Quatro histórias de Natal
- Detalhes
- Frei Betto
- 21/12/2007
I
Em Belém, Caleb atende à porta. Ao ver quem bate, fecha-a de
imediato, enquanto o visitante insiste aos murros, como se quisesse derrubar a
parede.
A mulher, Cozbi, indaga quem é. “Meu irmão.” “O José?”, pergunta ela. “Sim,
teve o descaramento de engravidar uma jovem de Nazaré sem nem terem se casado,
como manda a nossa lei. Agora vem com a buxuda pedir abrigo em nossa casa. Como
hei de acolher quem viola os preceitos ditados por Javé a Moisés? Eles que
procurem outra freguesia.”
II
Eleazar realizou, enfim, seu velho sonho: um pequeno sítio
nas proximidades de Belém. No pasto, misturou vacas, cabras e cordeiros. Montou
um cocho de madeira e armou, em torno, um toldo de bambu coberto com folhas de
palmeira.
De madrugada, Efraim, pastor contratado pelo dono da terra, bate forte pelo
lado de fora da janela. O patrão, sonolento, parece receber como pesadelo a
notícia: “Invadiram suas terras, meu senhor. Tem um casal acampado lá na
estrebaria. Escutei um choro miúdo. Parece que a mulher deu à luz um menino.”
“Avise a guarda. Ao despontar do sol cuidaremos de tirá-los de lá”, resmunga
Eleazar interessado em retomar o sono.
Dia seguinte, o Diário de Belém dá em manchete: “Família sem-teto e sem-terra
invade propriedade rural na periferia da cidade.” No corpo da notícia: “Moça de
Nazaré, engravidada por carpinteiro, teve parto em pleno pasto. A criança é do sexo
masculino.”
III
Guiadas pela estrela de Davi, as três rainhas magas, Ada, Míriam e Sela, chegam à manjedoura. Após louvarem a Javé, aquecem um caldo de galinha para Maria, alimentam José com pães ázimos recheados com grão-de-bico, lavam as fraldas do bebê, varrem o estábulo. Ao buscar água na fonte, comentam entre si: “O menino em nada se parece com o pai...”
IV
A notícia do nascimento do menino não tarda a chegar ao
palácio de Herodes, em Jerusalém.
Ele fica alarmado; afinal, é o rei dos judeus, malgrado o
sangue árabe que corre em suas veias. Sabe, porém, que tem os dias contados, carcomido
pelo cancro. A proximidade da morte o aterroriza tanto quanto os agouros que
lhe ameaçam o trono.
Pede a Corinto, comandante da guarda, convocar reunião em palácio dos chefes
dos sacerdotes e dos doutores da lei, os escribas.
O convite trazido por Corinto deixa Anás excitado. No íntimo, considera-se o
verdadeiro rei da Palestina. Comparece em companhia de duas dezenas de membros
do sinédrio - o conselho supremo do poder judaico, integrado por 71 notáveis, e
do qual ele, na condição de sumo sacerdote, é o presidente.
Herodes é introduzido no salão a bordo de uma liteira de marfim sustentada por
quatro escravos. Anás mal consegue controlar sua curiosidade por conhecer o
motivo de tão inesperada convocação. O rei quer saber dos sinedritas onde e
quando deve nascer o Messias que tanto aguardam. Gamaliel cofia sua barba em
leque e diz: “Nascerá em Belém, na Judéia, pois está dito pelo profeta Miquéias
- E tu, Belém, de modo algum és a menor entre as cidades de Judá, pois de ti
sairá para mim aquele que deve guiar Israel. Quando isso ocorrerá - escusa-se o
doutor da lei -, não está ao alcance do nosso saber.“
Herodes não admite que a sua soberania seja desafiada por rumores em torno de
um menino-messias. Ordena que a guarda de operações especiais, comandada pelo
espadaúdo Tirano, dirija-se a Belém e passe ao fio da espada todas as crianças
do sexo masculino com menos de dois anos de idade.
Ao amanhecer, as tropas herodianas ocupam Belém. Os batedores vão de casa em casa. Ordenam que
todos os meninos de colo, e aqueles que ainda não caminham com firmeza, sejam
trazidos à rua por suas mães. As outras mulheres devem permanecer trancadas em
casa, com portas e janelas fechadas, em companhia de homens e crianças.
Toda a gente de Belém pressente que, desta vez, Azrael, o anjo exterminador,
voltou-se contra ela. As mães ficam separadas dos filhos que, nus, são deitados
lado a lado ao longo das ruas. Os bebês choram um choro de abandono,
insistente, como se um presságio os movesse a sugar com avidez o ar que, em
breve, já não poderão respirar. De rostos virados para as paredes das casas e
dos muros, e vigiadas por soldados, as mães riscam as pedras com as unhas e
lavam o musgo com as lágrimas.
Após observar cada criança à procura de algum traço messiânico, Tirano dá o
sinal para a degola. O carrasco agacha-se, puxa a cabeça da vítima para esticar
o pescoço, ergue o cutelo e, num golpe, separa o crânio do corpo. Algumas mães,
desesperadas, ousam voltar-se na direção dos filhos; são silenciadas pela
lâmina do punhal que lhes traspassa o coração. Tirano passa ao fio de sua
própria espada as mulheres que furam o cerco das sentinelas e se abraçam aos
filhos como se quisessem fazê-los retornar ao útero.
Desde essa trágica manhã em Belém, os poderosos cruéis tornaram-se conhecidos
como tiranos.
Frei Betto é escritor, autor da biografia de Jesus “Entre todos os homens”
(Ática), entre outros livros.
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