Correio da Cidadania

Presentes de Natal

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Neste Natal, não me presenteiem com a insensatez nacional. Recuso blefes de linguagem cívica, rosas murchas de jardins ressecados, abraços vazios de coração. Ando saturado dos discursos desgramatizados da ética.

 

É Natal. Mereço abrir todas as comportas de meu ser e deixar solto o menino que me acompanha vida afora. Reverente, acolho a lista escrita em alumiada caligrafia: um tempo de bonança, que venha embrulhado em fraternura. O cavalo alado das utopias libertárias. Um jogo da velha, no qual todos rejuvenesçam ao guardar o pessimismo para dias melhores.

 

Quero também uma bicicleta cujos aros façam convergir todas as direções da Rosa dos Ventos. Soldadinhos de chumbo tão pesados que já não possam se mover, exceto um braço para erguer um fiapo de tecido branco. Uma boneca poliglota, cujo sotaque tenha o som carinhoso da acolhida. Um carrinho motorizado pela fé em busca de seu credo. Um jogo de varetas capaz de remover do ego a lama pegajosa da escolha de si mesmo. E uma caixinha de música que faça soar o hino ao silêncio.

 

Quero um Natal de alvíssaras surpresas: um Deus entrou no mundo pela porta dos fundos. Lá está ele, sem teto, a ocupar terra alheia no ventre da história. Eis o Menino gerado corajosamente sob o medo infanticida de Herodes. Eis José, o carpinteiro, recusado pela família em Belém e obrigado a recorrer ao pasto alheio para Maria esvaziar seu ventre de premissas e promessas. Eis o burrico pronto a encetar viagem emigrante rumo ao Egito.

 

Deus feito Menino emerge na conflitividade humana. O Paraíso perdido se ressitua no palco inglório de nossas vicissitudes. Agora, o apelo do Mistério sobrevoa todas as nossas dúvidas.

 

Neste Natal, não darei ouvidos à papainoélica sedução consumista. Em vez de presentes, me farei presente. Exibirei, no canto da sala, a árvore enfeitada de esperanças teimosas. No centro, a manjedoura vazia à espera de quem nela cultive sementes de empatia universal. Em volta, figuras sagradas que me livram das vozes interiores que retorcem meus sentimentos em gestos desvirtuados.

 

Na Missa do Galo, rogarei para que o medo inconsútil que me assalta se converta em fé, o contrário da coragem. Pedirei menos maledicência e mais benevolência. No ofertório, hastearei no mastro santo todas essas intenções que me convocam à coerência, e pedirei perdão, consciente de que as minhas transgressões pesam menos que as minhas omissões.

 

Sacramentado em fragilidades, receberei o corpo e o sangue do Senhor na lavoura arcaica desse coração impenitente, confiante de que haverão de adubar abissais epifanias na terra árida da obscuridade de minha fé.

 

Ao pé da cama, não deixarei os sapatos, e sim almofadas, de modo que Deus, ao chegar, possa descansar relaxado de tanta estultice humana. Se quiser, hei de servir-lhe um prato de sopa de flores do campo, para perfumar-lhe o coração. E, de presente de Natal, darei uma pomba branca e, no bico, um ramo de oliveira, para que a sua misericórdia nos livre do dilúvio de nossa ingratidão.

 

Ao amanhecer, tomarei no colo o globo terrestre para acarinhar cada uma de suas faces roliças. Enxugarei as lágrimas de sua dor provocada por guerras, atentados, fome, migrações e discriminações.

 

Neste Natal, não quero a ceia incongruente da fartura surda aos gritos do desamparo. Haverei de compartilhar o que me resta de atitude solidária: minha inocência infantil de que o mundo é feito de bondades e, a vida, breve sopro de beleza como flores que vicejam no pântano.

 

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

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