A via crucis dos trabalhadores endividados
- Detalhes
- Waldemar Rossi
- 07/11/2012
O ufanismo é uma das perversas práticas dos ocupantes do poder – em suas três instâncias: municipal, estadual e federal. Basta alguma pequena melhora em qualquer dos indicadores econômicos, ainda que passageira, para que os governantes e seus “lambe-botas” saiam esgoelando mundo afora que, graças às políticas aplicadas, as coisas melhoraram. Tentam tapar o sol com a peneira, iludindo incautos e toda sorte de gente que vive no sufoco com sua economia familiar. Assim, quando falam em crescimento do emprego, por exemplo, vendem a ilusão de que o país caminha na rota certa e que “todos seremos felizes num futuro bem próximo”, que todos terão trabalho, que as famílias deixarão de viver na rua da amargura. No bojo desta lengalenga, estimulam os trabalhadores a comprar, comprar, comprar, não importa o quê. E o resultado, também perverso, não tarda a aparecer.
Dados do Banco Central revelam que 22,44% da renda familiar estão sendo aplicados para o pagamento de dívidas e que, apesar disso, a inadimplência (calote, falta de pagamento) dos trabalhadores continua alta. Com os baixíssimos salários que vigoram no país, não se consegue manter uma família padrão atendendo às suas necessidades básicas. Como a publicidade comercial é estimuladora ao consumo, mas é também desleal, leva os menos precavidos ao consumo impensado, especialmente com as compras parceladas. Com isto, quando menos esperam, as dívidas estouram o orçamento familiar, levando os responsáveis ao desespero ou, então, ao calote indesejado.
Mas o trabalhador, via de regra, não é caloteiro, não gosta de dar o cano em ninguém, preza sua dignidade e faz de tudo para mantê-la intacta. Quer ser uma saudável referência para seus filhos e para seu entorno. Com tal preocupação, parte, então, para iniciativas mais ousadas em busca dos recursos necessários. Se estiver trabalhando, propõe-se a fazer horas extras, incluindo feriados e domingos. Aí começa a comprometer sua vida familiar: sai cedo de casa, volta muito tarde, dorme pouco e não descansa o suficiente, repete a rotina inclusive nos fins de semana, vai se estressando, comprometendo sua saúde, deixando de acompanhar seus filhos, faltando com a companhia devida à sua esposa ou ao seu marido, enfim, comprometendo toda sua vida familiar. E, pior ainda, se adoecer, perde o emprego.
Outros dados recentes complementam as informações acima, revelando a intensidade dessa vida crucificada: “Quase um quarto dos trabalhadores que procura emprego temporário nesse fim de ano têm como objetivo obter uma renda extra para pagar dívidas. Desses, mais da metade (59%) já está empregada e nunca prestou serviços temporários”, revela pesquisa feita pela empresa Vagas Tecnologia (Estadão, 5/11/2012 – Economia, pág. B1). Portanto, mais trabalhadores em dupla jornada. Serão pelo menos dois meses que, inegavelmente, provocarão o cansaço e desgaste físico e emocional desses trabalhadores. Os possíveis resultados negativos são bem previsíveis.
A abordagem inicial desse artigo fala do discurso enganoso dos políticos e seus fiéis servidores e o classifica como perverso. Perverso por várias razões: porque os empregos atuais não estão garantidos, pois a demissão do trabalhador virou rotina do sistema capitalista; a rotatividade da mão de obra a cada ano já é gritante; a cada novo emprego corresponde algum achatamento salarial; o tempo entre um emprego perdido e outro alcançado é sempre, pelo menos, de alguns meses; se o trabalhador já tiver passados dos 50 anos de vida, terá muito mais dificuldades em encontrar trabalho; sem trabalho, não há salário e, sem salário, não tem como atender às necessidades da casa. Resultado frequente: inquietações, irritações, queixas, desentendimento entre esposos, entre pais e filhos. Quantos lares já se desfizeram em casos semelhantes? Quanta gente buscou “consolo” na bebida? Quantos jovens fizeram sua iniciação às drogas? Quantas meninas se entregaram bem cedo à prostituição?
