Jornal do dia
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- Frei Betto
- 30/10/2007
Nemo me confidenciou que, fora certos
prazeres íntimos e gastronômicos, nada lhe imprime maior deleite do que,
pela manhã, abrir a porta do apartamento e encontrar, sobre o tapete que
lhe guarda a soleira, o jornal do dia. É como se, a cada manhã, virada
uma página de nossa existência, encontrasse ali o novo momento da cidade,
do país, do mundo.
Enquanto lhe preparam o café, aboleta-se confortavelmente numa poltrona e
percorre os olhos nas manchetes do dia. Lê as chamadas políticas, que lhe
soam repetitivas e, por vezes, vergonhosas, como se os nossos
representantes no poder público vivessem numa esfera protegida da ética
e, sobretudo, da voz dos que os elegeram. Toma ciência dos acidentes de
trânsito, das novas descobertas científicas, da oferta de sofisticados
equipamentos eletrônicos, das previsões meteorológicas.
Sente-se constrangido ao visitar a página policial com os assassinatos em
série, cujas vítimas são, em geral, pobres e negros, num menoscabo
completo do valor da vida humana. Alegra-se quando se depara com a boa
nova de que a Polícia Federal desmantelou mais uma quadrilha de
criminosos de colarinho branco. Detém-se com atenção nas páginas dos
esportes, à procura de detalhes sobre seus times preferidos, e lê atento
os colunistas que, informados dos bastidores, comentam a crise dos clubes
e o mercadejar de jogadores a preços exorbitantes.
Não lhe agradam os editoriais, raramente neles se detém, como se soubesse
de antemão a opinião do jornal sobre os assuntos enfocados. Para Nemo,
editorial deveria vir em pequenas doses na mesma página em que figuram as
notícias, como elucidação ou contraponto ao fato. Contudo, lê com avidez
e interesse seus colunistas preferidos, como a confirmar, num texto bem
escrito, uma opinião que também é sua, ele que carece de meio e forma adequados
de expressão.
Passa ao segundo caderno, onde figuram as colunas sociais, as novidades
do mundo artístico, o lançamento de livros, CDs, peças de teatro e
filmes. Ainda que pouco saia de casa para assistir aos espetáculos em
cartaz, agrada-lhe saber das novidades. Observa as fotos das colunas
sociais, onde o estranho mundo da elite aparece sempre sorridente e
perfumado (jura que chega a sentir-lhe o cheiro), como se jamais as
celebridades sofressem de dor de barriga, de desespero diante de um filho
drogado, de mágoa por terem sido preteridas na lista de convidados de uma
recepção vistosa.
Nemo se distrai com as histórias em quadrinhos, gosta em especial do
Hagar, o Horrível e, por vezes, ocupa-se com as palavras cruzadas e, de
uns tempos para cá, com o sudoku.
Se uma notícia lhe parece importante,
rasga a página e guarda-a numa gaveta de recortes amarelados que a
faxineira insiste em dar cabo, mas ele, por razões que não sabe explicar,
acha que um dia poderão ser úteis. De fato, outro dia um amigo insistiu
que a Segunda Guerra Mundial derrotou Hitler e o nazismo graças ao
desembarque das tropas aliadas, lideradas por EUA e Inglaterra, na
Normandia. Nemo revirou pilhas de jornais velhos, respirou poeira, e não
encontrou o artigo de um analista europeu, anticomunista, onde admite que
Hitler perdeu a guerra graças à resistência dos soviéticos. Combateram
com a mesma garra com que, no século XIX, expulsaram da Rússia as tropas
de Napoleão, e em janeiro de 1945, entraram em Berlim antes dos
ocidentais.
Nemo fica desapontado quando o jornal atrasa e o tapete da porta amanhece
descoroado. Ansioso por novidades, reclama pelo telefone e, antes que o
atendam, já envia a cozinheira à banca mais próxima.
Nemo tem consciência da dificuldade de o jornal competir com a agilidade,
em tempo real, da TV e da internet. Ainda assim, apraz-lhe agarrar aquele
maço de folhas nas mãos, sentir o cheiro morno do papel, ouvir o
farfalhar da página dobrada, ler os fatos nas entrelinhas, sabendo que as
notícias haverão de respeitar-lhe o ritmo. Pode saborear o café sem que
elas lhe fujam da vista.
Frei Betto é escritor, autor, em
parceria com Mario Sergio Cortella, de “Sobre a esperança” (Papirus),
entre outros livros.
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