcançados nos anos 1990 – durante “o ajuste” – mas se estabilizou em 29%. E 50% dos empregos são informais ou precários.
Crescimento da dívida
Em agosto, o estoque da dívida bruta em condições de pagamento normal ascendeu a US$ 455,9 bilhões (Ministério da Economia). Em relação a julho, a dívida aumentou em US$ 6,3 bilhões, um aumento de 1,4%. Em relação a dezembro de 2023, o estoque da dívida aumentou em mais de US$ 87,7 bilhões, em grande parte porque a dívida do BCRA (Banco Central da República Argentina) foi transferida ao Tesouro. E há negociações em andamento para aumentar o endividamento com um grupo de bancos (veja mais abaixo).
Interlúdio: algumas precisões sobre a dívida
Em primeiro lugar, é importante destacar que o problema da dívida não se limita à dívida externa, como algumas pessoas parecem pensar. De fato, a dívida externa do governo geral (governo central mais governos provinciais), no segundo trimestre de 2024, era de US$ 154,5 bilhões. Isso representa 34% do total da dívida. As duas terças partes da dívida estão nas mãos de residentes argentinos. Portanto, não é um problema “nacional” ou de defesa “da pátria”, mas sim de interesses capitalistas.
Em segundo lugar, deve-se considerar que mais de 45% da dívida está nas mãos de agências do setor público; 92% no Fundo de Garantia de Sustentabilidade (FGS) da ANSES; e os 8% restantes em outras entidades do setor público, como o Banco Nacional e o BCRA. O FGS é, então, um fundo soberano de investimento composto por diversos ativos financeiros, integrado ao sistema previdenciário. Possui títulos do Tesouro no valor de cerca de US$ 31,3 bilhões (essa avaliação varia de acordo com a taxa de câmbio utilizada como referência), que representam 10% dos títulos emitidos pelo setor público. De acordo com a lei Ómnibus, esses títulos públicos que estão sob a posse do FGS serão transferidos para o Tesouro, serão cancelados e deixarão de circular. O que, na prática, é um default dos títulos em mãos da ANSES. Uma questão a ser considerada quando a esquerda demanda a suspensão do pagamento da dívida.
Em terceiro lugar, os títulos de dívida emitidos pelo Tesouro, mais os créditos concedidos ao setor público, representam hoje uma parte significativa dos ativos dos bancos. O governo pressionou os bancos a adquirirem títulos do Tesouro. Como resultado, em julho, as LEFI (Letras Fiscais de Liquidez), emitidas pelo Tesouro para substituir os Pases do BCRA, representavam 37,1% dos ativos dos bancos. Isso se soma a mais 6% por créditos ao setor público (BCRA, “Relatório sobre bancos”, julho de 2024). Essa exposição cresceu continuamente nos últimos 12 meses, ou pouco mais. Em abril de 2023, os passivos do Tesouro representavam 16,4% dos ativos dos bancos; em junho, a proporção havia subido para 36,9%. Agora, chega a 43,9%. Portanto, um default da dívida colocaria o sistema bancário em graves dificuldades (e a contrapartida desses ativos são os depósitos dos poupadores). Tanto essa questão quanto a posse de dívida pública pela ANSES mostram que um default da dívida só pode ter um sentido progressista se a medida estiver articulada em um programa de transformação social radical. Caso contrário, é um remendo que não modifica nada substancialmente.
Por último, lembremos que 19,6% do estoque da dívida corresponde a organismos internacionais. A dívida com o FMI representa 9,4% da dívida total; e 26% da dívida externa. Outro dado que deve ser levado em conta, desta vez por aqueles que reduzem a reivindicação de se livrar da dívida a simplesmente parar de pagar ao FMI.
Reservas internacionais e pagamentos da dívida em 2025
Há muitas décadas, as crises econômicas na Argentina explodem do lado externo, especialmente devido a crises na balança de pagamentos – perda de reservas, corridas cambiais – muitas vezes seguidas de crises bancárias e financeiras, incluindo defaults da dívida pública. Daí a importância de acompanhar as contas externas.
Entre dezembro de 2023 e maio de 2024, o balanço cambial da conta corrente foi superavitário em US$ 12,1 bilhões. Assim, o BCRA reduziu o negativo das reservas internacionais de mais de US$ 10 bilhões, no final do governo de Fernández, para cerca de US$ 2 ou 3 bilhões.
No entanto, a situação mudou a partir de maio. Entre junho e agosto, o balanço cambial da conta corrente foi deficitário em US$ 3,16 bilhões. Na soma de junho e julho, o BCRA perdeu US$ 162 milhões; em agosto acumulou US$ 535 milhões e em setembro, US$ 373 milhões. Nos primeiros dias de outubro, houve mais compras pelo Banco Central, possibilitadas em parte pela já mencionada moratória e pelo crescimento dos depósitos em dólares. No entanto, ainda está longe de cobrir os pagamentos pendentes. No total, em 2025, os pagamentos por serviço da dívida superam os US$ 17 bilhões (incluem pagamento de juros ao FMI; capital e juros a outros organismos internacionais; a credores). A isso se soma a dívida por BOPREAL (pagamento postergado de importações já realizadas) que ultrapassa os US$ 2,1 bilhões.
Além disso, devemos acrescentar:
a) o peso está se valorizando gradualmente, já que o dólar oficial aumenta 2% ao mês, que é metade do aumento dos preços. Isso enfraquecerá o balanço da conta corrente;
b) a variação do preço do dólar abaixo da taxa de juros em pesos possibilita uma lucrativa bicicleta financeira. Por exemplo, se o juro pago por um título em pesos é de 4% ao mês, e se o peso se desvaloriza em 2% ao mês, haverá um lucro em dólares de 2% ao mês. É um rendimento insustentável, que tradicionalmente termina em corridas cambiais e desvalorizações abruptas de capital;
c) na medida em que a economia se recupere - mesmo que seja na escala de um ressurgimento - as importações aumentarão e, portanto, a demanda por dólares para pagá-las;
d) o preço da soja caiu. Hoje gira em torno de US$ 330 por tonelada, contra cerca de US$ 500 em 2022;
e) de acordo com a Bolsa de Cereais de Rosario, devido à seca “já há 30% do trigo em condições de regulares a más”; e a semeadura do milho começa a ser afetada;
f) o déficit na balança de serviços aumentou. Em agosto, alcançou US$ 640 milhões, um déficit 49% maior do que no mesmo mês de 2023. Entre janeiro e agosto de 2024, o turismo receptivo caiu 12,2% e o emissivo subiu 10,7%.
A única forma de cobrir as necessidades de dólares em 2025 seria com uma forte entrada de capitais. Mas isso não aparece. Devido ao crescimento dos depósitos em dólares nos bancos, aumentaram as reservas brutas do BCRA. No entanto, não são dólares de livre disponibilidade. Isso significa que quando o BCRA anuncia que tem os dólares para pagar os serviços da dívida em janeiro de 2025, na realidade, não os tem. Por isso, o governo teria a intenção de aumentar a dívida com um grupo de bancos em cerca de US$ 3,5 bilhões. O objetivo é enfrentar os pagamentos comprometidos, de US$ 4,9 bilhões, que devem ser feitos em janeiro de 2025. Naturalmente, mais dívida não resolve nenhum problema de fundo.
Para concluir
O “ajuste” sobre os salários, as condições de trabalho e de vida das massas trabalhadoras e populares, por enquanto, foi imposto. Isso aconteceu com o apoio e consentimento – além de pequenas diferenças – das câmaras empresariais, dos principais partidos políticos (incluindo governadores e legisladores do peronismo) e a “tolerância”, em um conteúdo profundo, da maior parte dos dirigentes sindicais.
A ofensiva contra o trabalho não cessa. O governo manifestou, em várias oportunidades – em conflitos como os da Aerolíneas e com docentes, entre outros – sua vontade de suprimir o direito de greve em muitas atividades. O recente veto à lei de orçamento universitário e os ataques aos trabalhadores da saúde (hospitais Garrahan e Laura Bonaparte) são outras tantas expressões desse ataque. Em março de 2024, escrevíamos:
“No sistema capitalista não existem saídas ‘progressistas’ para as crises. A resposta do sistema à crise passa pela queda dos salários (incluindo os salários sociais, a educação e a saúde públicas, e semelhantes); pela perda de direitos trabalhistas; o enfraquecimento das organizações sindicais; a flexibilidade para contratar e demitir; e semelhantes. Toda a ciência econômica de Milei, Espert (e Hayek e Friedman) se concretiza neste programa brutal. Que é o programa do capital em geral.
O central é que o capital não sai das crises diminuindo a exploração do trabalho, mas sim aumentando-a. (...) Hoje o governo e o capital buscam recompor a acumulação pela mesma via de sempre. Mesmo governantes e políticos que se consideram defensores dos setores populares agora implementam os ajustes na queda dos salários e aposentadorias, e consentem que se avance na reforma trabalhista”.
Também: “Não há crises capitalistas sem saída. Chega um ponto em que a desvalorização dos ativos; a perda de direitos trabalhistas; a queda dos salários; a destruição das forças produtivas; as reestruturações dos capitais (fusões, fechamento de empresas improdutivas) induzem os capitalistas a investir. À custa de uma tragédia social (pobreza e indigência em níveis recordes), o capital recompõe as condições para a acumulação (...) A única forma de que se imponha um programa progressista, humanista, é com uma transformação que mude radicalmente esta estrutura social, que gira em torno dos lucros do capital e sua contrapartida, a exploração do trabalho”
Rolando Astarita é economista argentino.
Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.
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