Mas a perversidade maior é a de esconder para o conjunto da sociedade que o padrão de vida do trabalhador vem sendo rebaixado progressivamente, seu poder aquisitivo “caindo pelas tabelas”, seus direitos fundamentais sendo roubados em conta gotas por anos a fio, sendo-lhe negados os dados comparativos para que possa entender esse processo corrosivo do seu padrão de vida. Essa negação da verdade leva-o à acomodação, ao conformismo, ao fatalismo de sua vida miserável.
Entretanto, segundo os discursos dos políticos de plantão, tudo está bem e ainda vai melhorar. Entram anos, passam-se anos, entram e saem governantes e as políticas públicas não mudam seu rumo, tudo vai sendo feito para que o capital acumule mais, para que as riquezas produzidas socialmente se concentrem nas mãos de uns poucos e cada vez mais reduzidos ladrões legalizados. A crueldade se potencializa porque o povo continua a legitimar governantes ilegítimos e a legitimar esse sistema político-econômico excludente, que vai gerando miséria e barbárie crescentes. É irritante ver gente que deveria dedicar sua vida à formação da consciência crítica do povo a se mancomunar com o poder, ou a fechar os olhos diante de tantas e frequentes injustiças!
Waldemar Rossi é metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo.
Comentários
Políticas públicas estão sendo realizadas para atender a agentes externos em detrimento do que pensa a sociedade, basta ver o que estão fazendo na Grécia, onde reformas trabalhistas cortando direitos estão sendo implementadas para atender a exigências de credores internacionais. A mesma coisa o Brasil vem fazendo ano após ano, macro políticas públicas vem sendo feitas para atender o FMI: estímulo à exportação, mesmo que seja de bens primários. Uma consulta aos dados do MDIC (Aliceweb) comprovam que os saldos positivos da balança comercial são basicamente de produtos agrícolas (café, açúcar, madeira, minérios) e os negativos são produtos com alto teor de tecnologia como maquinários em geral, veículos e produtos químicos. Isso sem contar os cortes e cortes de investimento público para gastar quase metade de toda arrecadação pagando juros de uma dívida que nunca foi auditada. Se os brasileiros reclamam que se trabalha 5 meses por ano para pagar tributos, que saibam todos que 2 meses e meio é apenas para pagar dívidas, aliás, só os juros da dívida.
Vamos agora a um exercício mental rápido e veremos que o modelo atual se retroalimenta, nunca deixando o povo alcançar o poder, nunca o parágrafo único do artigo PRIMEIRO da Constituição será atendido:
- da ideia da democracia, se todos são iguais e se todo o poder emana do povo, quem tem mais poder é a parcela mais pobre do povo, por ser a maioria;
- mas se a parcela pobre não detém a maior parte do poder como deveria, outro detém: a parcela mais rica;
- a parcela mais rica representa o capital, que logo é quem detém o poder, pois de forma mais abrangente o capital é impessoal e apátrida;
- o atual ambiente consumista desenfreado favorece o capital, pois a atenção da sociedade se volta para o "ter" e não para o "ser";
- cria-se uma sensação de comparação entre "quem tem" e "quem não tem", cria-se sensação de vazio material e cobiça;
- quem mais "tem", mais pode: a parcela mais rica contrata quem "não tem", este se sujeita ao trabalho àquele a fim de alcançar uma pequena parte do poder de "ter";
- com o fruto do trabalho, o trabalhador contratado alcança um pequeno potencial de "ter", ao passo que o potencial de "ter" de quem contrata aumenta de forma mais acentuada, afinal é fruto da diretriz do lucro;
- se houver diminuição da vontade consumista pela sociedade, haverá menos necessidade de "ter";
- se houver diminuição da necessidade de "ter", a parcela mais rica começa a perder poder;
- se a parcela mais rica começa a perder o poder, começa a perder todo o meio de legitimação do seu status de dominação;
- porém, o atual ambiente consumista desenfreado se retroalimenta, mantendo o poder da parcela mais rica, pois a diretriz primordial é o lucro, o resto tem valor secundário, quando tem valor;
- o modelo consumista nunca permitirá o alcance do poder pelo povo.
Assine o RSS dos comentários