Fleury(s) e militares: herança macabra
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- Waldemar Rossi
- 22/11/2012
O cinema, a serviço da cultura capitalista dos Estados Unidos, invadiu o mundo, sobretudo depois da 2ª grande Guerra Mundial. A telinha em preto e branco nos mostrava as imagens dos massacres que os invasores da América do Norte impunham, com suas armas mortais, aos nativos daquele território, as nações indígenas. Os filmes – incluídos os bang-bangs – tentavam nos passar a cultura de que as ações assassinas dos invasores eram legítimas: os índios seriam, então, os “bandidos”, e os brancos invasores, vindos dos países do Reino Unido (Inglaterra, Irlanda e outros), eram os “mocinhos”. E nós, meninos e meninas, torcíamos, lógico, pelos “mocinhos”.
O cinema nos passava também a ideia da superioridade do povo estadunidense em relação aos povos dos “países pobres”. E trazia a cultura de que os invasores têm o direito de se apossar dos territórios alheios, dominar os nativos inferiores e submetê-los aos seus interesses. Aos “rebeldes” restaria a morte, pelo assassinato, pela dizimação, pela eliminação das nações nativas. Essa ideologia, chegando ao Brasil, reforçou a prática de perversidade dos coronéis brasileiros e das polícias estaduais, que pela violência das armas impunham ao povo o silêncio e a colaboração na produção das riquezas que os poderosos iam acumulando. Somando-se, a cultura alienígena e a violência nos impunham a submissão.
E boa parcela do nosso povo, como bom papagaio, repetia que “brasileiro é vagabundo”, ainda que esse brasileiro estivesse se matando para produzir alimentos, casas, estradas, cidades. Por tal cultura dominadora, os trabalhadores deveriam, inclusive, agradecer aos coronéis e empresários que lhes davam trabalho. A escola, desde o primário, nos ensinava que patrão era superior, tinha sempre que ser respeitado e que deveríamos acatar docilmente suas ordens, fossem elas quais fossem.
As várias formas repressivas praticadas contra os trabalhadores no país e a conivência da Justiça – também mancomunada com os donos de terras e grandes empresários – foram gerando a cultura do crime impune, porque praticado a mando dos coronéis, latifundiários, por suas gangues armadas ou pelas polícias estaduais, sempre a serviço do “proprietário”, como é entendido e protegido pelo Estado burguês.
O grande avanço da prática da violência contra o povo se deu com a implantação da ditadura militar. Os altos interesses do capitalismo que se instalava no país, visando garantir a submissão do povo, alimentaram a máxima, no seio da polícia, de que “bandido bom é bandido morto”. Nesse contexto, em meados dos anos de 1960, uma figura macabra despontou em São Paulo: delegado Sérgio Paranhos Fleury, criador do ESQUADRÃO DA MORTE, cujo objetivo claro foi eliminar “bandido”, conforme linguajar da burguesia nacional.
Defendendo os interesses dos grandes empresários e da raivosa classe média alta, especialmente das “damas” paulistanas, Fleury organizou grupos de policiais sedentos de sangue para “matar bandidos”. Assim, Fleury e sua gangue se colocavam como: investigadores, soldados, delegados, promotores, juízes, carrascos e coveiros. As leis foram por eles abolidas, pois os esquadrões estavam acima delas e dos poderes públicos. Tal e qual se passara durante os anos de eliminação de nações indígenas, de posseiros etc. e tal, em toda a América.
Ao recuperar essa parte da nossa História político-policial, não podemos nos esquecer do papel corajoso e nobre do então Procurador do Estado de São Paulo, Dr. Hélio Bicudo, que denunciou o criminoso e seus crimes, inibindo-o temporariamente de suas ações facínoras. Mas a ditadura militar recuperou-o. Fleury foi colocado como homem chave do DEOPS paulista (Departamento Estadual de Ordem Política e Social). Em nome da famigerada Lei de Segurança Nacional – especialmente depois do AI-5 (Ato Institucional nº 5), que cassou todos os diretos civis e militares dos cidadãos e cidadãs brasileiros –, Fleury passou a comandar a “caça” aos que se opunham à política da ditadura, a prender, interrogar, torturar cruelmente e assassinar indiscriminadamente.
Os “bandidos”, segundo Fleury e os militares, passaram a ser aqueles que defendiam a volta da legalidade ao país. Com essa orientação passada às polícias de todos os estados brasileiros, os Esquadrões da Morte foram proliferando e ocupando as principais cidades do país. Nos anos 80, na baixada do Rio de Janeiro, havia locais para o despejo dos “presuntos”, como sacanamente eram tratadas todas as pessoas assassinadas friamente pelos Esquadrões da Morte. Em São Paulo, foram surgindo as valas clandestinas, onde centenas de lutadores foram enterrados na calado da noite.
A ditadura militar passou, a legalidade retornou, mas seu vírus repressivo continuou a circular no sangue de políticos, de latifundiários, a impregnar as empresas nacionais e estrangeiras, especialmente as que se dedicam a ocupar as terras devolutas, as áreas florestais e as margens dos grandes rios brasileiros – imensas reservas das águas, potenciais geradoras de energia elétrica. Mas, para levar a cabo tal projeto, necessário se faz expulsar indígenas (nativos que habitam tais áreas há séculos), ribeirinhos, legítimos posseiros, pequenos proprietários e tantos quantos mais encontram pela frente. Os assassinatos dessa gente trabalhadora vêm se multiplicando, restando impunes quase que a totalidade dos seus mandantes e executores.
Enquanto o Estado burguês a tudo assiste passivamente. Aliás, muitos dos ocupantes dos poderes do Estado fazem parte dessa malha assassina, como a própria imprensa burguesa tem denunciado. Mas é preciso dizer também que a mídia (rádio, TV, jornais, revistas) foi organizada para difundir a ideologia do explorador, defender seus interesses escusos e acobertar seus crimes, embora não consiga acobertar tudo. Especialmente o rádio se tornou o arauto na defesa dos crimes da ditadura, pois penetrava os lares brasileiros durante o dia e a noite. Jornalistas pregavam a violência e eram acobertados pela dona Justiça.
Durante o governo paulista de Luiz Antônio Fleury Filho, houve o massacre do Carandiru, ocasião em que, sob o comando do coronel Ubiratan, foram chacinados 111 presos desarmados, rebelados pelas péssimas condições daquele presídio. Daí nasceu o PCC.
Não são, porém, todos os seres humanos que aceitam passivamente tantas e frequentes injustiças. Em todos os tempos, pessoas e grupos sempre reagiram à prepotência e dominação. Entre esses, estão os que se rebelam e passam ao revide pessoal ou em agrupamentos que vão se criando para autodefesa – muitas vezes também fora e por cima da lei – e os que buscam nas várias formas do crime um mínimo de satisfação para suas sofridas vidas de excluídos. Em dois campos esses rebeldes encontram amparo: no crime organizado do tráfico de drogas e nos meios policiais corruptos e sedentos de sangue alheio.
No Rio e São Paulo, principalmente, os governos de ambos os estados mostraram sua incompetência para lidar com o problema, até porque a maioria dos eleitos já vem corrompida nos processos eleitorais pelo apoio financeiro de grandes bancos e demais empresas, interessados em manter o caos social para melhor explorar o povo. Administram seus estados a serviço do capital.
A incompetência e responsabilidade maior, entretanto, vêm do governo federal porque, depois do retorno ao regime “democrático”, deveria ter promovido as mudanças estruturais sempre prometidas em tempos eleitorais, mas sempre esquecidas em tempos de governabilidade. Deveriam promover as grandes reformas estruturais que iniciariam um longo, mas eficaz, processo de eliminação de tantas injustiças incrustadas em nosso sistema político, econômico, social e cultural.
Essas mudanças poderiam (e podem) acontecer com as políticas públicas atuando sobre os “gargalos” do desenvolvimento de interesse nacional: promovendo a tão sonhada e prometida Reforma Agrária e seu necessário planejamento agrário, pondo em prática amplo projeto de construção de moradias populares em sistema de mutirões, promovendo profunda reestruturação do sistema de Saúde e Educação públicas, aplicando amplo projeto de saneamento básico, de preservação do meio ambiente e dos mananciais, promovendo a demarcação das terras indígenas e sua efetiva proteção, criando um sistema penitenciário voltado basicamente para a recuperação dos que cometeram crimes, e não mais como um espaço para o aprofundamento da revolta e do banditismo, entre outros gargalos.
Atacando esses entraves, o governo estaria eliminando as mais profundas causas da exclusão econômica e social que crucificam o povo brasileiro. Haveria terra para os que nela querem produzir, abertura de empregos permanente em inúmeras áreas, além da realização, na prática, da distribuição das riquezas socialmente produzidas. Sem dúvidas, as guerras urbanas teriam, então, muito pouca chance de se desenvolverem. Um pouco mais de paz e de solidariedade reinaria em nosso país.
Atacar a violência atual com outras formas de violência é jogar mais combustível na fogueira da própria violência. É o que fazem hoje governantes que estão há longos dezoito ou mais anos à frente dos estados brasileiros mais desenvolvidos. Assim como apelar para o discurso moralista, sem combater suas causas estruturais, é contribuir para a manutenção e aumento da criminalidade civil e militar. Esse discurso também engana.
A violência que impera em nossas cidades e campo é fruto claro de um sistema político e econômico injusto, da banalização dos valores éticos universais em função da acumulação de riquezas, potencializada pela mentalidade assassina dos esquadrões da morte e da barbárie praticada durante a ditadura militar.
É importante que as atuais gerações, jovens ainda, conheçam melhor nossa história política dos últimos 60 anos e compreendam, então, por que a degradação dos costumes, a corrupção, a exploração e o desprezo pela vida continuam crescendo e invadindo nossos lares. Só assim poderão perceber que as mudanças desejadas só virão com a organização e a ação popular/social conscientes. É urgente que as jovens gerações descubram que devem se tornar as protagonistas da verdadeira revolução que este país precisa. E que isto virá de um longo e persistente processo organizativo.
Waldemar Rossi é metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo.